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A instituição da psicanálise, invenção freudiana, é reconhecida a partir de 1900 com o monumental escrito A interpretação dos sonhos. Nele, estão esboçados dois dos principais mecanismos psíquicos: a condensação e o deslocamento, operações que podem ser chamadas também de metáfora e metonímia. Os textos de Freud anteriores a este indiscutível marco são classificados como pré-psicanalíticos. No entanto, o Projeto de uma psicologia e, antes dele, o Sobre as afasias: um estudo crítico, contêm, ambos, concepções surpreendentes do aparelho de linguagem, considerando que seu autor era o então neurologista Sigmund Freud.

É com o espírito cartesiano que, em 1876, Freud inicia suas pesquisas no Instituto de Fisiologia de Brücke. No microscópio, estuda a histologia do sistema nervoso de um peixe, interessado na pesquisa da célula nervosa. Já formado, traduz o livro de Charcot, e trabalha no Hospital Geral de Viena, onde em poucos anos, atinge o posto mais cobiçado na hierarquia docente. Experimenta em si mesmo a cocaína, e escreve um estudo sobre as utilizações anestésicas da droga. Segue em 1885 para um estágio com Charcot em Paris, e envereda pela hipnose, método empregado na cura da histeria. Em 1891, o livro Sobre as afasias é publicado e nele Freud já introduz o conceito de aparelho de linguagem1. A psicanálise, com seus (inevitáveis) mitos de origem, já possui

referências para se instalar no século que se aproxima.

Desde os primeiros escritos psicanalíticos, Freud trata a memória de maneira radical e inovadora. Demonstra, por meio da clínica e da dita auto-análise, que as cenas infantis recobradas pela memória não possuem qualquer condição de imanência. Questiona, portanto, o conceito de memória como reprodução de uma impressão fixa, logo, recuperável, tal como postulado pela

neurologia do seu tempo. Uma máquina de/com memória e que não obedece ao princípio da não- contradição, mas ao princípio da repetição, sempre diferencial, em acréscimos. Um trabalho incessante de procura, derivações e de suplências entra em funcionamento. A vida humana apresenta-se faltosa; em busca do objeto/tempo para sempre perdido, objeto/tempo que nunca houve, e do qual a experiência inaugural e inevitável seria, de acordo com Freud, a alucinação. Em maio de 1891, Freud escreve a Fliess anunciando-lhe que enviará brevemente ao amigo “um pequeno livro sobre a afasia, pelo qual eu próprio nutro um sentimento caloroso”2. Nesta breve carta, indica qual a sua posição em relação aos estudos da neurologia de então: trata-se, para Freud, de um “esforço”3 para refutar a teoria das localizações cerebrais em voga. A hipótese que Freud sustenta, na contramão do discurso médico, vê o aparelho numa perspectiva funcional, ou seja, como resultado de um processo que envolve todo o cérebro. O termo “aparelho de linguagem” [Spracheapparat] é utilizado por Freud já ali.

A concepção funcional das afasias indica um procedimento característico da investigação freudiana em todo o seu percurso: as patologias e os sintomas, sejam eles psíquicos ou orgânicos, estão submetidos a um mesmo tipo de funcionamento dinâmico, com arranjos, rearranjos, modificações constantes e sucessivas. Isto porque Freud está convencido de que as leis que regem o psiquismo são as leis da linguagem. Sensível ao que o ‘aparelho de linguagem’ produz, ele não se contentará jamais com explicações estáticas, imutáveis e lineares para o acontecer psíquico. Numa das chamadas publicações pré-psicanalíticas, comentando o caso clínico da Srta. Elisabeth von R. e outras pacientes histéricas, Freud analisa certas expressões metafóricas em sua relação com a sintomatologia apresentada. Destaca, por exemplo, uma associação entre a dor no calcanhar da qual a paciente se queixava e sua representação no discurso, quando ela relata a Freud que, ao dar o braço a um jovem, temia “não acertar o passo”. Em outro exemplo, no mesmo texto, temos o caso de uma jovem que sofria de nevralgia facial e que, por meio da livre associação, conectou a dor a um insulto do marido e que fora para ela “como uma bofetada no rosto”. Freud chama estes mecanismos de simbolização, presentes na histeria de retenção, e nota que, ao serem novamente reconectados ao discurso, perdem sua característica de dor e de enigma, e simplesmente desaparecem. Com base no discurso, ele destaca o gozo envolvido na operação de rememoração, ao qual se entregava Elisabeth von R. Ela se comprazia num verdadeiro

2 FREUD apud MASSON, 1986, p. 28. 3 Ibid.

trabalho de repetir cenas de doença e de morte4. Ainda neste texto, Freud estabelece uma curiosa ligação entre seus relatos clínicos e a ficção. Diz ele:

Nem sempre fui exclusivamente psicoterapeuta. Pelo contrário, como outros

neurologistas, pratiquei a princípio diagnósticos locais e as reações elétricas, e ainda me causa estranheza comprovar que meus relatos clínicos careçam, por assim dizer, do severo selo da ciência e apresentem antes um caráter literário. Entretanto, consolo-me com a reflexão de que este resultado depende por completo da natureza do objeto e não de minhas preferências pessoais. O diagnóstico local e as reações elétricas carecem de toda eficácia na histeria, ao passo que um relato pormenorizado dos processos psíquicos, como os que estamos acostumados a encontrar na literatura, permite-me obter, com o emprego de algumas fórmulas psicológicas, um certo conhecimento da origem de uma histeria. Tais relatos clínicos devem ser julgados como os da psiquiatria, mas apresentam em relação a estes a vantagem de descobrirmos a íntima conexão entre a história da paciente e os sintomas nos quais se exterioriza [...]5.

A importância concedida ao discurso singular de cada paciente e a conexão que ele estabelece entre o material discursivo do paciente e a produção literária se devem ao fato de Freud compreender que a natureza da linguagem é a do mal entendido, da impossibilidade da comunicação biunívoca, enfim, da trama ficcional da própria linguagem. Por outro lado, o material sobre o qual um Freud surpreendido se debruça é realmente uma novidade como objeto de interesse científico: o sonho nas suas estranhas particularidades; os lapsos de linguagem, os chistes, o fracasso, os devaneios, as brincadeiras infantis, as notas de pé-de-página da vida. O Projeto de uma psicologia é importantíssimo para esta investigação, não somente por seu vínculo inaugural e histórico com todo o desenvolvimento conceitual da psicanálise, mas também por seu caráter retroalimentador das questões mais contemporâneas da cultura. Emilio Rodrigué, biógrafo de Freud, dá ao Projeto o estatuto de “coringa da psicanálise” e, ao mesmo tempo, chama-o de “fóssil premonitório”6. Tais oposições evidenciam o caráter ambíguo que o escrito suscitava no próprio Freud. Em sua correspondência com Fliess, Freud fala dele com orgulho e felicidade, e em outros momentos com vergonha e aflição7.

O esboço manuscrito do Projeto não foi concebido para ser publicado, e por pouco não foi destruído, como era desejo de Freud. Era um texto perdido, incompleto, e expressamente votado ao lixo até que, pelas mãos da Princesa Marie Bonaparte, chega a um editor. Nesse manuscrito, a

4 FREUD, 1973 [1893-5a]. 5 Ibid., p. 124.

6 RODRIGUÉ, 1995, p. 346. 7 FREUD apud MASSON, 1986.

psicanálise, que ainda não existia, reconhece sua fundação. Freud empreende ali um grande salto, tributário que era de uma forte herança positivista; constrói uma metáfora do funcionamento neuronal como uma máquina de memória. Com um detalhe, a lógica que presidiria este funcionamento também não correspondia aos parâmetros da lógica clássica, como seria esperado. Prenuncia muitas das questões trazidas pela cibernética, pela teoria da informação e pela neurologia contemporâneas. Freud buscava ali estabelecer as bases científicas do funcionamento do aparelho psíquico. Na opinião de Garcia-Roza, o Projeto recusa uma vez mais (o estudo das afasias sendo-lhe anterior) a anatomia e neurologia da época8. Suas idéias são de fato inovadoras, pois naquele momento ainda não se conhecia a teoria do reflexo condicionado de Pavlov nem a teoria neuronal. Ali, o impulso nervoso é concebido como ruptura de continuidade de uma célula nervosa à seguinte, antecipando aquilo que hoje se conhece como sinapse. Deste modo, o aparelho psíquico não somente transmite como também, e sobretudo, transforma energia.

O livro é dividido em três partes. A primeira contém o plano geral da obra; Freud constrói uma abordagem do aparelho psíquico de acordo com um sistema lógico, dando-lhe uma formalização, isto é, submetendo os conceitos em questão a regras operatórias, procedimento que o força a passar da medicina para a psicologia9. Vejamos sua proposta: “apresentar processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partes materiais capazes de serem especificadas”10.

É nessa primeira parte que Freud lança sua concepção qualitativa do sistema nervoso e formula uma teoria neuronal muito avançada para a época. Trata-se de um esboço para muitos dos temas que irá desenvolver ao longo de sua obra: a teoria dos sonhos, a dinâmica do aparelho e suas instâncias, a dor, os afetos, as representações, as pulsões, o desejo, tudo isso reunido por um peculiar laço  e curiosamente ausente do sumário  com o tema central, a memória.

A segunda parte introduz um ponto capital ao discurso psicanalítico: a histeria como paradigma dos processos psicopatológicos, em sua relação com o aparelho de memória. Evidencia-se aí uma característica do funcionamento patológico, já anunciada na primeira parte: conjugar percepção e representação11. Finalmente, uma terceira e última parte, onde a primeira é retomada para

8 GARCIA-ROZA, 1991, p. 81.

9 Conforme revelou algumas vezes a Fliess em cartas. 10 FREUD, 1995 [1895], p. 9.

11 Proponho retermos esta formulação que pode verificar-se produtiva quando a noção de sintoma literário for mais bem elaborada.

caracterizar os processos psíquicos normais. Tem-se, assim, uma obra circular que, como veremos adiante, possui a mesma estrutura da obra proustiana Em busca do tempo perdido. Ressalto apenas uma outra curiosidade: o final do livro de Freud é sem fim; o texto termina sem qualquer amarração, coisa incomum nos escritos freudianos. Obra aberta? Rascunho inacabado? Uma das primeiras formulações do Projeto diz respeito ao “princípio da inércia”, como fundamento da atividade nervosa que, segundo Freud, “parecia ser muito esclarecedor, na medida em que parecia12 abranger a função em sua totalidade”13. Considerando o extremo zelo que Freud mantém com a escrita e o domínio da língua que possui, não é difícil sustentar que este trecho contém elementos indicativos de certa ironia ou desdém que desestabilizam a noção simplista do princípio da inércia.

É que um sistema nervoso primário, diz ele, tenderia a descarregar qualquer quantidade de movimento ou energia para conservar-se. Acontece, porém, observa Freud, que “o princípio da inércia é violado desde o começo”14. A vida humana, em sua crescente complexidade, afastada cada vez mais da esfera biológica, é atravessada por outros estímulos: oriundos do próprio sistema, chamados endógenos e que assim, como os estímulos externos, trazem irritabilidade ao funcionamento do aparelho. Caso se confirmasse a tendência “natural” do sistema, haveria descarga pura e simples.

Entra em cena, então, uma nova função do aparelho, curiosamente denominada por Freud de “secundária” e que dá origem aos “grandes carecimentos: fome, respiração, sexualidade”15.

Grande virada, pois desde o início da vida humana, o princípio da inércia é subvertido; mais ainda, uma função secundária resulta nos grandes carecimentos, não mais em necessidades. Outro salto, que não deixa dúvida quanto ao que está em jogo: fome, respiração e sexualidade são termos que se equivalem, já reunidos e integrados à função simbólica; trata-se aí não mais da biologia, mas de processos psíquicos. Por oposição a Not [necessidade]16, Freud emprega o termo Bedürfnis [carecimento]17. Uma lógica bastante peculiar perpassa todo o Projeto e, por este motivo, proponho seguirmos Freud ao pé da letra, passo a passo.

12 Os grifos são meus para sublinhar tanto a repetição do termo quanto o tom que ele dá ao argumento. 13 FREUD, 1995 [1895], p. 10.

14 Ibid. 15 Ibid., p. 11.

16 Este comentário é do tradutor brasileiro do Projeto.

A Bedürfnis imposta pela complexidade da vida é efeito de uma função secundária que “exige a acumulação de Qη”18. Freud supõe ali que uma resistência vem opor-se à eliminação: não mais

inércia, descarga, mas acúmulo e barreiras. Está pronto o terreno no qual Freud edificará um dos conceitos-chave da psicanálise, o aparelho de memória.

Uma característica principal do tecido nervoso é a memória, isto é, em termos bastante genéricos, a capacidade de ser alterado permanentemente por processos únicos, o que dá um contraste muito acentuado com o comportamento de uma matéria que deixa passar um movimento ondulatório e a seguir retorna ao estado inicial. Uma teoria psicológica de alguma relevância tem de fornecer uma explicação da ‘memória’. Ora, toda explicação desse tipo tropeça com a dificuldade de que tem de supor, por um lado, que os neurônios, após a excitação, sejam permanentemente diferentes de antes, enquanto que não se pode negar que as novas excitações choquem-se, em geral, com as mesmas condições de recepção que as anteriores. Portanto, os neurônios deveriam ser não só influenciados como também permanecer inalterados, imparciais19.

No trecho acima, como ao longo de toda a sua elaboração, Freud não se desviará da seguinte premissa: cada manifestação ou processo psíquico traz a marca da singularidade, repetição e plasticidade. Outra característica é o tipo de lógica que comanda o seu raciocínio. Certamente, não se trata da lógica clássica, na qual três princípios básicos devem ser obedecidos: o da identidade (A=A), o da não-contradição (A não pode ser ao mesmo tempo verdadeiro e falso) e o terceiro excluído (A é verdadeiro ou falso). O seu argumento de que os neurônios se alteram permanentemente e permanecem inalterados contraria os princípios da lógica bivalente20.

Neste momento, Freud reconhece que acaba de propor uma lógica deveras complicada (termo seu) e dirá que a “salvação” seria atribuir funções diferenciadas a neurônios diferentes, querendo com isto estabelecer uma distinção entre células perceptivas e células recordativas. O detalhe é que ele finalmente conclui que tal separação “não se incorpora a nada, e ela própria [a separação] não tem no que se apoiar”21.

Um dilema acompanha o raciocínio de Freud: existiria uma identidade neuronal, ele diz “de mesma arquitetura”22, sendo que “o sistema nervoso consiste em neurônios distintos [...] Além

18 FREUD, 1995 [1895], p. 12. De acordo com o Projeto, Q = quantidade, isto é, “modificação de um estado, diferença entre repouso e movimento” (ibid., p. 109).

19 Ibid., p. 12-3. 20 LIMA, 1993.

21 FREUD, 1995, op. cit., p. 13.

22 Como veremos mais adiante, Proust também emprega a metáfora da arquitetura para representar o seu fazer literário.

disso, existe ainda uma numerosa ramificação com diferença de calibre”23. Como se não bastasse, ele já havia anunciado anteriormente uma outra aparente contradição: ao caracterizar o armazenamento, supõe “a permanência da mesma tendência, modificada no esforço de manter a Qη no menor nível possível, em defender-se contra a elevação, ou seja, em mantê-la constante”24.

Haveria uma tendência, ao mesmo tempo a mesma e modificada.

Surgem as concepções de neurônios permeáveis (que não resistem e não retêm), para dar conta da percepção, e os impermeáveis (cuja característica é acumular energia e opor resistência). Estes conformariam os “processos psíquicos em geral”25, isto é, a memória.

Às condições de permeabilidade, Freud associa os neurônios ϕ, enquanto que à impermeabilidade

estariam ligados os neurônios ψ. Trata-se de um funcionamento puramente quantitativo: os que

deixam passar quantidades de energia, e os que retêm, acumulam. “Os que podem, após cada excitação, estar em outro estado do que o anterior dão, portanto, uma possibilidade de apresentar a memória”26. Para explicar este funcionamento, Freud dirá: “A memória está apresentada pelas facilitações existentes entre os neurônios ψ”27. E esta facilitação28 depende de dois fatores: a

grandeza da excitação e freqüência da repetição. Excitação, portanto, é condição necessária para pensar a memória29.

Freud formaliza então o conceito de memória: “o poder de efetividade contínua de uma vivência”30. Não se trata de algo que permanece na consciência, nem tampouco uma percepção e

menos ainda um conteúdo, mas um traço que se marca com o poder de uma efetividade; memória refere-se pois a traço, marca, inscrição. Mas a frase continua: de uma vivência “que depende de

23 FREUD, 1995 [1895], p. 12. 24 Ibid., p. 11.

25 Ibid., p. 13.

26 Ibid., grifo do autor. 27 Ibid., p. 14.

28 O filósofo francês Alain Badiou propõe, ao invés de facilitação, utilizar o termo forçagem “diretamente extraído do conceito matemático de forcing. Trata-se de um ponto no qual uma verdade, por mais inacabada que seja, autoriza antecipações do saber, não sobre o que é, mas sobre o que terá sido se a verdade chega a sua consecução.”

(BADIOU, 1993, p. 51). [Grifos do autor]. O terá sido corresponde ao futuro anterior, tempo por excelência da retroação gramatical e que indica a modalidade lógica da contingência, tema do Capítulo IV.

29 De modo convergente, é o que afirma o narrador proustiano: “o caminho que ele segue vai lhe ficar gravado na lembrança com a excitação produzida pelos lugares novos, os atos inabituais, pela recente conversa e as despedidas trocadas à luz de lâmpada estranha que ainda o acompanham no silêncio da noite, e pela doçura próxima do regresso.” (PROUST, 2001, p. 10)

um fator que se chama ‘a grandeza da impressão’ e da freqüência de repetição dessa mesma impressão”31. O intervalo entre as inscrições é a própria memória32.

De acordo com o Projeto, o objeto se estrutura pela via da repetição: trata-se de reencontrar, de repetir. Só que nunca é o mesmo objeto que o sujeito encontra, visto que, para Freud, os objetos são sempre substitutos33. O processo de repetição estrutura então o mundo dos objetos e engendra não a linguagem, que preexiste ao sujeito, mas a possibilidade que cada sujeito terá de relacionar- se com esta34.

Com este texto, uma teoria bastante surpreendente acerca da memória é construída, deixando de lado questões ontológicas e voltando-se para a própria “arquitetura” da memória, significante que ele emprega várias vezes no texto. Termos aparentemente contraditórios se enlaçam no Projeto, numa articulação que ultrapassa o dualismo do “ou isto ou aquilo” e abraça a conjunção “isto e aquilo”. Mais um exemplo desta lógica arquitetural: “parece dada a explicação de uma propriedade do sistema nervoso: reter e, no entanto, permanecer receptivo”35.

O argumento questiona a lógica clássica, ao sustentar o princípio da contradição: os neurônios têm de estar ao mesmo tempo modificados e inalterados. O Projeto não dá margem a dúvidas quanto à reviravolta que Freud imprimirá no campo do conhecimento humano; muitas são as passagens em que ele faz uso de uma disjunção para sublinhar uma conjugação gramatical e lógica, como no exemplo anterior, ou quando emprega termos antinômicos como, por exemplo, ao propor a noção de “periferia interna do corpo”36.

Em um característico diálogo com seu leitor, Freud argutamente lançará uma pitada de complexidade, para si mesmo e para quem o lê, propondo uma distinção entre “inventado” e “encontrado”37. É um texto em que muitas passagens estão escritas no condicional38, isto é, Freud tenta escrever a fronteira entre o que pode deduzir de suas observações como cientista e os

31 FREUD, 1995 [1895], p. 14.

32 Mais uma vez, a ênfase está na diferença, no intervalo, o que pode remeter à formulação lacaniana de sujeito, um intervalo entre dois significantes.

33 Lacan considera o sistema ψ como predecessor do inconsciente, sendo sua originalidade a de “não poder satisfazer-se senão ao reencontrar o objeto fundamentalmente perdido.” (LACAN, 1966 [1956], p. 45).

34 É deste modo precário, diz Lacan, que o eu experimenta a realidade, neutralizando-a tanto quanto possível, ou seja, na medida em que o sistema de derivação funciona (LACAN, 1978 [1954-5]).

35 FREUD, 1995 [1895], p. 16. 36 Ibid., p. 18.

37 Ibid., p. 17.

38 “o sistema ϕ seria aquele grupo de neurônios a que chegam os estímulos externos, o sistema ψ conteria os neurônios que recebem as excitações endógenas” (ibid., p. 17).

avanços a que se propõe chegar a fim de arquitetar um outro sistema de pensamento (a arquitetura é um campo de projetos) para o mundo psíquico.

Ao utilizar o condicional e certas metáforas topológicas, Freud apontará para o caráter ficcional de qualquer elaboração discursiva. Interessa-lhe investigar não a origem do funcionamento da máquina mortífera e desejante que é o aparelho psíquico, mas modos do seu funcionamento. Os tijolos deste projeto arquitetônico são, evidentemente, os neurônios. Freud tenta compreender como funciona o cimento que mantém e, ao mesmo tempo, separa esses tijolos, de tal modo que, mantidos ou separados, a estrutura do edifício se desdobra em plasticidade e complexidade. O