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A metafísica imprime na maneira ocidental de compreender o humano uma suposta disposição à essência, tornada natural. Um dos pilares dessa disposição é o universalismo que busca escapar do acaso dos acontecimentos, dos fatos/feitos não explicados pela razão.

De acordo com a perspectiva desta pesquisa, a tradição não existe, ela é reconstrução com base numa escolha. Fundada retrospectivamente, a tradição  ligada etimologicamente a traição e,

por associação, a tradução  é uma transmissão e por isso inclui lembranças e esquecimentos.

Do lado da literatura, se a experiência de escritura tem peculiaridades próprias à sua época, é

certo que a variação e transmissibilidade do estilo encontram suas coordenadas em períodos bem anteriores. Na definição barthesiana da literatura, o estilo e a língua são dois pontos sobre os quais o escritor não tem possibilidade de escolha; no entanto, ao trabalhar nesse intervalo, pode chegar a uma invenção. “Ora, toda Forma é também Valor; é por isso que, entre a língua e o estilo, há lugar para uma outra realidade formal: a escritura.”182. Estilo aqui será tomado tal como propôs Barthes: “uma forma sem destinação [...] a ‘coisa’ do escritor, seu esplendor e sua prisão, [...] sua solidão [...] ele não é absolutamente o produto de uma escolha, de uma reflexão sobre a Literatura [...] ele funciona à maneira de uma Necessidade”183.Compagnon, discípulo crítico de

Barthes, propõe pensar o estilo da seguinte maneira: “O estilo, pois, está longe de ser um conceito puro [é simultaneamente] norma, ornamento, desvio, tipo, sintoma, cultura”184.

Harold Bloom considera a literatura, tal qual a conhecemos em nossos dias, uma invenção de Shakespeare. Em primeiro lugar, porque a partir daí, os personagens não mais se apresentariam como revelação, mas passam a ser desenvolvidos nas perspectivas do individual e da internalização. Para Bloom, os modelos desta elaboração são Hamlet e Falstaff, personagens que inauguram aquilo que hoje se denomina personalidade. A multiplicidade de vozes, os conflitos internos, novas formas de consciência, são exemplos do transbordamento da obra shakespeareana

182 “Or toute Forme est aussi Valeur; c’est pourquoi entre la langue et le style, il y a place pour une autre realité formelle: l’écriture” (BARTHES, 1972 [1953], p. 18).

183 “une forme sans destination, [...] la ‘chose’ de l’écrivain, sa splendeur et sa prision, [...] sa solitude [...] il n’est nullement le produit d’un choix, d’une réflexion sur la Littérature [...] il fonctionne à la façon d’une Nécessité” (ibid., p. 16).

e que levam Bloom a afirmar ao longo da livro que Shakespeare “inventou o humano, o que hoje entendemos por humano”185.

Embora provocante e polêmica, a tese de Bloom sobre a natureza literária de nossa cultura não é propriamente uma novidade. O capítulo final de Les mots et les choses186 defende a tese de que a noção de homem é uma invenção da cultura européia do século XVI. A diferença, enorme diferença, é que Foucault não estabelece um ponto de origem para tal invenção moderna como quer Bloom e, menos ainda, fixado a um nome de autor, o de Shakespeare. Para Bloom, Hamlet seria o mentor de Sigmund Freud em sua busca pela verdade “e em decorrência da qual perece”187. Assim, Bloom sintetiza Freud ao dizer que “a dor é a origem primeira da memória humana”188 e não deixa de fazê-lo ao observar que “Shakespeare nos fez teatrais”189. Como se não bastasse, ele credita a Shakespeare a própria estrutura da língua inglesa a partir da Idade Moderna.

A produção poética ocidental está marcada, segundo Friedrich190, por duas obras do século 18, anunciando questões que não mais deixarão de ser retomadas. Com nuances diferentes, trata-se da proposição barthesiana: “a impossibilidade de viver fora do texto infinito”191. Os autores são Rousseau e Diderot. Em comum, eles também possuem uma história de amizade e influências mútuas.

Quando o jovem Diderot é preso por escrever uma irônica “Carta sobre os cegos para uso daqueles que vêem”, seu amigo Rousseau vai visitá-lo na prisão. No trajeto, acidentalmente, lê o anúncio de um prêmio a ser concedido a quem respondesse se a restauração das artes e das ciências purificava a moral. Escreve o ensaio Discurso sobre as ciências e as artes e ganha o prêmio, tornando-se um célebre escritor. Sua tese acusa a civilização de corromper o homem através das ciências e das artes, e prega a volta à natureza. Sua atitude singular o faz romper progressivamente com os amigos, inclusive Diderot.

A idéia de uma grande reforma social, seu engajamento com a música e numerosas doenças afastam Rousseau da vida social. Sua obra, cada vez mais, sustenta o caráter radical dessa 185 BLOOM, 1999, p. 20. 186 FOUCAULT, 1966. 187 Ibid., p. 35. 188 Ibid., p. 36. 189 Ibid., p. 38. 190 FRIEDRICH, 1978. 191 BARTHES, 1999 [1973], p. 49.

incomunicabilidade. Uma indiferenciação proposital entre fantasia e realidade marca, segundo Friedrich, uma ruptura com a tradição literária.

Já Diderot focaliza a idéia e não os conteúdos, a “decisiva preeminência da magia lingüística sobre o conteúdo lingüístico”192. Tem início, assim, uma visão esteticamente positiva da desordem, do caos, da perplexidade, do grotesco, temas que Baudelaire irá mais tarde potencializar.

Richard Rorty, filósofo norte-americano, considera a Revolução Francesa como o marco de uma vertiginosa mudança no vocabulário das relações sociais e, conseqüentemente, de uma mudança igualmente rápida e transformadora de suas instituições. Para Rorty, o século 17 teria sido o palco em que uma importante substituição é encenada: o amor a Deus cede lugar ao amor à verdade científica. Já no final do século 18, uma nova virada se daria: o amor à verdade é substituído pelo amor-próprio193. Para ele, "o romance, o cinema e o programa de televisão substituíram, lenta mas seguramente, o sermão e o tratado como os principais veículos de mudança e de progresso”194. Neste aspecto, Rorty persegue a hipótese foucaultiana acerca da importância e do papel da ficção na invenção do humano.

Rorty também invoca o período romântico europeu como uma época de ruptura da arte tomada como imitação, no sentido platônico do termo, reivindicando um lugar até então inexistente na sociedade para o artista. Para este autor norte-americano, o romantismo traz consigo uma nova proposição: "que a verdade é feita, mais do que encontrada"195.

Por outro lado, Cortázar apresenta o leitor da primeira metade do século 19 como aquele que se dirigia ao livro com uma atitude talvez ingênua, mas harmoniosamente articulada com seu âmbito espiritual, no qual o estético primava. O realismo e as escolas seguintes exigem uma presença mais estreita do leitor na obra. De acordo com Cortázar, quando se falou da literatura como uma ‘fatia de vida’, a diminuição de compromisso estético coincidiu com o aumento do compromisso ético196.

192 FRIEDRICH, 1978, p. 27. 193 RORTY, 1989, p. 22.

194 “That is why the novel, the movie, and the TV program have, gradually but steadily, replaced the sermon and the treatise as the principal vehicles of change and progress” (ibid., p. xvi).

195 “that truth is made rather than found” (RORTY, 1989, p. 7). 196 CORTÁZAR, 1998, p. 61.

A revolução literária ocorrida na metade do século 19 está associada, para Barthes, ao nascimento do capitalismo moderno e a conseqüente quebra das ilusões do liberalismo burguês. Da escritura clássica, em sua quase imutabilidade da linguagem como um bem comunal, advém a pluralidade das escrituras modernas nas quais “o universal escapa”197. Para Barthes, Victor Hugo já prefigurava a véspera da explosão da Palavra, o futuro da poesia moderna, com suas distorções do alexandrino, por exemplo. “A poesia moderna, efetivamente, posto que é preciso opô-la à poesia clássica e a toda a prosa, destrói a natureza espontaneamente funcional da linguagem”198. Considera-se Baudelaire um dos inventores da palavra modernidade. O primeiro registro do termo data de 1859, embora, de acordo com Berman199, Rousseau teria sido aquele que primeiro utilizou o adjetivo ‘modernista’. Se estão separados cronologicamente por um século, ambos pensam como contemporâneos na maneira de apreender a estrutura própria à escritura poética. O que Berman extrai da escritura de Rousseau pode ser facilmente aplicado ao sentido da poética em Baudelaire: em ambos, o bom, o mau, o belo, o feio, a verdade, a virtude, têm uma existência local e limitada. A poética de Baudelaire aproxima arte e ciência: “Beleza é o produto de razão e cálculo”.

A metáfora adquire o valor de “exatidão matemática”; para tanto, ele se apoia em Edgard Alan Poe, que falara do parentesco das tarefas poéticas aproximando-as do rigor lógico de um problema matemático. O lixo, o homem decadente, o artificial guiam a literatura por novos caminhos. Os acidentes e os incidentes da vida convocam a narrativa moderna, dotando-a de recursos equívocos, paradoxais. Baudelaire reivindica uma atitude na qual ele próprio se vangloria por ativamente irritar o leitor: “A consciência poética, outrora uma fonte infinita de alegrias, tornou-se agora arsenal inesgotável de instrumentos de tortura”200. A dissonância entre obra e leitor não poderia ser mais explícita.

Na prosa, Flaubert participa do mesmo ato de ruptura. “Flaubert: uma maneira de cortar, de romper o discurso sem o tornar insensato. [...] pela primeira vez com Flaubert, a ruptura não é

197 “l’universel lui échappe” (BARTHES, 1972 [1953], p. 48).

198 “La poésie moderne, en effet, puisqu’il faut l ópposer à la poésie classique et à toute prose, détruit la nature spontanément fonctionnelle du langage” (BARTHES, 1972 [1953], p. 38).

199 BERMAN, 1986.

mais excepcional, esporádica, brilhante, engastada na matéria vil de um enunciado corrente [...] toda a moedinha lógica está nos interstícios.”201, eis como Barthes o qualifica.

Dizer “Madame Bovary c’est moi” é produzir um ato cujos efeitos serão visíveis na retroação característica dos atos contingentes, mas nem por isso atingindo menos a estrutura discursiva de toda uma época. O estilo de Flaubert funda, para Barthes, “a escritura artesanal”202, na qual os incidentes da vida burguesa, até então tidos por exóticos e pitorescos, adquirem estatuto de arte. Ao assumir a estrutura da linguagem como pathos, Flaubert trabalha a frase e não a palavra, fazendo daquela seu motivo de vida. “Pode-se dizer que Flaubert passou sua vida a ‘fazer frases’”203. Fazer aí tem um sentido bem preciso, e já destacado anteriormente, de construir, fabricar; portanto não é exagero dizer, com Barthes, que Flaubert inventa um novo objeto: a frase. “A frase de Flaubert é uma coisa”204.

Quando a poética de Rimbaud se apresenta, as dissonâncias são explicitadas com interrupções, cortes, laços semânticos que já não obedecem a uma linearidade. A incomunicabilidade com o leitor continua a ser ativamente trabalhada. “Eu é um outro”, frase de Rimbaud mais espetacular, tem a mesma estrutura que a frase de Flaubert acima citada, “Madame Bovary c’est moi”, ainda que seja legítimo perguntar se a ordem sintática encontra-se mantida. Seu fazer poético é um trabalho que desconstrói sentidos. O eu de Rimbaud é memória e, como tal, ficcional no limite máximo. A realidade em Rimbaud, diz Friedrich, é a realidade violenta e atroz da língua.

Seu poema “Les Illuminations” reivindica um corte entre autor e leitor. Rimbaud demonstra o resultado de uma operação impossível: “Eu anotava o inexprimível, agarrava o turbilhão”. A fronteira entre a literatura escrita e a literatura vivida encontra-se borrada. Tanto que ele deixa de escrever precocemente, aos 19 anos, e parte para viver a ficção.

Chega-se enfim a Mallarmé, cujo projeto literário aperfeiçoa a concepção baudelairiana de que a produção artística não consiste em reproduzir idealmente a realidade, mas em construí-la, inventá-la. Sua poesia quer ser o não-lugar205 de que nos fala Foucault206, no qual o silêncio e a

201 BARTHES, 1999 [1973], p. 15.

202 “l’écriture artisanale” (BARTHES, 1972 [1953], p. 51).

203 “On peut dire que Flaubert a passé sa vie à ‘faire des phrases’” (ibid., p. 137). 204 “La phrase de Flaubert est une chose” (ibid., p. 138). [Grifo do autor]

205 Não-lugar, conceito do antropólogo francês Marc Augé: um espaço no qual as relações sociais acontecem, mas

sem características identitárias, relacionais ou históricas com estes espaços. São espaços de relações interpessoais. "A supermodernidade é produtora de não-lugares" (AUGÉ, 1994, p. 73).

linguagem podem encontrar-se. Por isso, Friedrich pergunta se a poesia de Mallarmé ainda seria lírica. Ele torna seus objetos enigmáticos e obtém o sentido de estranhamento que Freud destacou como característica das coisas mais familiares. Despreza a biografia, preza o enigma.

Dissociando Vida e Literatura, Mallarmé radicaliza o projeto que vem sendo construído desde Rousseau, no qual o diálogo com o outro é dispensado. Pondo em prática esta operação, destrói o triângulo autor-obra-leitor. Seu Outro é a linguagem. Precisamente por este motivo, o silêncio é acionado e trabalhado com grande ênfase. O poema ideal, diz ele, seria “o poema calado, em branco”, o que faz ressoar ainda mais a proposição lacaniana do discurso sem palavras. Há em Barthes uma proposição análoga, na qual o escritor “não tem absolutamente de arrancar um verbo ao silêncio [...] mas ao inverso”207.

O impacto da obra de Mallarmé pode ser “visto” em todos os aspectos no poema ‘Un coup de dés’. Ao inventar um leitor, bem diferente do leitor usual, Mallarmé pretende convocá-lo a um ato sempre inconcluso, aberto, cuja função não é a de decifrar, mas esbarrar no enigma. Talvez nenhum outro poeta tenha levado tão longe o trabalho de escrever a falta.

“Eu digo: uma flor!, e, para além do esquecimento no qual minha voz não encontra qualquer contorno, enquanto algo diferente dos cálices conhecidos, musicalmente se levanta, idéia mesma e suave, a ausente de todos os buquês”208. O que o poeta quer diante de si não é a flor, a flor que

falta, mas a falta da flor, seu vazio radical. Entre a ausência real da coisa e a presença simbólica do objeto, entre a reminiscência (imaginária) e a falta (real), entre lembrança e esquecimento, entre idéia e música, Mallarmé dirige-se ao enigma, trabalho em pura perda, sem meta, sem fim. Esta frase enigmática materializa, em sua literalidade, uma aproximação ao impossível real. Diante da linguagem, ele nos transmite um dizer para além ou aquém de qualquer enchimento imaginário. A escritura torna-se ato de invenção. Para Blanchot, o Livro ao qual Mallarmé se refere e se dirige é o símbolo da autonomia, da consciência sem sujeito e, ao mesmo tempo, encarnada, porque “reduzida à forma material das palavras, a sua sonoridade”209. O que

207 BARTHES, 1999, p. 22.

208 “Je dis: une fleur!, et, hors de l’oubli où ma voix ne relègue aucun contour, en tant que quelque chose d’autre que les calices sus, musicalement se lève, idée même et suave, l’absente de tous bouquets” (MALLARMÉ apud

BLANCHOT, 1949, p. 38). 209 Ibid., p. 48.

compreender desta outra frase de Mallarmé “Abolido bibelô de inanição sonora”210, a não ser sua própria literalidade, onde o vazio (inane) é presentificado e o adorno (bibelô) é abolido?

Para Campos, o poeta Mallarmé “libertando-se progressivamente dos ornatos discursivos, caminha para a extrema elipse e concisão”211. A pontuação é quase abolida, as palavras soltam-se no espaço da página. Falar não tem relação biunívoca com a eventualidade das palavras, a contingência do significante; a escritura literária pode levar ao limite a disjunção  que não é

igual a oposição  que funda o significante, fazendo dele outro que não si mesmo.

210 “Aboli bibelot d’inanité sonore” (poema de 1887). Na tradução de Haroldo de Campos, tem-se: “Falido bibelô de inanição sonora” (CAMPOS, 1974, p. 65).