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Walter Benjamin escreve sobre muitos temas relativos à cultura e à possibilidade ou não de sua preservação pela memória. A ele interessa também precisar origens de movimentos sociais e artísticos e analisar as repercussões e efeitos dos mesmos numa direção histórica.

Este é o caso do estudo sobre a arte no romantismo alemão, ou aquele sobre as origens da tragédia barroca na Alemanha. Suas traduções de Baudelaire e Proust77 aproximaram-no ainda mais dos mecanismos fundadores da arte literária. Por ter produzido textos críticos nos quais

75 LACAN, 1977, inédito.

76 FREUD, 1973.

Bergson78, Freud e Proust estão presentes em diálogo, quero destacar algumas de suas contribuições. O primeiro título, “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução” é, obviamente, um estudo acerca das manifestações artísticas  fotografia, artes plásticas, cinema,

arquitetura  em relação ao tema da reprodutibilidade.

Um dos focos deste estudo é chegar a distinguir o papel da arte frente ao fascismo (a estetização da arte), opondo-o à utilização desta pelo comunismo (a politização da arte). Benjamin reconhece ali que “o método de Freud” modificou a maneira com que os homens vêem a realidade: “depois de Psychopathologie des Allagslebens (Psicopatologia da vida cotidiana), as coisas mudaram muito. Ao mesmo tempo que as isolava, o método de Freud facultava a análise de realidades, até então, inadvertidamente perdidas no vasto fluxo das coisas percebidas”79.

Numa perspectiva freudiana, Benjamin mostra que os períodos nos quais se diagnostica uma suposta decadência em determinada arte são, pelo contrário, momentos fecundos e ricos de força. Postula também que as indagações produzidas pela obra de arte  tarefa essencial, na

compreensão benjaminiana  ultrapassam sempre seu propósito e até mesmo seu tempo:

“Sempre foi uma das tarefas essenciais da arte a de suscitar determinada indagação num tempo ainda não maduro para que se recebesse plena resposta”80.

Todavia, diz Benjamin, nem todas as formas de arte seriam perenes. O poema épico desapareceu; a tragédia grega retorna sob outra perspectiva, séculos depois; o quadro, produto da Idade Média, não oferece garantias de duração. Apenas a arquitetura aparece aos olhos de Benjamin como arte necessária, permanente. Neste escrito, pode-se ainda notar o elogio ao cinema que uniria, segundo Benjamin, o entretenimento à postura crítica, de maneira quase natural. Este é um ponto em que diverge de Freud que, num período de grandes dificuldades financeiras, tentado por Hollywood, negou-se veementemente a apresentar a psicanálise para as massas por meio do cinema.

78 Sobre a filosofia de Bergson, Benjamin apontará uma origem de reação à “experiência inóspita, ofuscante da época da industrialização em grande escala. Os olhos que se fecham diante desta experiência confrontam outra de natureza complementar na forma por assim dizer de sua reprodução espontânea. A filosofia de Bergson é uma tentativa de detalhar e fixar esta imagem reproduzida.” (BENJAMIM, 1989, p.105).

79 BENJAMIN, 1980, p. 22.

80 Ibid., p. 23-4. Esta idéia de que o grande escritor cria seus precursores é sustentada por Borges, Breton, Benjamin e Barthes.

Neste texto, uma vigorosa crítica à estetização da política  estetização que culmina, para

Benjamin, na produção da guerra  deixa entrever aproximações ao pensamento freudiano no

que se refere ao poder das massas em estranhar-se, isto é, conduzir-se de modo oposto ao esperado pelo indivíduo isoladamente. Por meio dessa abordagem, Benjamin conclui que as massas tornaram-se tão estranhas a si mesmas que, oferecendo-se como espetáculo, produzem a própria destruição “como um gozo estético de primeira ordem”81. Para resistir a tal destruição, o ativista político Benjamin propõe ao comunismo a politização da arte.

Em nenhum momento do texto, a questão da rememoração é levantada. Então, em que este texto contribui para a discussão sobre a memória em Benjamin? O ponto que aqui quero destacar é que Benjamin, conhecedor da obra de Freud, trabalha a noção de reprodução sem associá-la, ou dissociá-la, do conceito freudiano de repetição, articulado ao longo de toda a obra de Freud. A contribuição de Freud, e também já comentada anteriormente, ao tema da memória ressalta que repetir, embora diferentemente, isto é, com acréscimos, por saltos, sem linearidade, é uma maneira especial de lembrar; e que o objetivo da análise seria fazer com que o sujeito, através da palavra, passe da repetição à elaboração. Ali, Wiederholen [repetição] está vinculado a Erinnerung [rememoração]. Não há lugar, portanto, na teorização psicanalítica para o termo reprodução.

É nesse texto também que Benjamin explora a idéia de aura: “na época da reprodução técnica da obra de arte o que se atrofia é a aura desta”82. Nesta idéia, encontramos algumas dicotomias caras

a Benjamin como obra autêntica X falsificação, original X reprodução, ampliados com a revolução tecnológica do início do século 20 que torna a arte um fenômeno de massa com suas técnicas de reprodutibilidade. As conseqüências mais notáveis dessa transformação seriam, segundo Benjamin, o desaparecimento das marcas do “aqui e agora” da obra, “sua existência irrepetível no lugar em que se encontra”83.

Aura, portanto, seria aquilo que a obra tem de mais singular e único como testemunho histórico de um passado, gravado na obra como selo de sua autenticidade. “O que é propriamente a aura? Uma trama muito particular de espaço e tempo: irrepetível aparição de um longínquo, por mais

81 Ibid., p. 28.

82 BENJAMIN, 1994, p. 22. 83 Ibid., p. 20.

próximo que possa estar”84. Fazem parte do conceito de aura as noções de tradição, passado, unicidade, autoridade, bem como a cifra inefável de uma origem perdida. Com a fotografia e o cinema, a cópia entra em cena disseminando e popularizando o acesso às obras de arte, na mesma medida em que estimularia o culto à imagem, já desvinculada de uma tradição e de um contexto histórico. Para Benjamin, a aura é definida por comparação aos “objetos naturais”85, numa manifestação próxima do êxtase místico. Benjamin vê “o desmoronamento da aura” como uma catástrofe, uma “liquidação geral” dos valores supostamente perenes da obra de arte. A noção de aura é totalmente antinômica à noção (ou realidade) da cópia.

O estudo de Benjamin sobre Baudelaire, “Sobre alguns temas em Baudelaire”, toca em cheio na questão da memória. Trata-se de uma extraordinária análise crítica da obra de Baudelaire, mas também da de Proust. Benjamin inicia o ensaio apostando que o leitor forjado por Baudelaire, “Hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère!”, não correspondia a seu próprio tempo. Tem-se ali uma bela concepção de memória como construção e como antecipação de futuro. Diz Benjamin: “O leitor a quem se dirigia ter-lhe-ia sido oferecido pela época subseqüente. [...] O livro [Fleurs du mal] que contara com os leitores mais estranhos, e que, de início, havia encontrado bem poucos leitores favoráveis, em alguns decênios tornou-se um clássico”86.

Um dos autores estudados no ensaio é o Bergson de Matière et Mémoire. Neste texto, Benjamin desenvolve um argumento bastante similar àquele que sustentará em “O narrador”: o avanço tecnológico e a vida burguesa distanciam o homem das fontes primárias da narração. Aqui, ele considera o jornal como um artefato que retira do leitor a possibilidade de encontrar-se com o outro, atrofia a experiência e afasta do campo social a narração, uma das formas mais antigas de comunicação. Os meios modernos, com suas características de brevidade, objetividade, falta de conexão entre as notícias, transmitiriam o acontecimento, mas excluiriam a subjetividade, a experiência, um dos termos mais caros a Benjamin. Proust aparece como uma reintegração da figura do narrador no presente, embora transformado.

Onde há experiência, no sentido próprio do termo, determinados conteúdos do passado individual entram em conjunção, na memória, com os do passado coletivo. Os cultos, com os seus cerimoniais, com as suas festas (sobre as quais talvez nunca se fale em Proust), realizavam continuamente a fusão entre esses dois materiais da memória.

84 No texto “Pequeña historia de la fotografía”: “¿Pero lo qué es propiamente el aura? Una trama muy particular de espacio y tiempo: irrepetible aparición de una lejanía, por cerca que ésta pueda estar” (BENJAMIN, 1994, p. 75). 85 Ibid., p. 24.

Provocavam a lembrança de épocas determinadas e continuavam como ocasião e pretexto dessas lembranças durante toda a vida87.

Também neste ensaio, Freud é evocado através do Mais além do princípio do prazer. O objetivo de Freud nesse texto, já referido anteriormente, é mostrar que memória e consciência se excluem. Benjamin aproxima, de maneira aguda e original, a hipótese freudiana ao argumento proustiano de um tempo não-cronológico, a memória involuntária. Aproxima também Freud de Valéry na análise das memórias traumáticas, exemplo de como a surpresa88 de uma nova percepção seria controlada e neutralizada pela lembrança consciente.

Nesse sentido, Benjamin capta com propriedade a função conservadora da consciência, tal como Freud a caracteriza. Entretanto, parece supor, de acordo com o trecho citado, que o vivido, o presente, aquilo que é percebido pela consciência soma-se ou mistura-se aos conteúdos de um passado coletivo, constituindo esta soma a própria memória. É como se houvesse aí nesta concepção uma dualidade entre individual e coletivo que, pela via da memória, poderiam finalmente reintegrar-se.

Ora, como Freud ressalta firmemente em Psicologia das massas, “A oposição entre psicologia individual e psicologia social ou coletiva, que à primeira vista pode parecer-nos muito profunda, perde grande parte de sua significação quando a submetemos a um exame mais detido”89. Em outras palavras, não há o social e o individual, como categorias isoláveis; as premissas em que Freud se baseia são: o Outro é o modelo para a constituição do psíquico; a relação familiar é um fenômeno social; não há laço natural. A leitura realizada por Lacan insiste neste aspecto: o inconsciente é social; por conseguinte, a dicotomia relativa aos termos é irrelevante. Tal distinção não se sustenta se pensarmos o sujeito como um efeito de linguagem e, portanto, social, desde sua gênese.

O estudo das massas, da multidão é um tema caro a Benjamin. Ele diz que nenhum objeto impôs- se com mais autoridade aos literatos do Oitocentos do que esse tema. Victor Hugo, Baudelaire, Poe e Proust são produtos desse século que trabalharam, não sem espanto, o tema. Freud, também

87 Ibid., p. 32.

88 Benjamin trabalha a surpresa como o “choc” da novidade poética, associando-o a Baudelaire. Este choc é o “acontecimento” esclarecido pela introdução da contingência como modalidade lógica e que constitui, a meu ver, o que há de paradoxal na hipótese de um “vazio central” da estrutura operado pela literatura e pelas artes em geral. 89 FREUD, 1973 [1921], p. 2563.

nascido nos anos oitocentos, pode ser listado neste rol, principalmente por seu Mais além do princípio do prazer. Mais uma vez, a teorização de Benjamin a respeito da memória associa-se permanentemente ao coletivo, a um trabalho cujas origens e efeitos amparam-se no social, um social em oposição ao individual.

Uma visada universalista caracteriza os escritos aqui citados de Benjamin. “O narrador”, outro importante estudo do filósofo, que seria, de acordo com Jameson, sua obra-prima, toma como ponto de partida a obra de Nikolai Leskow. Benjamin retoma o mesmo argumento desenvolvido no estudo anterior: o narrador tradicional é suplantado pelo gênero romance, produto da era burguesa e retrato do homem desorientado, isolado, incapaz de trocar experiências. Este fato seria correlato ao aparecimento da imprensa e ao surgimento dos objetos Jornal e Livro. A matéria- prima da experiência, termo central no pensamento benjaminiano, é atribuída aos marinheiros e camponeses, autores anônimos da narrativa oral. Esta forma compartilhada de narrativa que contém a sabedoria do vivido teria sido suplantada pelo romance no mundo moderno. O homem isolado nas cidades já não partilharia dos valores comunais antigos e a leitura do livro torna-o ainda mais silencioso.

Segundo o texto, o narrador-artesão é uma figura mítica, idealizada, porque retroativamente caracterizada como o lugar de produção da “verdadeira” história: "No autêntico ato de narrar, intervém a atividade da mãoque, com gestos, aprendidos no trabalho, apóia de cem maneiras diferentes aquilo que se pronuncia"90.

Há nessa idéia de Benjamin uma dicotomia explícita entre a memória em sua característica épica e “perenizante” e a rememoração, resto volátil e instável, tônica do tempo moderno, efêmero, transitório. Benjamin considera que a recordação seria a musa do romance, enquanto a memória seria a musa da narrativa (narrativa = o verdadeiro da experiência). Entre as duas, e pendendo para a segunda, a experiência da morte transmitida com sabedoria (moral) pelo viajante, “O narrador é a forma em que o Justo encontra a si mesmo”91, e quase perdida na trama romanesca, ocupada em buscar o sentido da vida.

O escritor Nikolai Leskow exemplifica à perfeição, para Benjamin, as figuras exemplares de narrador, os velhos mestres da narração, que tanto podiam ser encontrados no lavrador sedentário

90 BENJAMIN, op. cit., p. 74. 91 Ibid.

quanto no marinheiro, figuras que transmitem sua experiência de lugar e de tempo, isto é, o conhecimento do passado. Assim, o que Benjamin procura extrair de Leskow é aquilo que emprestaria à narrativa o caráter de verdade universal: a orientação para o interesse prático, a utilidade; a transmissibilidade e, portanto, perenidade dos fatos; a propagação da sabedoria; o caráter de subjetividade, gerador de reflexão.

Os meios de informação impõem, de acordo com Benjamin, um novo foco ao leitor: não mais o que vem de longe no tempo e no espaço, mas o fato fugidio do aqui e agora, com sua exigência de pronta verificabilidade. Não mais o espanto e o enigma diante do extraordinário, do maravilhoso, mas a precisão e a interpretação dos fatos. Não mais histórias notáveis, mas relatos cheios de explicações racionais. Sua conclusão é de que o lado épico da verdade, compreendido como a sabedoria, estaria agonizando92. Respalda-se no argumento de que “não há nada que de forma mais duradoura recomende histórias à memória do que aquela casta concisão que as subtrai à análise psicológica”93.

Ou seja, a memória involuntária, transmissível e que marca é incompatível com as análises de natureza psicológica que rapidamente se desfazem. É necessário ainda ressaltar que se o romance, no pensamento de Benjamin, é a forma de uma sociedade decadente, é possível, todavia, e ele o faz, um elogio a esta forma narrativa que cumpre o seu papel de retratar tal decadência.

Há uma frase do ensaio sobre Baudelaire que Benjamin repete em “O narrador”, quase literalmente: “É assim que adere à narrativa a marca de quem narra, como à tijela de barro a marca das mãos do oleiro”94. A metáfora sugere um mergulho do sujeito na experiência, uma

espécie de fusão entre sujeito da experiência e seu objeto; sugere também que finda a experiência, o escritor entrega seu produto ao ouvinte/leitor que, por sua vez, reorganiza sua própria experiência e extrai daí ensinamentos.

A imagem do escrito como uma tijela de barro não deixa de ter seu encanto se pensarmos que o outro (no caso, o leitor) provavelmente não obterá daquele objeto uma marca segura e estável do sujeito que o compôs. Se assim fosse, com que conforto o crítico literário extrairia da vida do autor as condições de fatura de sua obra?

92 BENJAMIN, 1980b.

93 Ibid., p. 62. 94 Ibid., p. 63.

A memória em Benjamin é a capacidade épica por excelência. Por isso, ele permanece preocupado com a questão da reprodução, suas condições de possibilidade. Distingue a “memória perenizante” do romancista da “memória entretenimento” do narrador tradicional. Aquela, plural, múltipla, fragmentada e esta, una, totalizante. Para ele, a recordação, musa do romance, é distinta da memória, musa da narrativa, pois, a memória teria sofrido uma fragmentação a ponto de perder “a unidade de sua origem”95.

Um outro ponto importante ali destacado é o “poder criador” da recordação, produzido pelo romance. Inventa-se com o romance, segundo Benjamin, “uma recordação criadora que acerta e metamorfoseia o objeto”96. Tem-se, mais uma vez, um exemplo de concepção da memória em que sujeito e objeto podem ser vistos como entidades em separado que irão encontra-se na “criação” literária.

No final deste ensaio, vê-se Benjamin concluir que o narrador tradicional tem como tarefa trabalhar a matéria humana, “a matéria das experiências”, essência de uma subjetividade “perdida”. Benjamin parece cultuar sinceramente uma nostalgia de essências perdidas. Por haver estudado em sua estrutura (como tradutor) a obra de Proust, Walter Benjamin acredita ver na caracterização da memória involuntária como fugaz, uma vicissitude da vida moderna.

Em Proust, o acesso a esta memória “verdadeira” seria obra do acaso, uma contingência. Benjamin não adere a tal concepção, pois para ele, a possibilidade de um acontecimento pleno como este depende das condições ambientais, que são, antes de mais nada, históricas. O habitante das metrópoles modernas estaria praticamente privado da única experiência capaz de trazer de volta o passado em sua inteireza, restando-lhe lembranças supérfluas que careceriam de profundidade. Assim, nada de acaso para Benjamin, mas antes de tudo uma essência perdida e seu conseqüente castigo.

Leandro Konder atribui esta marca da escrita de Benjamin a uma melancolia que o teria levado, por fim, ao suicídio. Entretanto, Konder defende que toda a formulação promovida por Benjamin em favor do trabalho de rememoração visava não somente ao reconhecimento da situação dura em que o homem moderno se encontrava, mas muito em favor de uma luta política que modificasse tais condições. Sua fascinação pelas novas formas de manifestação, na arte e na

95 Ibid., p. 67.

política, como maneiras de abordar e superar a realidade, mostra o quanto seu pensamento foi conflitivo para ele próprio.

A razão que Benjamin buscava se punha voluntariamente numa situação de extrema vulnerabilidade; renunciava a qualquer tipo de couraça ou escudo, para poder receber os golpes do irracional e renovar-se através deles. Era uma razão masoquista, convencida da necessidade de sofrer. Para não ser levada, inadvertidamente, a subestimar a riqueza de algum movimento novo, vindo de fora de sua área, ela precisava estar sempre disposta a abrir mão de qualquer patrimônio seu, próprio.”97.

As concepções de Freud e de Benjamin a respeito da memória possuem pontos de convergência. São eles: memória é trabalho psíquico; a recordação ou rememoração como função é plástica e sujeita a toda sorte de reordenamentos posteriores; tais operações, longe de imprimir um caráter de artificialidade ou erro ao processo, constituem sua matéria e até mesmo seu estofo. A ênfase dada por Benjamin à memória como laço social produziu efeitos duradouros na compreensão das manifestações artísticas e culturais contemporâneas98.

No entanto, quero ressaltar que há pontos inegociáveis entre os dois. No âmbito deste trabalho, pretendo mostrar justamente o contrário daquilo que Benjamin afirma, visto que a memória, em seu caráter eminentemente discursivo, não é compatível com noções lógico-gramaticais universalizantes e que as dicotomias apresentadas por este autor não contribuem produtivamente para avançar aquilo que Freud antecipava99.

Há uma outra marca que distingue decididamente Benjamin de Freud. Benjamin trabalha a questão da possibilidade de reprodução da memória. Freud parte da radical condição de impossibilidade de uma ação reprodutiva. A ilusão de possibilidade leva o sólido pensamento de Benjamin a deparar-se com um horizonte romântico e utópico, cujo efeito é mascarar o que é do registro da impossibilidade com aquilo que imaginariamente é vivido como impotência. Não fosse essa ilusão, como justificar em Benjamin termos como ‘decadência’, ‘ruínas’, ‘o Justo’, a

97 KONDER, 1988, p.106.

98 No Brasil, o trabalho de Ecléa Bosi, Memória e sociedade (BOSI, 1994), constitui um bom exemplo de uso do conceito de memória, conforme proposto por Benjamin, articulado à noção de trabalho; trabalho que poderia reconstruir o mundo, porque vinculado ao porvir e ao social. A distinção proposta por Bergson de que haveria uma memória pura (relativa ao sonho e à poesia) e outra transformada em hábito (voltada para o momento) é importante na argumentação de Bosi, por extrair daquele autor uma idéia central: a tentativa de provar a espontaneidade e a liberdade da memória, bem como seu caráter de passado que se conserva “inteiro e independente no espírito.” (ibid., p. 51).

pretensão de um narrador que conseguiria descer às profundezas da natureza inanimada, e sonhar com uma unidade de origem?

As posições de Benjamin são posições de discurso que pressupõem uma completude a ser