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O eixo que norteia esta pesquisa, uma leitura crítica entre tantas, sustenta-se na paradoxal compreensão de Freud acerca do psiquismo humano. A psicanálise, sua invenção, nada mais é do que efeitos produzidos na cultura por um recorte radical no extenso campo das humanidades, na história das ciências. Ao retirá-la deste campo, do qual se tornou tributária, isto é, sujeitada a seus princípios, mas não atada a seus progressos, Freud é o clínico/crítico que desmonta com precisão e rigor falsas oposições  dentro e fora, subjetivo e objetivo, social e individual, realidade e

ficção. Não certamente para complementar seus estudos teóricos como neurologista, mas por haver extraído conseqüências reais do sofrimento (ou gozo) daqueles que o procuravam.

Atento aos significantes nos quais esses sujeitos se enredavam, ele observa que a palavra é phármakon: remédio e veneno1. Sua escuta sem reservas, sem saber pré-construido, começa a produzir efeitos de verdade, possibilitando ao sujeito sob transferência desfazer nós lingüísticos, desconstruir habituais sintagmas, gestos acostumados, livrar-se de imposições acumuladas, enfim esvaziar, na medida do possível, o estofo imaginário que, a um só tempo o sustenta e escraviza. Atado em compromisso, que é promessa, a montagens socialmente partilhadas e cuja estruturação em sintoma indica uma miséria para além do mal-estar próprio de existir num mundo de palavras, o sujeito em análise pode deparar-se com a própria singularidade, na exata medida em que a constrói. Assim fazendo, realiza uma experiência que, do atravessamento pela palavra do Outro até a queda deste monumento comemorativo, esvazia o aparelho de memória não de suas marcas significantes, mas das inúmeras historietas, tão alienantes quanto estruturantes, que foi levado a

1 A esse respeito, ver A farmácia de Platão, onde, a partir do Fedro, Derrida propõe a escritura como jogo,

encenação, phármakon, ao mesmo tempo um remédio para a memória e um veneno ao pretender “suprir a memória, fazer esquecer mais ainda” (DERRIDA, 1997, p. 47), colocar-se no lugar do pai (escritura parricida).

contar a si mesmo para fazer-se contar, nessas narrativas necessárias ao funcionamento da máquina simbólica que chamamos o mundo.

A literatura, como prática da escritura psíquica, testemunha igualmente este percurso; por isso foi, juntamente com outras manifestações da arte, uma ferramenta que se impôs a Freud, não para ilustrar sua clínica, mas para confirmar o caráter material da linguagem na produção de sujeitos humanos, sendo para a fundação da psicanálise o Outro discurso, externo/interno, que lhe forneceu consistência de campo do saber. Ambas as práticas trabalham na direção de subverter o senso comum, deixando a cada um a possibilidade e a decisão de conviver com o enigma, o plausível, o verossímil, o inesperado, sem os constituir em impotência, em sofrimento paralisante. Longe de pensar a liberdade humana ilimitada, portanto presa a padrões utópicos, isto é, sem- lugar, essas produções ensinam que há escolhas, mas estas são sempre sobredeterminadas e seus sentidos, se e quando acontecem, não se formam senão a posteriori e dependem de uma alteridade que lhes confira, ou não, valor de verdade.

A filosofia é um campo não negligenciado por Freud nas formulações da práxis analítica. Porém, perspectivas radicalmente diferentes separam os campos da filosofia e da psicanálise, produzindo rupturas e estranhamentos úteis para pesquisas e intervenções na cultura. Assim como o objeto da filosofia é o ser, para a psicanálise, é justamente uma falta, a “falta a ser” que possibilita a produção do seu objeto, o sujeito do inconsciente. O mundo como representação, como universo de discurso, é o horizonte ao qual a filosofia se refere e se dirige. Freud recusa considerar a psicanálise como uma Weltanshauung.

Na Conferência XXXV, de 1933, intitulada “O problema da concepção do universo (Weltanshauung)”, ele diz que a busca de uma Weltanshauung é um ideal humano, uma crença que tem por objetivo levar o homem a sentir-se seguro na vida, para que “possa orientar mais adequadamente seus afetos e interesses”2.

O que está em questão ali é este universal partilhado pela ciência, pela religião e pela filosofia. Reconhecendo que a psicanálise tem sua gênese no discurso da ciência, Freud compartilha algumas de suas premissas, sendo uma delas a que “nega qualquer possibilidade de conhecimento

2 FREUD, 1973 [1933], p. 3191.

por revelação, intuição ou adivinhação”3. Por outro lado, diz que é impossível para a psicanálise criar uma Weltanshauung, porque “não o necessita; [...] e não aspira à formação de sistemas”4. Lacan, leitor de Freud, toma a filosofia como referência constante. No entanto, sua crítica à filosofia é bastante virulenta e precisa, em que pese toda uma dedicação ao estudo da fenomenologia alemã, sobretudo a obra de Heidegger. A chamada antifilosofia5 lacaniana coincide com sua posição crítica frente ao discurso universitário, formulada justamente a partir de 1968, ano-ícone para a vida universitária francesa. Lacan delimita esses campos com um corte radical:

o psicanalista não é erudito, não faz parte da banda dos sapientes padronizados, mas somente da banda de Moebius, onde se passa do saber à verdade, sem ter franquedo a borda do dar-se conta. Ele não diz que sabe, como o universitário, nem que não sabe, como o filósofo. Só pretende que sua experiência lhe ensine que há um saber que se diz sem sabê-lo, e ele o chama a verdade. Isto não lhe dá poder algum, a não ser o de beber a taça de um tempo ao outro, no banho do discurso onde nada bastante mal6.

De acordo com Milner, a “fabricação”7 do termo antifilosofia carrega uma violência que somente pode ser mantida quando Lacan inventa o matema  invenção esta vinculada não mais às

humanidades (artes, antropologia, história e até mesmo lingüística), mas à matemática8, sobretudo a lógica  para constituir a sua “ciência do real”. Milner chega a afirmar que matema

é um outro nome para antifilosofia.

A gênese desta radical antinomia  filosofia e antifilosofia  está assentada, para Milner, na

episteme grega, que funda “uma theoria distinta da praxis”9. Ora, se a radicalidade de Freud pretendeu justamente constituir um campo do conhecimento fundado numa práxis, da qual as teorizações possíveis não passam de efeito, como imaginar a psicanálise em sincronia ou harmonia com a filosofia? O amor pela sabedoria seria então aquilo que a psicanálise vem

3 FREUD, 1973 [1933], p. 3191. 4 Ibid., p.3205.

5 Não aquela que Jaspers adjetiva como “errada”, por não se adequar à busca da “verdade absoluta”, como ele advoga no texto "A Filosofia no Mundo" (JASPERS, 1993).

6 LACAN, 1973, inédito. 7 MILNER, 1996, p. 119.

8 A ciência sem consciência, no dizer de Lacan. 9 Ibid., p. 120.

denunciar e recusar, o que não impede, ainda seguindo a tese de Milner, que “se fale daquilo de que fala a filosofia”10.

Escolhi, por motivos sobredeterminados, portanto não esgotáveis, apresentar primeiro uma breve discussão etimológica e histórica da noção de memória. Os mitos, inclusive os etimológicos, em sua estrutura simbólica e ficcional indicam a gênese do humano, suas invenções primeiras, os pontos nos quais a potência significante se desprende da natureza e, como diz Lacan, “une o próximo e o distante como o homem e o universo”11, introduzindo o “instrumento significante”, construindo narrativas e, assim, o mundo.

Em seguida, discuto mais detidamente a contribuição de dois filósofos e críticos contemporâneos a Freud e a Lacan, cujas obras tangenciam a psicanálise e a literatura, para destacar tal antinomia, mesmo em temas nos quais o saber psicanalítico é convocado positivamente. Os filósofos são Henry Bergson (1859-1941) e Walter Benjamin (1892-1940), ambos estudiosos da memória. Seus estudos fazem referência a Freud, sendo que Benjamin, de maneira bem mais explícita e dialogal. Ainda assim, é o que quero demonstrar, as concepções teóricas de Bergson e Benjamin constroem linhas de argumentação incompatíveis com as premissas da psicanálise. Atribuo o fracasso desta negociação à divergência radical de objetos e de horizontes.

Em contraposição, reviso algumas contribuições teóricas de outro filósofo, Blaise Pascal que, no século 17, estuda Descartes minuciosamente, mas não adere à concepção vigente de um saber universal e necessário sobre o mundo. A direção que toma não é redutível nem a uma posição cética nem a um desdém relativamente às posições cartesianas. Trata-se de uma concepção inteiramente diferente do conhecimento. Seu interesse não está em responder à questão do correlato do objeto na representação, porque sua forma de pensar a racionalidade, segundo a modalidade da contingência, o faz ver as verdades segundo a posição do sujeito implicado na experiência.

Examinando alguns escritos dos dois primeiros, busco apontar a impossibilidade de tomar construções da psicanálise, cuja gênese é sempre singular, dentro do referencial filosófico hegemônico que se apresenta como universo de discurso e, por isso, submete seus termos à generalização e à extensão. Quanto a Pascal, apresento a hipótese de que sua presença como

10 MILNER, 1996, p. 124.

pensador da contingência prepara um fértil terreno no qual a matemática, a lógica, e também a literatura e a psicanálise podem destacar-se e construir novos referenciais de conhecimento e vida.