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Memor é um antepositivo fértil da língua latina. Deu origem a um sem-número de palavras como: memória, lembrança, comemorar, memento, anamnese, recordação, menção, reminiscência. Memória vem do latim eclesiástico memoria, “monumentos comemorativos”, derivada de memor “que se lembra, que faz lembrar”. Desde o século 12, a palavra tem um sentido ativo: “ação de lembrar-se de algo ou de alguém”. O sentido específico de “lembrança duradoura” vem desta mesma época e daí surge a fórmula de inscrição nos túmulos “em memória de”. No final do século 15, atesta-se o emprego literário, principalmente no plural, “memórias”. Já no século 17, ganha acepção contábil e, na segunda metade do século 20, liga-se com sucesso à linguagem da informática, como dispositivo de tratamento (conservação e disponibilidade) de dados12.

Lembrar e seu corolário esquecer são inseparáveis. Segundo Mircea Eliade, a mitologia indiana opera com dois pólos antagônicos que, na literatura, são representados por um lado, com as imagens de acorrentamento, cativeiro, ou de esquecimento, ignorância, sono, simbolizando a condição humana; por outro lado, as imagens de libertação das amarras, remoção do véu, e de memória, despertar, rememoração, vigília, para significar a transcendência, a redenção. Deste modo, a ignorância corresponde ao esquecimento (do verdadeiro) e a sabedoria é atributo dos que recordam. Buda seria o paradigma deste modelo, por ser aquele que recorda suas existências anteriores13.

Mnemosine é a deusa da memória, entre os gregos. Fruto da união incestuosa de Uranos e de Gaia, ela une-se a Zeus, durante nove noites. Para cada noite, uma filha; por isso são nove as

12 REY, 1993.

Musas: eloqüência, história, música, arte das festas e do canto, geometria, dança, comédia, astronomia. Todas as artes devem, portanto, seu nascimento à memória.

O poder atribuído a Mnemosine não se resume à conservação do passado. Segundo Hesíodo, “Ela conhece tudo o que foi, tudo o que é, tudo o que será”14. Guia do poeta, oferece iluminações, bem como sombra e esquecimento. São as musas que concedem aos poetas o acesso à “origem” do cosmo e do ser. O oráculo de Trofônio, na Beócia, possuia duas fontes: a da lembrança e a do esquecimento.

De acordo com Eliade, a mitologia grega referente à memória conheceu transformações, sobretudo “quando se esboça uma doutrina da transmigração”15, na qual importa conhecer a série de vidas anteriores. A função do Letes, rio do esquecimento, e que acolhe os mortos no mundo subterrâneo, passa a ser a de fonte. Ali, os espíritos dos mortos bebem de suas águas e esquecem da vida terrena, antes de retornar. Somente alguns poucos, como Tirésias, conservam “toda” a memória.

A doutrina da metempsicose era cultivada entre os filósofos gregos. Empédocles afirmava ter sido “outrora homem e mulher, um arbusto e uma ave, e um peixe mudo no mar”16. Pitágoras “via facilmente o que havia sido em dez, vinte existências humanas”17, incentivando o treinamento da memória, a arte mnemônica. Desde os antigos, portanto, a memória somente pode ser compreendida com o par, lembrança/esquecimento, não negligenciado na construção mítica do tema.

Platão acreditava que, antes de retornar à vida, as almas contemplavam as idéias, tendo acesso ao mundo perfeito. No entanto, para adquirir nova existência, era necessário esquecer tudo aquilo que fora vivido no mundo subterrâneo. No Ménon, ele diz: “afinal de contas, buscar e aprender são, absolutamente, uma rememoração”18. Há, porém uma distinção clara entre memória [mneme] e rememoração [anamnesis], pois na doutrina platônica, os seres perfeitos não necessitariam do trabalho de rememoração por possuírem “toda” a memória. Viver para o verdadeiro, justo e belo, de acordo com Platão, é recordar-se do encontro com o mundo espiritual e, ao mesmo tempo, é

14 “Elle connaît tout ce qui a été, tout ce qui est, tout ce qui sera.” (apud ROUBAUD, 1997, p. 14). 15 ELIADE, op. cit., p. 109.

16 apud ELIADE. 17 Ibid., p. 110.

esquecer (pois a reencarnação o exige). A sabedoria platônica conjuga o esquecimento dos eventos (contingentes) com a lembrança das verdades (necessárias).

Aristóteles consagra um tratado à memória, o De memoria, conservado apenas em latim. De acordo com Roubaud, o paradoxo que Aristóteles tentava solucionar diz respeito à presença de uma ausência, aguda definição de memória: “Se os objetos da memória não pertencem ao presente, o que é então que se torna presente, acede à presença, apresenta-se a nós quando lembramos?”19. Há na teoria aristotélica da memória uma crítica a Platão, pela reintrodução da dimensão imaginativa como parte da faculdade rememorativa: “É portanto evidente que a memória pertence à mesma parte da alma que a imaginação; todas as coisas imagináveis são essencialmente objetos da memória”20.

Eliade afirma que a filosofia cristã acatou a idéia grega que fez de Hipnos (sono) e Tanatos (morte) irmãos gêmeos, elaborando “a homologia morte-sono”21, em expressões como ‘dormir em paz’, ‘sono eterno’. A “vigília” cristã também está atrelada à idéia de consciência, razão, força espiritual, cabendo ao sono os estados de embriaguês, fraqueza moral, desrazão. Eliade reúne todas essas concepções mitico-filosófico-religiosas sob o nome de gnosticismo e diz que o pivô dessas teogonias é a idéia de “outro”, de “estrangeiro”. O gnóstico, diz Eliade, não se reconhece como deste mundo, mas “vem e é de outra parte”22.

Três grandes metáforas compõem, desde a Antiguidade, o imaginário acerca da memória humana. A primeira delas pretende que a memória é como uma tábua de cera, onde traços são inscritos e se conservam. Platão a emprega falando da presença, na alma, de um bloco de cera sobre o qual vêm depositar-se as impressões da realidade sensível. Lembrar então consiste em encontrar um duplo perfeito da Idéia original. Freud parte desta representação platônica para compor o artigo “O bloco mágico”23. Constrói, todavia, uma variante interpretativa bem diversa posto que, como veremos adiante, ele não endossa de modo algum a idéia de uma representação original.

19 “Si les objets de la mémoire n’appartiennent pas au présent, qu’est donc cela qui devient présent, accède à la présence, se présente à nous quand nous nous souvenons?” (apud ROUBAUD, 1997, p. 15).

20 “Il est donc évident que la mémoire appartient à la même partie de l’âme que l’imagination; toutes choses imaginables sont essentiellement des objets de la mémoire.” (ARISTÓTELES apud JACKSON, 1992, p. 21). 21 ELIADE, op. cit., p. 113.

22 Ibid., p. 118.

A segunda metáfora, bastante difundida até os nossos dias, vê a memória como um grande sótão, vasto reservatório, no qual as lembranças que escapam ao esquecimento ficam guardadas, estocadas. Todas as fábulas de tesouros perdidos e reencontrados exploram à exaustão tal metáfora. A terceira concerne a uma imagem da memória vista como pássaros de várias cores e espécies que habitam a alma humana. Assim, estariam eles em constante movimento e mutação, em permanente atividade e prontos para alçar vôo em direção à consciência. Destas três representações, surgem, a partir da Idade Média, variantes como a Biblioteca, a Enciclopédia, o Livro.

O livro The art of memory24 pretende responder a uma questão enigmática:

Por que, quando a invenção da imprensa parecia ter tornado a grande Memória Artificial da Idade Média não mais necessária, houve o recrudescimento do interesse pela arte da memória cujas estranhas formas encontramos nos sistemas renascentistas de Camillo, Bruno e Fludd?25, 26.

O medievo e a Renascença desenvolveram a arte mnemônica: a anamnese, ou seja, as técnicas do não-esquecimento. Os historiadores renascentistas tinham como objetivo narrar a história antiga para fornecer os modelos do homem perfeito27. Os mnemonistas e sua técnica, a mnemotécnica, desempenharam em suas épocas o papel do livro e dos computadores. A uma “memória natural”, eles acrescentavam uma outra, “artificial”, com base em treinamento e arte28. Uma das conclusões do livro de Yates aponta para a associação entre a invenção e o desenvolvimento da arte da memória e o desenvolvimento, em conseqüência, do método científico no século 17. Trata-se de um percurso que tem início na Idade Média, época em que floresceu uma importante teorização formulada pela escolástica e intimamente conectada à imageria medieval, tanto em artes de uma maneira geral quanto em arquitetura.

24 De Frances Yates (1899-1981), publicado na Inglaterra em 1966 e considerado uma das 100 melhores obras de não-ficção de todo o século 20.

25 “Why, when the invention of printing seemed to have made the great Gothic artificial memories of the Middle Ages no longer necessary, was there this recrudescence of the interest in the art of memory in the strange forms in which we find it in the renaissance systems of Camillo, Bruno, and Fludd?” (YATES, 1984, p. xii).

26 Magos-filósofos do renascimento: Giulio Camillo Delmino, autor de L’Idea del Theatro (1550). Giordano Bruno, considerado o maior dos magos herméticos; anticristão, foi queimado como herético. (DOURADO, 2002). Robert Fludd (1547-1637) médico inglês que se declarou Rosacruz e defendeu a Ordem contra seus detratores. Expôs idéias de filósofos gregos, de Zoroastro, dos estóicos, de Hermes Trismegistus, e de filósofos romanos. Fez parte da comissão de estudiosos que dirigiu a tradução da Bíblia do rei Jaime.

[http://www.georgedeville.hpg.ig.com.br/grandes_ocultistas.html] 27 ELIADE, op. cit.

Ainda segundo Eliade, é somente no século 19 que a historiografia toma uma vertente de anamnesis, promovendo o surgimento das técnicas de escavações da pré-história e a pesquisa etnográfica, o que “prolonga, ainda que em outro plano, a valorização religiosa da memória e da recordação”29.