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O neuropsicólogo Aleksandr Romanovich Luria, nascido na Rússia em 1902, trabalhou no Hospital Budenko em Moscou até a década de 1970. Suas pesquisas sobre o comportamento humano afetado por lesões cerebrais tornaram-se célebres desde a década de 1920. No entanto, seu livro somente foi editado nos Estados Unidos em 1968 e, no Brasil, apenas em 1999. Os relatos clínicos que publicou deram início a uma nova linha de pesquisa tanto na neurologia quanto na psicologia contemporâneas, revalorizando as narrativas e o modo pelo qual cada

257 solo, fundação, base.

paciente refaz comportamentos e, principalmente, circuitos neuronais a partir de lesões corticais específicas.

Em A mente e a memória, Luria apresenta o caso de um paciente acompanhado por ele durante quase trinta anos e cujo sintoma, que nem chegava a traduzir-se numa queixa, era possuir uma inesgotável memória. Menos interessado em medir e avaliar tecnicamente um clássico transtorno de memória, Luria se vê diante de outras indagações. Que efeito teria esta memória hipertrofiada nos demais aspectos da personalidade daquele homem? Que mudanças ocorrem na sua vida e na dos que o rodeiam, reprogramando e reorganizando seu psiquismo? Mais ainda, neste caso específico, ocorre-lhe um percurso inverso aos testes a que o paciente era submetido. Após concluir que “a capacidade de sua memória não tinha limites discerníveis; que eu fora incapaz de realizar o que se supõe seja a tarefa mais simples de um psicólogo: medir a capacidade de memória de um indivíduo”259, ele refaz sua questão: “Era-lhe possível esquecer?”260. O método de pesquisa que desenvolveu pode ser resumido com o tipo de olhar que ele lança ao seu objeto. Luria viu-se forçado a

examinar com mais atenção cada possível indicação de como a memória humana opera: os mecanismos que ela usa com base para as ‘anotações’ mentais que as pessoas fazem de suas impressões de coisas; as ‘leituras’ que a mente faz de traços de memória que ficam retidos261.

É fácil perceber que tal método de trabalho dá pouco valor às certezas teóricas e, pelo contrário, grande atenção ao discurso do sujeito, suas construções e verdades singulares. Observo também, neste pequeno extrato, a ênfase dada não ao conteúdo, às representações, mas aos traços, às marcas significantes. Freud escrevia muitos dos seus textos interrogando um interlocutor imaginário, lançando questões ao próprio escrito, seu objeto. Luria também empregava esta estratégia de pesquisa, uma arte da pergunta. Apresentado no livro como S. (sua inicial), este sujeito começa, a partir do contato com seu médico, a desenvolver-se mais e mais na técnica de rememoração. A pergunta de Luria sobre a possibilidade do esquecimento permitia, entre outras coisas, ajudar seu paciente a encontrar um tipo de trabalho compatível com suas potencialidades. Luria admite então que S. não esquecia, ou seja, não apresentava falha de memória, mas apenas falhas de percepção, ou de concentração.

259 LURIA, 1999, p. 10. [Grifo do autor] 260 Ibid., p. 29.

Como Freud, mais uma vez, Luria categoriza o trabalho do aparelho psíquico em termos de traços de memória: “parecia não haver limites nem para a capacidade da memória de S. nem para a durabilidade dos traços que ele guardava.”262. Uma das hipóteses apresentadas é elaborada a partir de lembranças do paciente relativas à primeira infância, privilegiando o campo da palavra na constituição do psiquismo: “é possível que nossas impressões não se inscrevam enquanto tais num período precoce de nossas vidas porque nossa ferramenta básica de memória, a fala, ainda não estava desenvolvida”263. Tal hipótese deriva da constatação de que S. não transformou “reminiscências em palavras”264, que é o que supostamente aconteceria durante o desenvolvimento humano. Antes, guardou das cenas infantis sensações e imagens: “vagas sensações sinestésicas, um estado no qual não há um limite concreto entre percepções e emoções”265, ou seja, como marcas inscritas e não como representações.

A pregnância figurativa nos processos constitutivos da memória configurou, naquele paciente, um sujeito bastante peculiar em relação à literatura. Compreensivelmente, o único material que S. não conseguia memorizar era a poesia. Sua impossibilidade de reter significantes justamente em seu uso literal de marca não deixa de ensinar quanto a um manejo possível  aqui desejável 

da crítica literária:

S. descobriu que, ao tentar ler poesia, os obstáculos à sua compreensão eram esmagadores: cada expressão dava lugar a uma imagem; esta, por sua vez, entrava em conflito com outra imagem já evocada. Como, então, abrir caminho através desse caos de imagens para alcançar a poesia mesma?266.

Ao que S. responde: “desisti de tentar seguir o poema. Era um pesadelo”267. O mnemonista S., acompanhado por Luria, e Funes, o memorioso, inventado por Borges encontram-se próximos: no ponto em que a ficção vivida e a ficção escrita se entrelaçam e oferecem à vida a escritura através da qual existem.

No seu livro Um antropólogo em Marte, Oliver Sacks recolhe uma série de conclusões de neurocientistas que, desde a década de 1920, descreviam processos antes tidos como imutáveis, pois relacionados ao ato de ver, como reconstruções, onde a imagem de uma recapitulação 262 Ibid., p. 10. 263 Ibid., p. 63. 264 Ibid., p. 64. 265 Ibid., p. 65. 266 Ibid., p. 106. 267 Ibid., p. 107.

mecânica não teria mais sustentação. Reafirmando enfaticamente a influência de Luria em sua obra, Sacks discute o conceito de memória comumente entendido como registro ou armazenamento como uma noção simpática, mas extremamente problemática. Diz ele:

Todos nós passamos pela experiência [...] de memórias ‘normais’, do dia-a-dia, que podem ser tudo menos fixas  escapando e deslocando-se, modificando-se sempre que

pensamos nelas. Duas testemunhas nunca contam a mesma história, e nenhuma história ou memória permanece para sempre a mesma. Uma história é repetida, e muda a cada repetição268.

Vale recordar que uma das premissas desta tese é considerar a repetição como uma tentativa de recuperar o objeto da satisfação, objeto desde sempre e para sempre perdido. Seu retorno no psiquismo do bebê como atividade alucinatória implica em uma discordância radical com relação à coisa em si, o que também permite destacar o caráter não-reprodutivo da repetição. Alucinação, repetição e retorno do recalcado são modos de nomear e caracterizar a memória humana.

Sacks define a si mesmo como teórico e dramaturgo. Igualmente atraído pelo “científico e pelo romântico”, tal qual Luria, ele estuda as relações que o homem estabelece com suas enfermidades, iluminando a estrutura ficcional dos significantes que as determinam. A importância de sua pesquisa se deve principalmente ao fato de sua obra destacar a emergência de um ‘sujeito’ nos relatos que se pretendem histórias naturais da chamada ‘patologia humana’. A descrição clínica usual  sexo, idade, raça, características morfológicas  não distingue o

humano dos outros seres vivos, podendo indistintamente ser aplicada a um homem ou a um animal. Assim, a classificação veterinária nada acrescenta ao estudo do pathos humano, na medida em que sua característica distintiva e crucial, ao ser afetado pelo significante, é constituir- se como expulso do mundo dito natural. Lacan chama este movimento de vida não totalmente contido na vida de ex-sistência.

Ao lidar com doenças neurológicas graves, Sacks relaciona processos fisiológicos, ou patológicos, com a trama ficcional dos sujeitos em questão, suas chamadas biografias. Tal método remonta a Hipócrates, o primeiro historiador da medicina e, posteriormente, à tradição oitocentista de estudos clínicos descritivos. Em muitas passagens, Sacks rende tributo ao gênio de Freud e reconhece no seu trabalho a herança freudiana. Foi em Freud, por exemplo, que Sacks

enxergou a vertente narrativa capaz de apreender os fatos de linguagem que presidem o humano. Chamaram-lhe a atenção termos freudianos como romance familiar e cena traumática, significantes por si só indicativos de uma posição singular de investigação, por relação ao discurso tradicional da ciência.

No prefácio do livro O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, encontra-se um resumo de sua posição:

O científico e o romântico, nessas esferas, imploram para ficar juntos  Luria gostava

de falar em “ciência romântica”. Eles se encontram na intersecção de fato e fábula, a intersecção que caracteriza (como fiz em meu livro Tempo de despertar) a vida dos pacientes aqui narradas. Mas que fatos! Que fábulas! A que os devemos comparar? É possível que não disponhamos de modelos, metáforas ou mitos já existentes. Teria chegado a hora de novos símbolos, novos mitos?269.

Parece evidente que Sacks trata suas hipóteses, assim como aquelas dos cientistas que o precederam, como construções ao apontar a estrutura narrativa, entre fato e fábula, dos discursos. Suas hipóteses acerca dos casos clínicos que apresenta jamais caracterizam uma patologia como déficit, termo pelo qual a neurologia ainda guarda especial predileção, sendo que um dos déficits mais comuns seria justamente a perda da memória. A ciência médica batizou-a de amnésia. Todas as ciências que estudam as funções cognitivas debruçam-se sobre o tema da memória, quer em seus aspectos neurológicos, quer nos aspectos relacionais. Mas apesar dos relatos de Luria, poucos são os cientistas que se dedicam a pensar o assunto de maneira menos dicotomizada. Além de Sacks, o neurologista António Damásio busca de igual modo integrar perspectivas para compreender algo mais a respeito dos complexos processos que envolvem o psiquismo humano. Sua conceitualização de memória aproxima-se bastante da de Sacks.

Nos córtices cerebrais [...], verifica-se um padrão de atividade neural em constante mutação. Não há nada de estático, nenhuma linha de base, nenhum homenzinho  o

homúnculo  dentro do cérebro como uma estátua, recebendo sinais da parte

correspondente do corpo270.

As conclusões desses importantes cientistas contemporâneos não são diferentes das que Freud extraíra de suas próprias observações e estudos, um século antes, como veremos a seguir. Nos

269 SACKS, 2000, p. 11. 270 DAMÁSIO, 1998, p. 174.

casos clínicos que Sacks271 e Damásio272 apresentam, observa-se que tudo aquilo que a memória pode ‘recuperar’ é sempre sujeito a revisão. Não há nada de fotográfico no cérebro, nada mecânico; “cada percepção é uma recriação, toda recordação é recategorizante [...] Há sempre processos dinâmicos em ação, e lembrar é sempre reconstrução, não reprodução”273.

A neurologia como um campo científico delimitado funda-se no século 19. Desde então, segundo Sacks,

a opinião corrente tendia, em seu conjunto, a uma concepção segundo a qual estabelecíamos relação com uma localização estrita; o cérebro fora apenas uma espécie de mosaico de ‘centros’ bem determinados; no interior de cada um deles, podíamos encontrar ‘depósitos’ de imagem e de ‘memória’274.

Entre dizer que um cérebro está danificado e que, portanto, é incapaz de realizar operações antes costumeiras, e dizer que processos ou sistemas operatórios comumente encarregados de construir determinados padrões encontram-se alterados, em transformação, vai uma enorme distância. Sabe-se hoje que nem mesmo a cor percebida pelo órgão da visão existe em si, mas depende do contexto em que foi percebida e das condições objetivas e subjetivas do sujeito. Assim, o postulado segundo o qual as impressões são recebidas e estocadas no cérebro como ‘acontecidas’ não tem sustentação científica.

Rosenfield reconhece que Freud havia, desde o século 19, contestado com propriedade a validade da teoria localizacional e funcional do cérebro. Para aquele pesquisador, o Projeto contém uma descrição do funcionamento do sistema límbico, hoje associado também à memória, com trinta anos de avanço sobre a “descoberta” daquele sistema. De acordo com Rosenfield, os relatos do neurocirurgião canadense Wilder Penfield no início dos anos trinta, provavelmente refletiam a abordagem freudiana da memória: “Penfield observou em pacientes conscientes que uma estimulação elétrica de certas áreas cerebrais desencadeava o que ele considerava como um

271 SACKS, 1995, 1997, 2000. 272 DAMÁSIO, 1998.

273 SACKS, 1995, p. 184.

274 “l’opinion penchait dans son ensemble vers une conception selon laquelle on avait affaire à une stricte localisation; le cerveau n’aurait été qu’une sorte de mosaïque de ‘centre’ bien déterminés; à l’intérieur de chacun d’eux, on pouvait trouver des ‘dépôts’ d’images et de ‘mémoire’” (SACKS, 1998, p. 12).

ressurgimento de experiências ‘esquecidas’”275. A conclusão da pesquisa demonstrava que as recordações são impressões fragmentárias semelhantes a imagens de sonho,

contendo elementos que não pertencem à vivência anterior do paciente. [...] Para produzir-se, a sensação da memória parece necessitar de uma causalidade emocional, isto é, uma atividade límbica, cujo papel é igualmente determinante na coesão do agenciamento das lembranças. Será que nessas condições as lembranças existem realmente?276.

Por meio de experimentos bem controlados e de técnicas bastante precisas como a ressonância magnética e a tomografia computadorizada, foi possível observar que não existem no cérebro centros específicos de percepção e de reconhecimento, como tantos neurologistas imaginavam. Fazer face às constantes mudanças ambientais não é possível senão “de uma maneira que leve em conta tanto o novo e o inesperado quanto o caráter individual de nossas experiências passadas”277. Pesquisas realizadas pelo imunologista americano Gerald Edelman, conhecidas como Neural Darwinism, e que lhe valeram o Prêmio Nobel em 1972, levaram os pesquisadores contemporâneos à conclusão de que o mundo externo não ensina ao organismo aquilo que ele sabe: “o próprio organismo deve criar sentido a partir do mundo exterior, e não há qualquer receita para conseguir isso”278.

A investigação conduzida por Damásio aponta para a mesma direção:

Os diversos níveis de regulação são interdependentes ao longo de várias dimensões. Por exemplo, um determinado mecanismo pode depender de um outro mais simples e ser influenciado por um terceiro de complexidade idêntica ou superior. A atividade no hipotálamo pode influenciar a atividade neocortical, diretamente ou por meio do sistema límbico, e o inverso também pode acontecer279.

275 “Penfield observa chez des patients conscients qu’une stimulation électrique de certaines aires cérébrales déclenchait ce qu’il considérait comme une résurgence d’expériences ‘oubliés’” (ROSENFIELD, 1989, p. 21). 276 “contenant des éléments qui n’appartiennent pas au vécu antérieur du pacient. [...] Pour se produire, la sensation de mémoire semble nécessiter ume causalité émotionnelle, c’est à dire une activité limbique, dont le rôle est également déterminant dans la cohésion de l’agencement des souvenirs. Dans ces conditions, les souvenirs existent- ils réelement?” (ibid., p. 22).

277 “d’une manière qui prenne autant en compte le nouveau et l’inattendu que le caractère individuel de nos experiences passées” (ibid., p. 23).

278 “l’organisme doit lui-même créer du sens à partir du monde exterieur, et il n’existe aucune recette pour y parvenir” (ibid., p. 24).

O sujeito contemporâneo é cada vez mais dependente da memória: conectado em rede, interligado, cada qual com bilhões de unidades de informação armazenadas e disponíveis em HDs, prolongamentos do corpo, órgãos suplementares, cifrados em bytes. No entanto, como corpo atravessado pela linguagem, torna-se impossível de ser estocado e armazenado, já que está constantemente sujeito às atividades adjacentes, às mudanças ambientais, aos afetos, ao significante. Se é que o computador não esquece, ou seja, se suas condições de armazenamento são bem garantidas, nada impede, porém, que a recuperação de um dado, por um momento ou para sempre, torne-se impossível.

O próximo capítulo examinará o conceito de contingência, aqui esboçado, sobretudo em sua gênese lógica, tendo como perspectiva seu entrelaçamento com o conceito de memória.