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Accountability Social e Mídia

No documento Responsabilidade social da mídia (páginas 107-115)

4 Referenciais Teóricos e Contextuais

4.8 Accountability: responsabilização e prestação de contas

4.8.1 Accountability Social e Mídia

O conceito de soberania popular implícito na concepção da democracia e na poliarquia pondera uma base de legitimidade que vai além da existência de mecanismos de checks and balances entre os órgãos do governo e também dos tradicionais mecanismos de controle através das eleições, estabelecendo uma terceira modalidade de accountability, somada às formas vertical e horizontal, a

accountability social.

A accountability social é uma concepção baseada numa matriz teórica que partilha da idéia de que o controle da ação governamental pela sociedade constitui uma especificidade e merece uma distinção à parte das perspectivas de accountability vertical ou horizontal. A noção de accountability vertical e horizontal necessitaria de acompanhamentos para garantir a legitimidade necessária para o exercício da democracia. Análise de Enrique Peruzzotti e Catalina Smulovitz (2000) dá ênfase a formas não tradicionais de controle e o foco nos mecanismos sociais de

accountability. Os autores crêem que, nos países da América Latina, esses

mecanismos, tanto horizontais quanto verticais, são precários. As experiências de democracias delegativas (DAHL, 1997) e a excessiva centralidade no Executivo prejudicam a efetividade de mecanismos de check and balances entre os Poderes, enfraquecendo o exercício da accountability horizontal. Peruzzotti e Smulovitz definem o accountability social como um mecanismo de controle não eleitoral, envolvendo mecanismos institucionais e não institucionais que se baseiam na ação de múltiplas associações de cidadãos, de movimentos sociais, ou da mídia,

com o objetivo de dar visibilidade a erros e falhas do Estado, trazer novos pontos à agenda pública ou influenciar decisões políticas Tais procedimentos permitem que os mecanismos sejam acionados para avaliar políticas públicas e a ação dos burocratas, de maneira diferenciada dos mecanismos verticais de accountability incapazes de alcançar funcionários específicos (SMULOVITZ; PERUZZOTTI, 2002).

A noção de accountability social incorpora novos atores que não possuem mandato formal (quando comparado às eleições — accountability vertical — e as modalidades de accountability horizontal) para sanções legais, mas geralmente simbólicas, ainda que algumas ações dessa forma de controle possam gerar punições e mudanças nas políticas públicas. Ademais, tais medidas se relacionam diretamente à discussão sobre controle social instaurado por meio da influência direta da sociedade sobre o Estado, através da inclusão de novos atores nas instâncias de decisão ou de criação de instâncias institucionalizadas de mediação Estado-Sociedade (GRAU, 1998). A cientista social Nuria Cunill Grau (1998), do Centro Latino-americano de Administração para o Desenvolvimento82 relaciona a eficácia dos meios de accountability social às oportunidades de participação e deliberação abertas pelo Estado, da transparência e compromisso deste com princípios democráticos e participativos e com a criação de mecanismos institucionais adequados para o exercício da prestação de contas. Portanto, o conceito de accountability depende da combinação de formas diversificadas de responsabilização, percebidas como mecanismos complementares para o controle

da ação governamental e está relacionado à consolidação da democracia, com a construção de uma relação transparente e eficiente entre Estado e Sociedade.

A inclusão de uma terceira dimensão da accountability não é consenso entre os cientistas políticos. Diante da incapacidade de aplicação de sanções formais, as ações de organizações não-governamentais e de instituições de comunicação que fundamentam o conceito de accountability social, somente ganhariam efetividade quando sensibilizam algum dos Poderes constituídos (accountabiliy horizontal) ou interferem no processo eleitoral (accountability horizontal). Nessa perspectiva, o status de uma terceira dimensão é injustificado (MIGUEL, 2005). Entretanto, a presente tese utiliza a divisão tripartite na relação de prestação de contas entre Estado com a Sociedade, compreendendo principalmente a importância da mídia no processo de accountability. Nessa perspectiva ampliada, as instituições de comunicação cumprem um papel essencial ao fiscalizar e denunciar irregularidades, como demonstra a análise de Sílvio Waisbord (2000) sobre o papel do jornalismo investigativo na consolidação da democracia na América do Sul.

O funcionamento satisfatório da accountability depende da existência de sanções efetivas sobre os representantes e da “provisão de informação adequada e plural (não apenas sobre a atuação dos governantes, mas sobre o mundo social de modo geral) e do interesse pela política disseminado nos diferentes grupos da população” (MIGUEL, 2005, p. 29). Miguel aponta que há, nos regimes considerados democráticos, sanções de tipo eleitoral aos governantes, porém “o

pluralismo dos meios de informação é limitado, seja pelos constrangimentos profissionais, seja pela pressão uniformizadora da concorrência mercantil” ou, de forma mais decisiva, devido aos interesses dos proprietários das empresas de comunicação de massa” (2005, p. 29). As instituições de comunicação teriam dificuldade de lançar para seu cotidiano interno e assuntos de seu interesse o cotidiano olhar crítico às ações governamentais (DOYLE, 1993), constituindo assim um ponto cego nas teorias da democracia, que muitas vezes olvidam do papel decisivo da mídia no processo eleitoral e no ordenamento político (MIGUEL, 2000), posição chave reiterada pelo professor emérito da Universidade de Amsterdam Denis McQuail “rightly or wrongly, mass media are perceived to

occupy a key position in the public life of most societies and have thereby attracted strong but divergent expectations an attitudes” (McQUAIL, 2003, p.5).

A centralidade da mídia na sociedade estimulou McQuail a escrever o livro Media

Accountability and Freedom of Publication, no qual o autor busca analisar quais

são as responsabilidades da mídia e que tipos ações podem ser desenvolvidas para fazer com que as instituições de comunicação prestem contas de sua atividade, entendendo que o conceito de accountabiity não é uma outra palavra para controle, nem é o mesmo que responsabilidade. As definições dos dicionários “do not take us very far, although they do focus mainly on idea of being called to

answer for (explain) some action (or omission) by someone else who has a right to expect this” (McQUAIL, 2003, p. 15). McQuail analisa a natureza da accountability

para as instituições de comunicação na atualidade, compreendendo que o conceito de “media accountability” não tem sido suficientemente desenvolvido por

outras publicações acadêmicas, sua tese é a de que há accountability quando “authors (originators, sources, or gatekeepers) take responsibility for the quality

and consequences of the publication, orient themselves to audiences and other affected, and respond to their expectations and those of the wider society”

(McQUAIL, 2003, p.19). Segundo o autor, potenciais obstáculos para uma prestação de contas da mídia são numerosos e variados, entre eles a perspectiva comercial embutida nos dogmas inspirados na teoria libertária da imprensa, que pressupõe a liberdade de colocar o governo em xeque e está embasada em termos da necessidade social e do interesse público. O direito de livre publicação tem se fundamentado como um instrumento essencial para a promoção da democracia e uma pré-condição para sua prática, especialmente no que tange ao estabelecimento dos mecanismos de accountability vertical, horizontal e social dos três Poderes e, conseqüentemente, das instituições de comunicação muitas vezes autoclassificadas de “Quarto Poder”, conceito que, segundo Mário Mesquita, precisa ser observado com especial cuidado. Para o professor português, o conceito é problemático por variadas razões: a) nem a mídia, nem o jornalismo correspondem às definições clássicas de poder constituído como a capacidade de ação e de meios concretos de coerção no quadro de uma política; b) o conjunto de instituições de comunicação e suas conseqüentes práticas jornalísticas não se articulam num centro decisório, unificado e coerente, análogo aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; c) quer se tenha presente a estrutura das empresas mediáticas, que se pense nas formas de produção jornalísticas, o grau de autonomia da mídia e do jornalismo é reduzido. Dessa forma, o poder da mídia é condicionado e controlado por todos os outros, ou seja, pelos centros de decisão

política, econômica, tecnológica e militar. Contudo, Mesquita reconhece o valor da expressão Quarto Poder, situando-a “essencialmente, ao nível das percepções. Embora com variações, consoante as épocas históricas e as tendências ideológicas, o jornalismo está associado à idéia de força persuasiva” (MESQUITA, 2004, p.74) e, como tal, não está isento de responsabilidades perante o seu público. Os princípios apresentados por Mesquita são próximos à perspectiva de Valério Zanone, que ratifica a idéia de que “a liberdade de informação não é realmente um poder no sentido constitucional, mas, antes, de tudo, o fundamento da legitimidade dos poderes delegados”, pois “a liberdade de informação é fundamental para um correto exercício dos poderes democráticos e constitui, portanto, um direito que não deve ser atribuído, mas garantido” (BOBBIO, MATTEUCCI, PASQUINO, 2000, p.1041). Portanto, assumindo-se ou não como um Quarto Poder, as instituições de comunicação também devem prestar contas de sua própria atividade.

Em Reviving the Fourth Estate: Democracy, Accountability and the Media, a jornalista australiana Julianne Schultz observa que o termo Quarto Poder é um conceito de definição flexível, de forma que tradicionalmente as instituições de comunicação se projetam como watchdogs (cães de guarda) da democracia, mas nem sempre tem a independência e autonomia necessária para expor publicamente notícias que contrariem seus próprios interesses, assim, a independência necessária para a atuação da mídia tem como contrapartida a

accountability a ser medida por instrumentos como “acceptance of ethical codes; meaningful public accountability; providing more diverse and challenging

information; the methods by which it is obtained, presented and pursued”

(SCHULTZ, 1998, p. 9). Sem a criação de instrumentos de prestação de contas e responsabilização, a mídia torna-se “little more than another powerful elite,

detached from the public interest which gives it legitimacy” (SCHULTZ, 1998, p.

10) ou simplesmente um “negócio como outro qualquer”, sem eventuais obrigações e posições privilegiadas de acesso à informação que tem nas democracias, dilema expressado em frase do magnata mediático Rubert Murdoch83, em 1961: “unless we can return to the principles of public service we

will lose our claim to be the Fourth State. What right have we to speak in the public interest when, too often, we are motived by personal gain” (SCHULTZ, 1998, p.

230).

McQuail destaca a diferença conceitual entre controle e accountability, destacando que medidas de controle envolvem o uso do poder para atingir alguma finalidade restritiva diferentemente dos princípios de accountability, que devem operar a

posteriori assegurando ao público e aos responsáveis pelo conteúdo um espaço

de debate e justificativa de decisões de publicação de determinado conteúdo, que pode ser melhor equacionados a partir da instauração de mecanismos de

accountability (ou, como veremos a seguir, Meios de Assegurar a

Responsabilidade Social da Mídia) que têm como principais propósitos:

83 Empresário australiano, naturalizado estadunidense, presidente da News Corporation, um dos maiores conglomerados de mídia que detém o controle da FOX, da SKY e da DirecTV, além do site

My Space, dos jornais New York Post, Wall Street Journal, e dos diários ingleses The Sun e The Times, além de estúdios de cinema e canais de tevê por assinatura.

i) To improve the quality of the product or service, ii) to promote trust on the part of the receiver or audience, iii) To ensure the performance of some winder public duty, iv) To prevent some harm to an individual or society (by warning of liability), v) for reasons of control by autorities, or by media industry, vi) To protect the interests of the comunicator, whether organizationally or professionally (McQUAIL, 2003, p. 308).

Após contextualizar o conceito de accountability originário da ciência política e suas três formas de atuação: vertical, horizontal e social e de inserir o debate sobre as possibilidades das instituições de comunicação desenvolverem maneiras de accountability, no próximo capítulo, serão apontadas experiências que constituem mecanismos de promoção da accountability por parte da mídia, elencadas no conceito de Formas ou Meios de Assegurar a Responsabilidade Social da Mídia (BETRAND, 2002).

No documento Responsabilidade social da mídia (páginas 107-115)