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Propriedade Privada, Esfera Pública e conceitos de Sociedade Civil

No documento Responsabilidade social da mídia (páginas 56-62)

4 Referenciais Teóricos e Contextuais

4.2 Propriedade Privada, Esfera Pública e conceitos de Sociedade Civil

O século XVIII marcou uma transformação fundamental nas formas de comunicação, pois embora o conceito de esfera pública, entendida como meio de interação entre os cidadãos no processo de circulação e tomada de decisões políticas (HABERMAS, 1989) tenha sido iniciado na Grécia clássica, os modernos conceitos de público e privado nascem na época do Iluminismo. Alguns autores, como Jürgen Habermas (1989), associam as instituições de comunicação às funções e problemáticas da esfera pública, pois nas cidades se organizaram espaços específicos (como coffee-houses, os sallons e comunidades comensais) para troca de opiniões e comentários, dentre outros assuntos, sobre as produções literárias e, posteriormente, políticas da burguesia. A esfera pública seria então constituída como o domínio da vida social, à medida que os cidadãos reuniam-se e se associavam para discutir assuntos de interesse público.

A existência da esfera pública burguesa estava baseada numa separação entre a esfera privada (contendo as atividades econômicas) e a esfera política do poder. Conduzia a uma diferenciação entre a sociedade civil e o Estado cada vez mais “confusa devido à extensão da soberania e de todo o povo, por efeito do sufrágio universal, e pelas intervenções cada vez mais freqüentes do Estado, como agente regulador nos mecanismos da Economia” (CORNU, 1994, p.188). Essa intervenção produz transferências de competências entre o Estado e a sociedade, por meio da assunção do Estado de atividades de caráter privado e da passagem de atividades próprias da autoridade pública para organismos privados, sendo que

a distinção entre privado e político, entre sociedade e Estado, tem uma complexidade cada vez maior. Nesse cenário opera-se uma inversão quanto ao desempenho da imprensa que não se constitui apenas como um ponto crítico de ligação entre a esfera privada e a esfera do poder, mas também como instrumento público de penetração do espaço sociopolítico no domínio doméstico. Embora fundamental, a perspectiva de análise de Habermas recebeu críticas porque, segundo pesquisadores como Roger Silverstone, a idéia de esfera pública foi constituída como uma fantasia à medida que não contemplava a pluralidade da sociedade composta também por mulheres e trabalhadores que não tinham participação efetiva na esfera pública, e também pelo fato do filósofo alemão deixar de reconhecer a “pluralidade e as diferentes maneiras pelas quais as discussões e debates públicos podem ocorrer significativamente” (2002, p.273) Nancy Fraser (1987) critica que o alto nível de abstração de Habermas omite questões de gênero presentes sociedades concretas. As referências ao sistema e o mundo da vida, em sua a produção material e simbólica, pública e privada elidiriam distinções entre dos “papéis do macho e da fêmea”.

Peter Dahlgren estrutura, em seu livro Television and the Public Sphere (1995, p.8), a ascensão da esfera pública emergindo do capitalismo liberal, em países como Grã-Bretanha, França e Alemanha. O desaparecimento do feudalismo, o crescimento dos Estados Nacionais e o desenvolvimento das atividades econômicas das classes médias colaboraram para a importância cada vez maior da tipografia na comunicação enraizando-a na esfera política.

Para alguns autores, como Rogério Santos, é importante contextualizar que o século XVIII também foi marcado pela expansão de cartas e relatos que passam a ser essenciais no intercâmbio de informações e, desta maneira, a formação moderna de opinião pública ao longo do Iluminismo ocorre num primeiro momento “em espaços íntimos de discussão de idéias (…) transferindo-se, depois, para os debates mediatizados pelos meios impressos, por meio da colaboração de uma intelectualidade crítica nascente” (SANTOS, 1998). Esta transformação histórica faz com que o conceito de público adquira a conotação atual, “referindo-se a uma área da vida social à margem do domínio familiar e dos amigos íntimos e também ao domínio do público de conhecidos e estranhos que integram uma grande diversidade de pessoas” (SANTOS, 1998, p. 11). Por um lado, embora as instituições de comunicação tenham se constituído como um dos agentes presentes na esfera pública, por outro buscaram historicamente garantir que não houvesse interferência em suas atividades de acordo com os pressupostos liberais. Para Lavina Ribeiro, “o caráter privado da origem e da evolução da imprensa é resultante do próprio caráter privado da sociedade burguesa em movimento” (RIBEIRO, 1989).

Essa natureza privada das ICs é freqüentemente utilizada como argumento para evitar não só a interferência governamental na cobertura jornalística, como também para justificar independência e autonomia essenciais ao interesse público56, pensamento didaticamente exemplificado pela afirmação atribuída ao

56 No âmbito da atuação das instituições de comunicação, toma-se nessa tese interesse público como sinônimo do tema relevante socialmente, daquilo que “carry out a number of important, even

economista Willian Peter Hamilton, colaborador do Wall Street Journal na década de 1920: “um jornal é uma empresa privada que nada deve ao público, que dele não recebe nenhum privilégio. Não é, portanto, afetado pelo interesse público. Ele é, de modo categórico, propriedade de seu dono, que está vendendo um produto manufaturado por sua conta e risco” (SCHMUHL: 1984, p. 44). Assim, com a intensificação das idéias liberais, formulou-se, a partir de pensadores como John Milton, Thomas Jefferson e John Stuart Mill, a Teoria Libertária da Imprensa, pela qual:

a imprensa e os outros meios de comunicação devem ser de propriedade privada e desligados (...) do governo para que possam buscar a verdade cada um à sua maneira e colocar o governo em xeque. A imprensa pode ser irresponsável tanto quanto responsável, imprimir a imagem de falsidade tanto quanto a da verdade, porque os cidadãos podem separar uma da outra. O importante na teoria libertária é a tese que deve haver um mercado livre de idéias, porque se todas vozes puderem ser escutadas, a verdade, certamente, acabará por emergir (GOODWIN, 1993, p. 45).

A imprensa tal como praticada contemporaneamente nas modernas democracias, surge e se desenvolve a partir da vontade de emancipação da sociedade civil57 em relação aos Estados absolutistas predominantes na realidade européia no período pré-iluminista. Cientistas sociais contemporâneos preconizam um descolamento entre Estado e Sociedade Civil e avalizam o argumento de que “só pode haver reforma que produza um Estado ativo, competente e democrático se trouxer consigo uma sociedade civil igualmente forte, ativa e democrática” (NOGUEIRA:

essential, information and cultural tasks and it is in the general interest (or good of the majority) that these are carried out well and according to principles of efficiency, justice, fairness, and respect for current social and cultural values” (McQUAIL, 2003, p. 47).

57 Conceito entendido como o segmento social que surge como “campo das relações econômicas privadas que foram estabelecidas sob a égide da autoridade pública”, compreendendo uma nova esfera de ‘público’ constituída por indivíduos privados que se juntaram para debater sobre a regulação do estado” (THOMPSON, 1995, p.145).

2004, p.58) e que a sociedade civil brasileira ressurgiu como “único núcleo possível de resistência ao Estado autoritário” (DAGNINO, 2002, p. 9), vigilante de um conjunto de direitos tomados como parâmetros básicos de convivência social (dentre eles, a liberdade de imprensa). Para Cohen e Arato, como condição necessária ao exercício da democracia é preciso distinguir Estado, economia e sociedade civil, já que só uma reconstrução dessas três partes pode “respaldar el

drástico papel opositor de este concepto de los regímenes autoritarios y de renovar su potencial crítico em las democracias liberales” (ARATO; COHEN, 2002,

p.8). As definições de sociedade civil acima emergem sistematicamente desde o século XVIII, segundo Ellen Wood, diferenciando-se das noções anteriores de sociedade por representar uma esfera distinta do Estado “separada das relações e das atividades humanas, mas nem públicas nem privadas, ou talvez as duas ao mesmo tempo, incorporando toda uma gama de interações sociais fora da esfera privada do lar e da esfera do mercado” (WOOD, 2003, p.206)

Com compreensão diferenciada ao uso mais contemporâneo, Norberto Bobbio, no artigo A sociedade civil em Gramsci (2002), enlaça o conceito à sua origem em Kant e Locke, por exemplo, como sinônimo de sociedade política (e, por conseqüência, Estado). Antônio Gramsci, por sua vez, ao preconizar a necessidade de um Estado Ampliado que contemplasse classe política e sociedade civil, relacionou o conceito, segundo Bobbio (2002), não ao momento da estrutura marxista (campo econômico), mas à superestrutura, entendida como o espaço de busca da hegemonia política e cultural, de construção de vontade coletiva que pode ser gerada “através do reconhecimento das condições objetivas

(...) que o sujeito se torna livre e se põe em condições de poder transformar a realidade” (BOBBIO, 2002, p.60).

Contemporaneamente, a “batalha” por hegemonia cultural tem estado cada dia mais presente nas ICs, já que “a competição pelo apoio popular que se dava através da cultura na opinião de Gramsci, é agora ‘luta comunicacional’ e se dá nesse momento através da comunicação política, particularmente no jornalismo televisivo” (GOMES, 2004, p.194). Segundo Daniel Hallin, a mídia realiza a função de manutenção da ideologia política dominante ao divulgá-la, celebrá-la e atuar interpretando o mundo aos seus termos e o conceito de hegemonia “é empregado para explicar o comportamento da mídia, o próprio processo de produção cultural”, sendo a ideologia dominante conformadora da produção de notícias e entretenimento, algo que explica “por que podemos esperar que a mídia funcione como agente de legitimação”, embora esteja relacionada ao controle político (apud LIMA, 2001, p. 168).

No documento Responsabilidade social da mídia (páginas 56-62)