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Jornalismo e Teoria Libertária da Imprensa

No documento Responsabilidade social da mídia (páginas 62-69)

4 Referenciais Teóricos e Contextuais

4.3 Jornalismo e Teoria Libertária da Imprensa

O liberalismo decorrente do Iluminismo foi marcado pela influência decorrente do período pós-descobrimentos marítimos que acentuou o crescente comércio entre as nações e o intercâmbio de costumes e culturas à medida que jornais, panfletos e livros foram publicados em quantidade intensificada nos séculos XVII, XVIII e XIX. A partir do século XIX, os meios de produção e circulação em expansão “foram acompanhados pelo crescimento significativo nos níveis de alfabetização, na Europa e em outros lugares, de tal modo que os materiais impressos pudessem ser lidos por uma proporção sempre crescente da população” (THOMPSON, 1995, p. 9). A supremacia da razão defendida pelos iluministas, que deram origem às idéias liberais transformou a relação de crença na autoridade e no poder, pois segundo René Remond (apud NOVELLI, 1994, p. 74), em relação ao método da autoridade, “o liberalismo acredita na descoberta progressiva da verdade pela razão individual. Ele se opõe ao julgo da autoridade, ao respeito cego pelo passado, ao império do preconceito, assim como aos impulsos dos instintos”. Outro ponto de mudança na antiga ordem foi à emergência de uma classe média burguesa que impôs limitações ao poder da monarquia e aos privilégios da nobreza.

Na Inglaterra, por exemplo, a revolução de 1688 resultou na supremacia do Parlamento sobre a Coroa e na criação de um sistema de partidos. A sociedade passou a ocupar um espaço público, e, por conseqüência político, que se materializava com a idéia relacionada à necessidade de uma imprensa “livre” e

“desvinculada das instâncias governamentais”. John Milton em Areopagítica, seu discurso pela liberdade de imprensa de 23 de novembro de 1644, ao Parlamento da Inglaterra, chega a afirmar que “quem mata um homem mata uma criatura racional, mas quem destrói um bom livro mata a própria razão” (1999, p. 46). Afinal, para pensadores liberais pioneiros (Jeremy Bentham, James Mill e John Stuart Mill):

O estabelecimento de uma imprensa independente, que estivesse livre da censura e do controle do Estado era vital para o desenvolvimento de uma política democrática onde a diversidade de opiniões pudesse ser expressa e onde as atividades daquele que governa pudessem ser examinadas, criticadas e, se necessário, restringidas (THOMPSON, 1995, p.29).

As idéias liberais estiveram presentes nas ações dos chamados “pais fundadores” dos Estados Unidos. A posição se reflete nos debates que têm como referência a criação da 1.ª Emenda à Constituição estadunidense, que fundamenta a Teoria Libertária da Imprensa: “o Congresso não fará qualquer lei (...) que proíba o livre exercício destas ou que restrinja a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o direito de as pessoas se reunirem pacificamente ou de requererem ao governo a reparação por injustiça praticada”. Em carta enviada a um correspondente, Thomas Jefferson afirma que se lhe fosse dado escolher entre um país com

governo e sem imprensa, ou um país com imprensa e sem governo, não hesitaria em escolher a segunda opção.

O pensamento original do liberalismo se baseia em dois pilares: a afirmação das liberdades individuais e a respectiva autonomia de sua ação, principalmente econômica, no quadro do Estado. Há um terceiro aspecto que tem a ver com a

forma do governo e com a exigência estabelecida por Locke, e posteriormente por Montesquieu, do equilíbrio entre os poderes. Os regimes liberais serão fiéis a uma delimitação dos três poderes e ao respeito por um jogo equilibrado contra a tentação de abuso de poder que pode ser aproximar de quem o detêm. Nesse sentido, os mecanismos de controle, pesos e contrapesos (checks and balances) podem oferecer as melhores garantias de liberdade política. Nessa perspectiva, o Poder Legislativo deve ser confiado a um Parlamento eleito. O Executivo mesmo que sob responsabilidade em alguns países liberais da Europa à uma família real, tem sua ação sujeita à uma constituição. Aos dois poderes, se junta o Poder Judiciário, não só independente dos outros dois, mas também com a capacidade de desempenhar o papel arbitral já que “as reivindicações liberais incidem sobre a inamovibilidade dos juízes que devem em caso nenhum ser joguetes do poder político, e sobre a sua eleição para que não sejam servo de nenhum senhor” (CORNU, 1994, p.176). Ademais, há uma grande preocupação com a instituição do júri, a responsabilidade de dar um veredito é de um grupo de jurados, eleitos ou designados por tiragem aleatória, cuja imparcialidade deveria ser garantida. Uma das conquistas precoces da imprensa à procura de liberdade na Inglaterra foi o

Libel Act de 1792, que transferiu para o júri o julgamento das questões de fundo

nos casos de difamação.

Foi a partir da influência do pensamento liberal e do pensamento sobre a separação dos poderes que nasceu, para qualificar o trabalho da imprensa, a

expressão “quarto poder”. Thomas Carlyle58 atribuiu sua autoria ao escritor irlandês Edmund Burke, mas não há vestígios desta conceituação em sua obra escrita. De qualquer maneira, a disseminação das idéias liberais inaugura uma era de tensão entre a “esfera do poder e a espera pública, doravante ocupada por uma imprensa com meios mais poderosos e uma audiência mais vasta” (CORNU, 1994, p. 197). Segundo Daniel Cornu (1994, p.199), no século XIX houve uma mostra comparativa interessante entre atribuições e prestação de contas entre os Poderes do Estado e da Imprensa. O jornal Times havia protestado contra a aprovação concedida pelo ministro dos Negócios Estrangeiros Britânico ao golpe de Estado de dezembro de 1851, no qual Luís Napoleão instaurou um regime presidencial autoritário na França. Tal crítica valeu um interessante pronunciamento do então Primeiro-Ministro, Lorde Derby, na Câmara dos Comuns: “uma vez que a imprensa inglesa aspira partilhar a influência dos homens de Estado, deve igualmente partilhar as responsabilidades dos homens de Estado”. O discurso estimulou réplica em dois artigos publicados em 6 e 7 de fevereiro de 1852 que diferenciavam os objetivos e os deveres do Poder Executivo com o “poder da imprensa”: “ambos os poderes são constantemente separados, geralmente independentes, por vezes diametralmente opostos”, pois “o primeiro dever da imprensa é obter a compreensão mais rápida e mais correta dos acontecimentos da época e, revelando-os instantaneamente, fazer com que sejam propriedade comum da nação”. Os artigos afirmavam que “a imprensa vive de revelações, recorre à opinião pública, antecipa, se possível, os acontecimentos” e essa argumentação de ocupação da esfera pública e de uma maneira que associa

a transmissão da informação à reflexão crítica, é avaliada como diametralmente oposto aos mecanismos de funcionamento do estatal, já que o dever do homem do Estado cotidianamente é desenvolvido em sentido contrário, mantendo longe do público as informações sobre as quais se baseia a sua ação e opinião, reservando-se a si o julgamento sobre os acontecimentos até o último momento e formulando-os em linguagem obscura, sendo que “o dever de um é falar, o dever do outro é ficar calado. Um explica-se pela discussão, o outro pela ação” sendo a obrigação da imprensa “dizer a verdade tal como a encontramos, sem medo das conseqüências; é nossa obrigação não esconder atos de injustiça e de opressão, mas, pelo contrário, revelá-los a julgamento do mundo”59.

A mobilização da imprensa por transparência do Estado, matriz do princípio do “direito público de saber”, faz parte de um sistema de relações entre as formas de soberania e as formas de governo que estimulará o liberalismo a partir do século XIX. A luta do liberalismo contra o absolutismo se manifesta na reivindicação dos direitos do indivíduo e na afirmação do princípio de separação dos poderes. Norberto Bobbio argumentou que “este princípio visa assegurar a independência do poder judiciário, mero aplicador do direito e, ao mesmo tempo, deixa com o monarca o Poder Executivo, enquanto os representantes do povo recebem a tarefa de definir, mediante a lei, a vontade comum da nação” (BOBBIO, 1991, p. 61). A sociedade passa a ocupar um espaço público, e por conseqüência político,

59 Henry Wickham Steed. The Press. Harmondsworth, Middlesex: Penguin Books, 1938, pp. 75-79 (apud CORNU,1994, p. 177).

que se materializa com a idéia relacionada à necessidade de uma imprensa livre e desvinculada das instâncias governamentais.

A idéia que se difunde então é a de que a liberdade de imprensa tornará possível a revelação da verdade. Num panfleto francês de 1789, chamado Liberté de la

presse (apud NOVELLI, 1994, p. 75), a questão é apresentada da seguinte forma:

“a liberdade de imprensa só pode ser perigosa àqueles que têm interesse em perpetuar os erros e os abusos dos quais se aproveitam, mas seus medos, seus gritos e seus esforços contra essa liberdade provam ainda mais sua necessidade”. Despossuídos dessa liberdade, “a dilapidação das finanças, todas as suas malversações, todas as opressões continuarão”, pois os “administradores, por mais honestos que sejam, só farão operações erradas, só empregarão paliativos, sem nunca destruírem a causa da desordem. O povo, sempre oprimido, ficará sem voz para se lamentar” (NOVELLI, 1994, p. 45).

A função da imprensa, de acordo com o postulado da Teoria Libertária, é vigiar o Estado para que ele não se desvie de seus propósitos originais, viabilizar o intercâmbio de informações, possibilitar o entretenimento e promover a troca, como suporte econômico capaz de assegurar a independência financeira. Para Siebert (1976, p.71), a Teoria Libertária da Imprensa, originada do paradigma liberal clássico, demonstrara sua vantagem no campo teórico e prático, pois tirou algemas das mentes dos indivíduos e abriu novas possibilidades para a humanidade, embora o autor apontasse a necessidade de criação de mecanismos próximos à formulação da Teoria da Responsabilidade Social de Imprensa: “o

maior defeito (da Teoria Libertária) tem sido a dificuldade em providenciar um rigoroso padrão para a operacionalização cotidiana dos meios de comunicação de massa — em resumo, uma fórmula estável que distingua entre liberdade e abuso de liberdade” e “seu grande acerto, no entanto, é a sua flexibilidade, sua adaptabilidade para mudança e, sobretudo, sua confiança na habilidade em fazer avançar os interesses do bem-estar da humanidade pela contínua confiança no indivíduo” (SIEBERT, 1976, p.71).

No documento Responsabilidade social da mídia (páginas 62-69)