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Construindo o objeto de pesquisa: abordagem teórico metodológica

No documento Responsabilidade social da mídia (páginas 42-52)

Na seqüência de trabalho originado no Programa de Iniciação Científica e continuado no mestrado41, esta tese busca aprofundar a análise teórico-conceitual da idéia de Meios de Assegurar a Responsabilidade Social da Mídia, MARS (Media Accountability Systems), e suas possibilidades de aplicação à realidade das instituições de comunicação, tendo como referência experiências praticadas em Portugal (AACS e ERC) e na Espanha (CAC e CIC), dois países que, assim como o Brasil passaram por experiências autoritárias e redemocratização nos últimos quarenta anos, além de haver traços históricos comuns calcados no patrimonialismo (FAORO, 2001; HOLANDA, 2002). Ademais, há nos sistemas mediáticos de Brasil, Portugal e Espanha, a presença de práticas clientelistas (HALLIN, PAPATHANASSOPOULOS, 2004), baixos níveis de circulação de jornais e profissionalização jornalística, assim como alto grau de “paralelismo político”42 (HALLIN, MANCINI, 2005).

A tese foi desenvolvida tomando como base as técnicas que John B. Thompson (1995) classificou como referencial metodológico da hermenêutica da

41 O presente doutorando foi um dos fundadores e bolsistas de Iniciação Científica do Projeto de Pesquisa e Extensão “SOS-Imprensa”, de 1996 a 1999. Posteriormente (2000-2003), desenvolveu, no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, a dissertação “Formas de Assegurar a Responsabilidade Social da Mídia: modelos, propostas e perspectivas”.

42 Diferentemente do que ocorre na maior parte dos países da Europa central e boreal, a realidade de Espanha, Portugal, Itália e Grécia é caracterizada pelo “political parallelism”, isto é “public

broadcasting tends to be party-politicized. Both journalists and media owners often have political ties or alliances, and it remains fairly common for journalists to become politicians and vice versa”

profundidade, baseado nas formulações de Paul Ricoeur, organizador do método que possibilita perceber que o processo de interpretação não se opõe, necessariamente, aos tipos de análise que tratam das características das formas simbólicas, ou às condições sócio-históricas de ação e interação. Pelo contrário, a análise pode estar conjuntamente ligada e articulada como passo necessário ao longo do caminho da interpretação. Assim, foram levadas em conta três fases. A inicial, entendida como “análise sócio-histórica”, quando são consideradas as condições sócio-históricas de criação de Meios de Assegurar a Responsabilidade Social da Mídia, tendo como principais referências as experiências ibéricas (Consejo del Audiovisual de Cataluña, o Consell de la Informació de Catalunya e a

Entidade Reguladora para a Comunicação Social). Depois, principalmente a partir

das entrevistas semi-estruturadas (LAKATOS; MARCONI, 2001) com pelo menos um ator-chave — membro dos segmentos tripartites apontados por Bertrand: a) empresários, b) profissionais, e c) público, a que se pode somar a d) membros de entidade estudada (AACS/ERC, do CAC ou do CIC) — operacionalizou-se a segunda fase que Thompson descreve como sendo a “análise formal ou discursiva” com a agrupação e interpretação das respostas. Foram entrevistados:

1) Portugal:

a) Empresariado: Francisco Avillez Van Zeller (Secretário-Geral da Confederação Portuguesa dos Meios de Comunicação Social no período 2005-2007), Francisco

Pinto Balsemão43 (presidente do grupo Impresa44 e do Conselho Europeu de Editores) e João Palmeiro (presidente da Associação Portuguesa de Imprensa); b) Profissional: Anabela Fino (Secretária da Direção do Sindicato dos Jornalistas); c) Público45: Rogério Santos (professor da Universidade Católica Portuguesa e editor do blogue Indústrias Culturais46), Jorge Pedro Sousa (professor da Universidade Fernando Pessoa), Mário Mesquita47 — vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, membro do Conselho Executivo da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, professor da Escola Superior de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa e da Universidade Lusófona, primeiro provedor dos leitores imprensa generalista48 portuguesa (Diário de Notícias 1997-98) e José Manuel Paquete de Oliveira (professor no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa e provedor do telespectador na RTP desde 2006);

d) Entidade: Estrela Serrano (vogal do Conselho Regulador da ERC e ex- provedora dos leitores do Diário de Notícias no período 2001-2004), Alberto Arons de Carvalho (deputado pelo Partido Socialista, ex-membro do Conselho de Imprensa — em 1975 e no período 1985-88 —, Secretário de Estado da

43 Fundador do Partido Social Democrata (PSD) e Primeiro-Ministro português no período 1981-83. Membro da Comissão que elaborou a Lei de Imprensa de 1975 e membro do Conselho de Imprensa (1975-80), tendo sido seu vice-presidente no período 1975-78.

44 Um dos principais conglomerados de mídia de Portugal, controlador, dentre outros, da tevê privada SIC, da Revista Visão e do jornal Expresso (www.impresa.pt).

45 Também foram entrevistados Nelson Traquina e Francisco Rui Cádima, professores da Universidade Nova de Lisboa, mas ambos depoimentos não foram selecionados para a mostra em razão das respostas terem sido contempladas por outras falas.

46 Disponível em: <www.industriasculturais.blogspot.com>. Acesso em: 12 abr. 2006.

47 Foi vice-presidente do Conselho de Imprensa (84-85), membro do Conselho de Comunicação Social (86-87) e provedor dos leitores do "Diário de Notícias" (97-98). Professor coordenador na Escola Superior de Comunicação Social, professor convidado da Universidade Lusófona.

48 Experiência antecedida em Agosto de 1992 pela experiência de David Borges como ombudsman no jornal desportivo Record.

Comunicação Social entre 1995 e 2002 e professor da Universidade Nova de Lisboa), Maria de Lurdes Monteiro (ex-membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social no período 1999-2006).

2) Espanha49:

a) Empresariado: Francesc Robert, Secretário-Geral da Associació Catalana de Ràdio, criada em 1992, integra todas as emissoras privadas que operam na Catalunha e Josep García Miquel (editor do jornal El Periódico);

b) Profissionais: Albert Musons50, ex-secretário técnico do Col.legi de Periodistes

de Catalunya (1988-2007) e Ramon Espuny, secretário de Medios Públicos do

Sindicat de Periodistes de Catalunya;

c) Público: Lourdes Domingo, coordenadora de comunicação da Teleespectadors

Associats de Catalunya (TAC), e Bernat Aviñoa, membro da Oficina d'Informació i Denúncies da SOS Racisme;

d) Entidade; do CAC Joan Botella51 (professor de Ciência Política na Universitat Autònoma de Barcelona e consellheiro do CAC de 2000 a 2006), Joan Manuel Tresserras i Gaju52 (professor no Departamento de Jornalismo e Ciências da Comunicação da Universitat Autònoma de Barcelona e conselheiro do CAC de 2000 a 2006), Victoria Camps (conselheira do CAC desde 2002; membro do CIC;

49 A maior parte das entrevistas foi gravada com decupagem em português. As respostas por escrito foram mantidas em castelhano.

50 Falecido em novembro de 2007.

51 De 2001 a 2007, foi vice-presidente da EPRA, European Platform of Regulatory Authorities (www.epra.org), que reúne 51 autoridades reguladoras de 42 países europeus.

52 Atual Conseller (Secretário) de Cultura i Mitjans de Comunicació na Generallitat (Governo) da Catalunha.

como senadora, presidente, de 1992-1995, da Comisión Especial sobre los

Contenidos Televisivos, e participante do Consejo para la Reforma de los Medios

de Comunicación de Titularidad Estatal, “Comité de sabios”, instituído pelo governo Zapatero): Manuel Parès i Maicas (professor da Universitat Autònoma de Barcelona e ex-presidente da International Association for Media and

Communication Research, IAMCR, de 1998 a 2002), Marc Carrillo (professor na

Universitat Pompeu Fabra), e Josep Maria Cadena (Secretário Geral do CIC).

3) Brasil53:

a) Empresariado: Ricardo Pedreira (jornalista desde 1978, assessor de comunicação da Associação Nacional de Jornais, ANJ, desde 2004), Jairo Leal (presidente da Associação Nacional dos Editores de Revista, ANER, desde 2006 e vice-presidente da Editora Abril, empresa onde trabalha há 30 anos) e Evandro Guimarães (Membro do Conselho Superior da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, Abert, e vice-presidente de Relações Institucionais das Organizações Globo);

b) Profissionais: Sérgio Murillo de Andrade (presidente da FENAJ, professor na Associação Educacional Luterana Bom Jesus, Ielusc, Joinville-SC);

53 No caso brasileiro, diante da falta de qualquer conselho de imprensa e da fragilidade e inoperância da experiência do Conselho de Comunicação Social (estabelecido constitucionalmente em 1988, colocado em prática em 2002, mas sem atividades desde 2006) não se considerou explicitamente a categoria d) Entidade.

c) Público: Veet Vivarta (secretário-executivo da ANDI) e Alberto Dines (fundador e editor-responsável do Observatório da Imprensa e membro do Conselho de Comunicação Social de 2002 a 2004).

Por fim, após da análise sócio-histórica e da coleta de todos os dados, por meio de visitas e entrevistas com membros dos órgãos estudados, realizou-se a última fase do referencial da hermenêutica de profundidade, que pode ser chamada de “reinterpretação”, buscando oferecer uma análise acerca das informações sistematizadas, estimulando uma reflexão crítica “não apenas da compreensão cotidiana dos atores leigos, mas também das relações de poder e dominação em que esses atores estão inseridos” (THOMPSON, 1995, p.38). Desta forma, a pesquisa para a construção da tese de doutoramento foi realizada em dois eixos:

a) Análise do termo Responsabilidade Social da Imprensa com sua conseqüente aplicação à Mídia dos respectivos debates teóricos acerca do tema a partir de produções acadêmicas nacionais e internacionais. Para isso, foi importante estudar os mecanismos associados à criação de sistemas de accountability (prestação de contas) das instituições de comunicação;

b) Entrevistas com atores-chave a partir do acompanhamento de experiências presentes em Portugal (AACS substitída em 2006 pela ERC) e Espanha (CAC e CIC) e análise das possibilidades de aplicação dos conceitos de Responsabilidade Social da Mídia nas instituições de comunicação do Brasil.

Para tanto, foi realizado levantamento bibliográfico nas publicações brasileiras e em internacionais. Na etapa brasileira, a tese foi construída a partir da identificação dos atores sociais envolvidos  empresários, editores, jornalistas, representantes de associações empresarias (ANJ, ABERT e ANER) e profissionais (FENAJ)  buscando compreender a atuação de cada um deles nas possibilidades de criação e efetivação dos chamados Meios de Assegurar a Responsabilidade Social da Mídia (MARS). Nesse eixo, utilizou-se o conceito desenvolvido por Bertrand em O Arsenal da Democracia (2002), que compreende a necessidade de instrumentos tripartites de intermediação com a participação de representantes de editores (que detém as instituições de comunicação), dos jornalistas (que têm o dever deontológico de informar com precisão) e do público (que tem o direito de ser informado corretamente). A tese também levou em consideração a legislação e as possibilidades de criação, aperfeiçoamento e atuação de mecanismos propostos que balizem e garantam a convivência entre o direito à liberdade de expressão com os chamados direitos de personalidade (intimidade, honra, imagem e à vida privada) e o pluralismo diante da atuação da mídia.

A preocupação em buscar apreender a realidade em sua dinâmica complexa e não-linear validou o enfoque metodológico proposto para o estudo, inspirado na noção da dialética histórico-estrutural formulada por Thompson em que toda realidade é composta, de forma indissociável, por relevos estruturais e processos históricos que podem ser compreendidos pelo pesquisador à luz de suas escolhas

teóricas bem como metodológicas. As formas simbólicas podem ser percebidas como as ações, as falas, os argumentos, e os textos que acabam por se encontrar num campo de força, num território de poder e conflito pela hegemonia. A produção e recepção de formas simbólicas são processos que têm lugar em contextos sociais estruturados espacial e temporalmente, os quais são parcialmente constitutivos da ação e interação que têm lugar dentro deles (THOMPSON, 2002).

Contudo, os contextos sociais das formas simbólicas não são apenas espacial e temporalmente específicos, são também sistematizados de variadas maneiras, no que o conceito de estrutura é essencial para a análise dos contextos sociais, uma vez que sugere a existência de padrões mais ou menos estáveis dentro de uma realidade em constante transformação. Segundo Thompson (2002), podemos distinguir os vários campos de interação e os vários tipos de recursos, regras e esquemas que os caracterizam daquilo que pode ser chamado de instituições sociais54. As instituições sociais podem ser entendidas como conjuntos específicos e relativamente estáveis de regras e recursos, juntamente com as relações sociais que são estabelecidas por elas e dentro delas.

54 De Rousseau a Hegel, passando por Durkheim, pelos teóricos marxistas e por todos aqueles que se dedicaram ao estudo das instituições sociais, o fato é que o conceito é diversificado. Entretanto, para não se alongar demasiadamente num tema tão amplo e repleto de divergências, adota-se, nesta tese, o conceito proposto por Lourau (1996): o “sistema institucional” existente, de onde se extrai a instituição, é um conjunto de relações entre a racionalidade estabelecida (regras, formas sociais e códigos) e os acontecimentos, desenvolvimentos e movimentos sociais que se apóiam implícita ou explicitamente sobre a racionalidade estabelecida ou a submetem à discussão.

Este referencial coloca em evidência o fato de que o objeto de análise é uma construção simbólica significativa que exige uma interpretação. Por isso, devemos conceder um papel central ao processo de interpretação, pois somente desse modo poderemos fazer justiça ao caráter distintivo do campo-objeto. Mas as formas simbólicas estão também inseridas em contextos sociais e históricos de diferentes tipos; e sendo construções simbólicas significativas, elas estão estruturadas internamente de várias maneiras. Para poder levar em consideração a contextualização social das formas simbólicas e suas características estruturais internas, deve-se empregar outros métodos de análise. Buscou-se mostrar que a hermenêutica de profundidade apresenta um referencial dentro do qual esses vários métodos de análise podem ser sistematicamente inter-relacionados (THOMPSON, 1995, p. 355).

Thompson quer reagir à tendência da pesquisa clássica de reduzir tudo a objeto de análise formal. Ele assinala que os objetos de investigação social representam um território pré-interpretado. O mundo sócio-histórico não é apenas um campo- objeto, mas um campo-sujeito construído, em parte, por sujeitos preocupados em compreender a si mesmos e aos outros, e em interpretar as ações, falas e acontecimentos que estão ao seu redor (THOMPSON, 2002). Baseado nessas idéias, Thompson busca montar o referencial metodológico da Hermenêutica de Profundidade. Inicia pela hermenêutica da vida quotidiana, como abordagem introdutória e contextualizante. Trata-se de um momento etnográfico, que utiliza entrevistas, observação participante e outros tipos de pesquisa etnográfica para que se construa o contexto mais abrangente possível do campo-sujeito-objeto. A

razão principal dessa idéia é que as formas simbólicas não podem ser analisadas separadamente dos contextos em que são produzidas e interpretadas.

No documento Responsabilidade social da mídia (páginas 42-52)