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Acerca da multifuncionalidade dos direitos fundamentais

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Os direitos fundamentais exercem múltiplas funções na ordem jurídica. Is- so se justifica não só pelo contexto histórico no qual os direitos fundamentais foram ges- tados ao dar ensejo versar sobre “gerações” ou dimensões de direitos fundamentais (direitos de liberdade, de igualdade, de solidariedade e de globalização política os quais são, respectivamente, direitos de primeira, segunda, terceira e quarta dimensão) perante as quais cada um desempenha um papel diversificado, como também pela compreen-

194 BONAVIDES, 2004, p. 571. 195 Idem, p. 572.

são da dupla perspectiva subjetiva e objetiva desses direitos, temas que serão adiante desenvolvidos.

A constatação da multifuncionalidade197 dos direitos fundamentais não constitui nenhuma novidade, visto que não mais se restringem à tradicional função de direitos de defesa contra os poderes públicos, e pode – embora haja novos e importan- tes desdobramentos vinculados a perspectiva subjetiva e objetiva – ser examinada à luz da teoria clássica dos quatro status de Georg Jellinek do final do século passado, onde encontraria sua vertente.198 Pela importância que ainda hoje exerce esta original con- cepção e pela sua reconhecida relevância para a multifuncionalidade dos direitos fun- damentais, importa esmerar sobre este tema.

De acordo com a lição de Ingo Wolfgang Sarlet, o grande publicista ale- mão Georg Jellinek, na sua obra intitulada “Sistema dos Direitos Subjetivos Públicos”, enunciou concepção original, de acordo com a qual o indivíduo, vinculado a determinado Estado, encontra sua posição relativamente a este cunhada por quatro espécies de situ- ações jurídicas (status), seja como sujeito de deveres, seja como titular de direitos.199 Têm-se, então, os quatro status: status subjectionis ou status passivo; status negativus ou status libertatis; status civitatis ou status positivus; e status activus.

Segundo formulação apresentada por Robert Alexy,200 o status consiste numa espécie de estado (uma situação) no qual se encontra o indivíduo e que qualifica- ria sua relação com o Estado. Um status é, então, uma relação formada entre o indiví- duo e o Estado.201 Robert Alexy assinala que dentro da esfera do dever individual do que Jellinek denominou de status passivo (status subjectionis), o indivíduo estaria su- bordinado ao Estado, sendo, nesse contexto, meramente detentor de deveres e não de direitos, significando, por outro lado, que o Estado possui a competência de vincular o cidadão juridicamente por meio de mandamentos e proibições estatais.202 Consoante Robert Alexy, além desse status subjectionis, Jellinek adota como base a ideia de que,

197 Canotilho salienta que os direitos fundamentais não podem ser hoje designados de uma única dimensão (subjetiva) e de apenas uma função (proteção da esfera livre e individual do cidadão). Se- gundo o citado jurista, atribui-se aos direitos fundamentais uma multifuncionalidade, para acentuar todas e cada uma das funções que as teorias dos direitos fundamentais captavam unilateralmente. CANOTILHO, 2003, p. 1402.

198 SARLET, 2007, p. 183. 199 Idem, p. 183.

200 Robert Alexy recorre abundantemente a Georg Jellinek quando discorre acerca do direito funda- mental e status. Segundo Alexy, a análise empreendida por Jellinek sobre a teoria do status se justifi- ca não apenas pela sua importância histórica, teórica e jurídica, mas também por estabelecer funda- mento de classificações dos direitos fundamentais. ALEXY, 2007, p. 219.

201 ALEXY, 2007, p. 220. 202 Idem, p. 220–221.

por ser dotado de personalidade, ao indivíduo é reconhecido um status negativus (ou

status libertatis),203 consistente numa esfera individual de liberdade imune ao jus imperium do Estado que, na verdade, é poder juridicamente limitado.204 Portanto, de

acordo com Robert Alexy,

[...] um status negativo consiste em uma esfera de liberdade individual. To- davia, segundo Jellinek, a esfera de liberdade individual é a espécie ‘das ações dos súditos juridicamente irrelevantes para o Estado’. Uma ação de- verá ser juridicamente irrelevante para o Estado se, ao menos no que se re- fere à relação Estado/cidadão, ‘não está em condições de provocar [...] um efeito juridicamente relevante’. [...] Uma ação é livre quando não está nem ordenada nem proibida, isto é, quando tanto sua execução como sua omis- são estão permitidas.205

O terceiro status – e que complementaria o status negativus – é o deno- minado status positivus (ou status civitatis), no qual ao indivíduo seria assegurada juridi- camente a possibilidade de utilizar-se das instituições estatais e de exigir do Estado de- terminadas ações positivas.206 Robert Alexy preleciona que o aludido status é mais bem aclarado quando Jellinek disse que o Estado confere ao indivíduo o “status de civilidade” quando (1) garante ao indivíduo pretensões para sua atividade e (2) facilita-lhe meios jurídicos para sua realização. E, além disso, Robert Alexy ressalta que Jellinek procura denominar os direitos que o indivíduo pode impor em um procedimento para a proteção de direitos como “pretensões jurídicas positivas formais”.207 Que o indivíduo tenha tais pretensões em presença do Estado significa, primeiro, que perante este possui direitos a algo e, segundo, que tem uma competência para fazê-los exigíveis. Para Jellinek, a existência de uma competência semelhante, é uma condição necessária para que o in- divíduo se encontre em um status positivus. Conforme o magistério de Robert Alexy, a

203 Robert Alexy ao fazer alusão a Georg Jellinek quanto ao conceito de status negativus ou status

libertatis escreve: “[...] Es el de la esfera individual de la libertad, del status negativo, del status liberta- tis, en el cual los fines estrictamente individuales encuentran su satisfacción mediante el acto libre del

individuo. Por lo tanto, um status negativo consiste en una esfera de libertad individual”. ALEXY, 2007, p. 223.

204 Dirley da Cunha Júnior ensina que no status negativus ou status libertatis o indivíduo usufrui de um poder juridicamente delimitado no qual o Estado não pode interferir, salvo para garantir o exercí- cio do próprio direito. Cuida-se de liberdades asseguradas contra o Estado, comportando uma situa- ção negativa ou de garantia ante a intromissão do Estado em determinadas matérias. CUNHA JÚ- NIOR, 2008, p. 526–527.

205 ALEXY, op. cit., p. 223. Tradução nossa. O original em língua espanhola tem o seguinte teor: “[...] un status negativo consiste en una esfera de libertad individual. Sin embargo, según Jellinek, la esfe- ra de libertad individual es la clase ‘de la acciones de los súdtidos jurídicamente irrelevantes para el Estado’. Una acción deverá ser jurídicamente irrelevante para el Estado si, al menos por lo que se refiere a la relación Estado/ciudadano, ‘no está em condiciones de provocar [...] um efecto jurídica- mente relevante’. [...] Una acción es livre cuando no está ni ordenada ni prohibida, es decir, cuando tanto su ejecución como su omisión están permitidas”.

206 Idem, p. 227. 207 Idem, p. 227.

fórmula na qual Jellinek resume as pretensões jurídicas individualizadas formalmente reconhecidas que surgem do status positivus, ou seja, a capacidade juridicamente pro- tegida para exigir prestações positivas do Estado, deve ser lida no duplo sentido revela- do acima.208

É no status positivus que se poderia, grosso modo, inserir os assim cha- mados direitos a prestações estatais, incluindo os direitos sociais ao salientar aqui a crítica formulada pela atual doutrina concernente à localização dos direitos de defesa no âmbito da teoria de Jellinek.209

Por derradeiro, há o status activus, no qual se assegura ao indivíduo a possibilidade de participar ativamente da formação da vontade política estatal como membro da comunidade política, o que se pode traduzir, por exemplo, por meio do voto. Refere-se a uma situação ativa, na qual o cidadão desfruta de direitos políticos.210

Em suma, com base na teoria clássica de Jellinek, os direitos fundamen- tais correspondem a cada um daqueles status, desempenhando funções distintas, con- forme magistério de Dirley da Cunha Júnior. Segundo o citado autor, com fundamento no status negativus, o indivíduo titulariza direitos de defesa perante o Estado, em razão dos quais ele pode, quando se sentir ameaçado ou prejudicado por entes ou órgãos es- tatais, repelir a intervenção ilegítima destes no âmbito de sua autonomia individual ga- rantida por lei. Com arrimo no status positivus, pode o indivíduo exigir prestações do Estado para suprir suas necessidades e, finalmente, com supedâneo no status activus, o indivíduo tem o direito de participar da vida política de sua comunidade. O status sub-

jectionis ou status passivo, na verdade, não contempla nenhum direito e, sim, obriga-

ções.211

Segundo Dirley da Cunha Júnior, a teoria proposta corresponde, de certo modo, ao processo histórico de emancipação da pessoa humana. No início, os homens conquistam a liberdade e passam da condição de mero objeto do Estado à condição de sujeitos de direitos perante esse Estado. Depois, adquirem uma posição jurídica em face

208 ALEXY, 2007, p. 227–228.

209 Oportuna é a análise de João Carlos Simões Gonçalves Loureiro mencionada por Ingo Wolfgang Sarlet, em que aquele baseado na crítica formulada por Robert Alexy observa que, de acordo com a proposição de Jellinek, os direitos de defesa (considerados como tais os direitos a abstenções do Estado) não se poderiam enquadrar em nenhum dos dois status referidos, de modo que se torna imperiosa uma leitura extensiva do status negativus que, além das liberdades jurídicas não protegi- das, também englobaria os direitos de defesa que, por outro lado, (como direitos a ações negativas), também poderiam integrar o status positivus em sentido amplo ao ser, sob essa ótica, comuns a am- bos os status. LOUREIRO, 1995 apud SARLET, 2007, p. 184. Sobre a crítica à arquitetura do sistema esboçada por Jellinek vejam-se as ilações aduzidas por Robert Alexy. ALEXY, op. cit., p. 230. 210 CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 527.

do Estado, do qual recebem prestações. Enfim, posteriormente, estão habilitados a par- ticipar ativamente do processo político, tornando-se sujeitos do próprio Estado.212

A teoria de Jellinek não está imune a críticas. Examinam-se algumas com o propósito de contribuir para o aperfeiçoamento e adaptação dessa importante teoria aos contornos constitucionais de hoje.

Inicialmente, alerta-se para a circunstância de que se faz uma releitura do

status negativus (também chamado de status libertatis), pois este status deve ser com-

preendido, atualmente, como aquele contemplado e conformado pela própria Constitui- ção e assegurado por ela contra todos os poderes constituídos, inclusive o legislativo. É relevante essa observação, tendo em vista que, para Jellinek, as liberdades do indivíduo eram exercidas apenas no âmbito da lei, encontrando-se à livre disposição do legisla- dor.213 No contexto constitucional atual, os direitos fundamentais em geral, e as liberda- des, em especial, vinculam o próprio legislador, não se admitindo disposição legislativa inconstitucional dos direitos fundamentais.214

Critica-se também a teoria por ela não haver dado importância ao âmbito material dos direitos fundamentais. De fato, o status negativus da teoria de Jellinek é meramente formal e secundário em relação ao status subjectionis (ou status passivo), considerando o indivíduo tão somente como pessoa abstrata. De certa forma procedem essas críticas devidas a Konrad Hesse,215 uma vez que ignorando o homem em sua dimensão histórica e concreta, as liberdades encontram-se à disposição do próprio Es- tado, de forma que o status subjectionis (ou status passivo), o qual confere ao Estado a competência geral sobre o indivíduo para obrigá-lo ou proibi-lo, exercida de modo ilimi- tado, passa a excluir a personalidade e a autonomia do indivíduo. Contudo, valem aqui

212 CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 527. Contrario sensu, Jorge Miranda sustenta que o quadro proposto estaria longe de ser confirmado pela história, notadamente considerando a democracia ateniense com o seu deficit de liberdade individual e o Estado Liberal com direitos políticos, todavia sem direitos sociais. Segundo Jorge Miranda, a história aponta, antes, para a interdependência dos diversos direi- tos. MIRANDA, 2000, p. 90.

213 SARLET, 2007, p. 184.

214 CUNHA JÚNIOR, op. cit., p. 528. No mesmo sentido: SARLET, op. cit., p. 184.

215 Para Hesse, o status negativus (ou status libertatis) de Jellinek é meramente formal e secundário em relação ao status subjectionis (ou status passivo), visto que a pessoa a quem é reconhecido o

status negativus não é o ser humano e cidadão em sua dimensão histórica e concreta, mas, sim, o indivíduo abstrato, reduzido à capacidade de ser titular de direitos e obrigações. A liberdade garantida por este status não é – de acordo com a crítica de Konrad Hesse – relacionada a situações concretas de vida, mas sim, uma liberdade genérica e abstrata de poder exercido de forma ilegal e que se en- contra, além disso, à disposição do próprio Estado, de modo que o status subjectionis, potencialmen- te ilimitado, passa a excluir a personalidade e a autonomia individual. Também, para Konrad Hesse, esta concepção formal de uma garantia formal da liberdade abstrata não se harmoniza com o sistema consagrado pelo Direito Constitucional positivo alemão (Lei Fundamental), onde se encontram diver- sas liberdades fundamentais especificamente previstas e limitadas por cláusulas de reserva legal. HESSE, 1998 apud CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 528.

as mesmas observações feitas acima, no sentido de que se deve ajustar a teoria dos quatro status às exigências do constitucionalismo moderno.216

Além disso, no Direito Constitucional contemporâneo, o status activus de- ve ser alargado para integrar também o status activus processualis formulado por Peter Häberle, que condiz com a dimensão procedimental e organizatória dos direitos funda- mentais, dentro de uma perspectiva objetiva destes direitos.217

E também deve merecer a devida atenção o reconhecimento de um status

positivus socialis, expressão da consagração dos direitos sociais, econômicos e cultu-

rais de natureza prestacional assim como as demais funções decorrentes da dimensão subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais, que igualmente devem ser consideradas neste contexto. Segundo Ingo Wolfgang Sarlet, o que parece relevante é o fato de que a teoria dos quatro status de Jellinek, à medida que foi passando por críticas e reparos, foi mantida viva mediante um contínuo processo de redescoberta pela teoria constitucional (inclusive no direito pátrio), de modo especial, na qualidade de parâmetro para a classi- ficação dos direitos fundamentais.218

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