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A posição dos direitos fundamentais como trunfos no Estado Democrático de Direito

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1.9 Direitos fundamentais como trunfos contra a maioria

1.9.1 A posição dos direitos fundamentais como trunfos no Estado Democrático de Direito

Na base do problema que aqui considera está, então, a posição, para Jor- ge Reis Novais, dos direitos fundamentais na relação jurídico–constitucional entre prin- cípio democrático e princípio do Estado de Direito. Enquanto o princípio democrático se identifica ou com a legitimação do título e exercício do poder político a partir da livre es- colha majoritária do eleitorado – a premissa majoritária – ou com o regime em que a todos os cidadãos é dada a oportunidade de se constituírem em parceiros ativos e iguais de um autogoverno coletivo – a premissa de parceria, o princípio do Estado de Direito assume essencialmente uma irredutível dimensão de defesa ou reserva da auto- nomia e liberdade individuais perante o poder político – a premissa garantista.327

Nesse sentido, o princípio do Estado de Direito ou, se quiser, Estado de direitos fundamentais – uma vez que o Estado de Direito é o Estado juridicamente limi- tado pelos direitos fundamentais e juridicamente vinculado à sua defesa e promoção – funcionam, relativamente à decisão da maioria, como limites jurídico–constitucionais.328 Portanto, mesmo partindo do pressuposto, que se sustenta, de que o atual Estado de Direito só vive em democracia, pode-se considerar que, num Estado Democrático de

326 NOVAIS, 2006, p. 32. 327

Idem, p. 32–33. 328 Idem, p. 33.

Direito,329 o princípio do Estado de Direito é um limite intransponível que se impõe ao poder legítimo e que, por isso, se pode opor ao princípio democrático.330

Mesmo que a maioria conjuntural que sustenta o Governo ou que forma uma maioria parlamentar considere que o interesse público só é realizável mediante a compressão ou supressão da autonomia e liberdade individuais, a área de liberdade que disponha da armadura ou esteja trunfada pela garantia que lhe é conferida por um direi- to fundamental não cede, ou seja, a regra da maioria não quebra, por si só, o princípio de Estado de Direito. A decisão da maioria democrática pode, é certo, buscar prevalecer sobre o interesse jusfundamentalmente protegido, pois quando ocorre um desacordo envolvendo direitos fundamentais não há nenhuma razão que determine que a maioria esteja necessariamente certa ou que esteja necessariamente equivocada sobre essa questão. Porém, o fundamento da eventual prevalência da posição da maioria não resi- de no argumento majoritário – precisamente porque os direitos fundamentais são consti- tucionalmente reconhecidos como direitos contra a maioria democraticamente eleita –, mas, sim, no resultado de uma ponderação de bens desenvolvida à luz dos parâmetros constitucionais e pela qual se atribua a outro bem igualmente digno de proteção, em circunstâncias em que essa compressão seja exigível, uma relevância suscetível de jus- tificar a restrição do direito fundamental.331

Nesse sentido, ter um direito fundamental segundo a concepção dos direi- tos como trunfos revela duas coisas: de um lado, e no que respeita às relações entre indivíduo e Estado, significa ter uma posição, juridicamente garantida, forte, entrinchei-

329 Vale destacar, no sentido do texto, a lição expendida por Jorge Miranda, segundo o qual o Estado de Direito Democrático, terminologia adotada na Constituição portuguesa, traduz a confluência do Estado de Direito e democracia. Se, historicamente, segundo Jorge Miranda, surgiram sob influências e em momentos diversos, hoje uma democracia representativa e pluralista não pode deixar de ser um Estado de Direito, em razão do imperativo de racionalidade ou funcionalidade jurídica e de respeito dos direitos das pessoas. O poder político pertence ao povo e é exercido de acordo com a regra da maioria, mas está subordinado – material e formalmente – à Constituição, com a consequente fiscali- zação jurídica dos atos do poder. Prossegue o ínclito jurista supracitado ao consignar que há uma interação de dois princípios substantivos – o da soberania do povo e o dos direitos fundamentais – e a mediatização dos princípios adjetivos da constitucionalidade e da legalidade. Numa postura extre- ma de irrestrito domínio da maioria, o princípio democrático, para Jorge Miranda, poderia acarretar a violação do conteúdo essencial de direitos fundamentais; assim como, levado aos últimos corolários, o princípio da liberdade poderia recusar qualquer decisão política sobre a sua modelação; o equilíbrio obtém-se mediante esforço de conjugação, constantemente renovado e atualizado, de princípios, valores e interesses, bem como por meio de uma complexa articulação de órgãos políticos e jurisdi- cionais, com gradações conhecidas (de que são manifestações paradigmáticas de limite os regimes da pronúncia pela inconstitucionalidade na fiscalização preventiva – art. 279º, nos 2 e 4, da CRP/1976, e da verificação da existência de inconstitucionalidade por omissão – art. 283º, nº 2, da CRP/1976). MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: direitos fundamentais. 4. ed. rev. e atual. Coim- bra: Coimbra Editora, 2008. t. 4. p. 227.

330 NOVAIS, 2006, p. 33. 331 Idem, p. 33.

rada, contra as decisões da maioria política; de outro lado, e no que respeita às relações entre particulares, ter um direito fundamental compreende também, no mínimo, ter uma particular e concretizada posição de autonomia e liberdade que o Estado de Direito está igualmente vinculado a proteger contra ameaças ou lesões oriundas de terceiros, mes- mo quando ou, sobretudo quando, esses terceiros formam uma maioria ou quando o particular está sujeito, nas relações que estabelece com outros particulares, ao desequi- líbrio de uma relação de poder assimétrica.332

Mas a ideia dos direitos fundamentais como trunfos contra a maioria não é mera exigência política ou moral ou uma construção teórica artificial. Ela é também uma exigência do reconhecimento do princípio da força normativa da Constituição,333 da ne- cessidade de levar a Constituição a sério: por majoritários que sejam os poderes consti- tuídos não podem pôr em causa aquilo que a Constituição reconhece como direito fun- damental.334

Se a Constituição proíbe a pena de morte ou a tortura, por mais que a maioria considere que a sociedade ganharia com a introdução de algumas exceções a essas garantias, mesmo que pontuais, e ainda que a maioria da população apoie ou reclame abertamente essas soluções, a natureza de trunfo da garantia constitucional impede absolutamente a realização dos desígnios da maioria. Se a Constituição garante a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa e a proibição da censura, por mais que um dado Governo, democrático, majoritário, apoiado pelo sentimento geral da popu- lação, considere que a expressão de determinados pontos de vista ou opiniões pessoais num jornal põe em causa o relacionamento com outros Estados, inviabiliza negócios decisivos para o bem–estar da população ou contribui para a difusão de ideias que, do ponto de vista do Governo, são nocivas para a sociedade no seu todo, não podem esse Governo ou essa maioria impedir que um só indivíduo expresse livremente aquelas opi-

332 NOVAIS, 2006, p. 34.

333 Reduzindo-o à sua expressão mais simples, pode-se dizer que esse critério de interpretação cons- titucional consubstancia um conselho – Friedrich Müller fala em apelo – para que os aplicadores da Constituição, na solução dos problemas jurídico–constitucionais, procurem dar preferência aos pontos de vista que, ajustando historicamente o sentido das suas normas, confiram-lhes maior eficácia ou contribuem para uma eficácia ótima da Constituição. MÜLLER, 2005, p. 78. Canotilho ensina que se deve dar “[...] primazia às soluções hermenêuticas que, compreendendo a historicidade das estrutu- ras constitucionais, possibilitam a ‘atualização’ normativa, garantindo, do mesmo pé, a sua eficácia e permanência”. CANOTILHO, 2003, p. 1226. Vale destacar que na nota de rodapé de nº 23 da página 1226 desta última obra retrorreferida, Canotilho esclarece que a elaboração deste princípio encontra- se nos autores que se orientam segundo o método hermenêutico concretizador (Konrad Hesse), a metódica normativo–estruturante (Friedrich Müller) e a hermenêutica da praxe jurídica ou teoria da decisão racionalizada (Martin Kriele).

niões ao abrigo da sua garantia constitucional, o que equivale a dizer, que faça valer o

trunfo de que dispõe contra a vontade, a opinião ou a decisão da maioria.335

Foi com este alcance que, do ponto de vista histórico–constitucional, esta ideia de indisponibilidade dos direitos fundamentais pela maioria obteve acolhimento e consagração positiva e substancial quando, com o chamado novo constitucionalismo da segunda metade do século passado, as constituições, ainda que com ritmos, textos e gradações diferenciados, afirmam expressamente a vinculação do próprio legislador democrático aos direitos fundamentais ou consagram os direitos fundamentais na quali- dade de limites materiais de revisão constitucional.336

Este capítulo objetivou, portanto, delinear o significado constitucionalmen- te adequado dos direitos fundamentais ao integrarem a essência do Estado Constitucio- nal. Tais direitos se encontram em posição de trunfo, isto é, na condição de supremacia constitucional ao formarem um conjunto de direitos fundamentais de mais alto grau nor- mativo e de vinculação jurídica do poder político que a eles se submete, ainda que de- mocraticamente eleito. Logo, os direitos fundamentais passam a estar fora da discricio- nariedade da política ordinária, de modo que qualquer grupo político que assuma o po- der deve a eles estar diretamente vinculado.337 Isso é decorrência da força normativa dos direitos fundamentais no Estado Constitucional.

O próximo capítulo devotar-se-á em apresentar a evolução histórica e a positivação dos direitos fundamentais, abrangendo os direitos sociais. Além disso, será examinado o processo de internacionalização dos direitos fundamentais no âmbito de um direito constitucional globalizado que impõe deveres de proteção e progressividade aos direitos sociais fundamentais, vedando sua debilitação ou retrocesso.

335 NOVAIS, 2006, p. 36.

336 Idem, p. 36–37. Na Constituição Federal de 1988, as limitações materiais expressas estão previs- tas no art. 60, § 4º, segundo o qual não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais. As limitações materiais são denominadas de cláusulas pétreas que tornam essas matérias insuscetíveis de supressão total ou parcial. Segundo o lapidar magistério de Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, as cláusulas pétreas além de assegurarem a imutabilidade de certos valores, além de preservarem a identidade do projeto do constituinte originário, participam, elas próprias, como tais, também da es- sência inalterável desse projeto. Eliminar a cláusula pétrea já é enfraquecer os princípios básicos do projeto do constituinte originário garantidos por ela. MENDES; COELHO, GONET BRANCO, 2007, p. 208.

337 Ingo Wolfgang Sarlet sustenta que o poder público e as entidades privadas estão vinculados aos direitos fundamentais e esta vinculação constitui precisamente uma das dimensões da eficácia, à medida que o princípio da aplicação imediata (art. 5º, § 1º, da CF/1988) diz respeito a todas as nor- mas de direitos fundamentais, independentemente de sua função (direitos a prestações ou direitos de defesa) e da forma de sua positivação. SARLET, 2007, p. 388.

CAPÍTULO 2

EVOLUÇÃO HISTÓRICA E A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDA-

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