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O surgimento e evolução do Estado Social e Democrático de Direito

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A EFICÁCIA DOS DIREITOS SOCIAIS FUNDAMENTAIS

3.1 O surgimento e evolução do Estado Social e Democrático de Direito

As Constituições dos Estados de Direito2 de matriz ocidental consagram atualmente, respeitadas as suas idiossincrasias, a organização e limitação do poder do Estado, a divisão das funções estatais entre blocos orgânicos distintos e os direitos fun- damentais e sua garantia. O tratamento dessas matérias varia segundo as peculiares tradições histórico–culturais dos Estados, a divisão de poderes ganha coloridos particu- lares de acordo com o sistema de governo adotado e os direitos fundamentais esten- dem-se por enumerações mais ou menos alargadas; invariavelmente, estes são os nú- cleos temáticos da Constituição dos atuais Estados de Direito de matriz ocidental, de- signados de “Estados Constitucionais” no dizer de Canotilho,3 nos quais se fazem indis- pensáveis, ainda, os elementos democrático e social.

1 O expoente jurista Dirley da Cunha Júnior defende a plena eficácia e aplicabilidade imediata destes direitos em virtude da decorrência direta da suprema dignidade da pessoa humana, pois este princí- pio (dignidade da pessoa humana) para o citado jurista é a base de todos os direitos sociais e, como direitos fundamentais, são direitos diretamente aplicáveis, vinculam todos os Poderes, especialmente o Legislativo, cuja vinculação se submete ao controle judicial. CUNHA JÚNIOR, Dirley da. A efetivida- de dos direitos fundamentais sociais e a reserva do possível. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (Org.).

Leituras complementares de Direito Constitucional: direitos fundamentais. 2. ed. rev. e ampl. Salva- dor: Editora Juspodivm, 2007. p. 412–413.

2 De acordo com a proficiente lição de Jorge Reis Novais, o Estado de Direito pode genericamente definir-se como sendo um Estado limitado e organizado juridicamente com vistas na garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos. Além disso, na esteira do pensamento do citado autor, indepen- dentemente das diferentes modalidades de concretização política, o ideal de Estado de Direito pro- põe-se sempre a garantia da segurança, liberdade e propriedade por meio de: (1) uma marcada se- paração entre o Estado e a sociedade que permita a esta constituir-se em espaço autorregulado onde coexistam e concorram as esferas de autonomia econômicas e morais dos cidadãos; (2) uma redu- ção da atividade do Estado ao mínimo exigido para a garantia da paz social e das condições objetivas que viabilizem o encontro das autonomias individuais e o livre desenvolvimento da personalidade de cada um; (3) uma transformação progressiva de toda a atividade do Estado em atuação fundada, organizada e limitada juridicamente e uma concepção jurídica, regulada pelo Direito, das relações que o Estado mantém com os cidadãos. NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estrutu-

rantes da república portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 20–21.

3 Canotilho explica que o Estado Constitucional deve ser Estado de Direito e Estado Democrático; configura a Constituição como uma “estrutura política conformadora do Estado”, informada pelos princípios da vinculação do Estado de Direito, garantia dos direitos fundamentais, divisão dos poderes e democracia. CANOTILHO, 2003, p. 87, 92–93, 245.

Canotilho leciona que o Estado é uma forma histórica de organização jurí- dica do poder dotada de qualidades que a distinguem de outros poderes e organizações de poder.4 Quais são essas qualidades? Em primeiro lugar, para o multicitado jurista, a qualidade de poder soberano. A soberania, em termos gerais e no sentido moderno, traduz-se num poder supremo no plano interno e num poder independente no plano in- ternacional. Ao se articular a dimensão constitucional interna com a dimensão interna- cional do Estado pode-se recortar os elementos constitutivos deste: (1) poder político de comando; (2) que tem como destinatários os cidadãos nacionais (povo = sujeitos do so- berano e destinatários da soberania); (3) reunidos num determinado território.5 A sobe- rania no plano interno (soberania interna) traduzir-se-ia, de acordo com Canotilho, no monopólio de edição do direito positivo pelo Estado e no monopólio da coação física legítima para a efetividade das suas regulações e dos seus comandos. Nesse contexto se afirma também, segundo o ínclito jurista, o caráter originário da soberania, pois o Es- tado não necessita obter o fundamento das suas normas noutras normas jurídicas. A soberania internacional (termo que muitos internacionalistas afastam ao preferir o con- ceito de independência) é, por natureza, relativa (existe sempre o alter ego soberano de outro Estado), mas significa, ainda assim, a igualdade soberana dos Estados que não reconhecem qualquer poder superior acima deles.6

O Estado, tal como foi caracterizado, corresponde, no essencial, ao mode- lo de Estado emergente da Paz de Vestfália (1648). Este modelo, assente, basicamente na ideia de unidade política soberana do Estado, está hoje relativamente em crise como resultado dos fenômenos da globalização, da internacionalização e da integração inte- restatal. No entanto, ele continua a ser um modelo operacional caso pretenda salientar duas dimensões do Estado como comunidade juridicamente organizada: (1) o Estado é um esquema aceitável de racionalização institucional das sociedades modernas; (2) o

Estado Constitucional é uma tecnologia política de equilíbrio político–social por meio da

qual se combateram dois arbítrios ligados a modelos anteriores, a saber: a autocracia absolutista do poder e os privilégios orgânico–corporativos medievais.7

Canotilho sustenta que o Estado de Direito é um Estado Constitucional. Pressupõe a existência de uma constituição normativa estruturante de uma ordem jurí-

4 CANOTILHO, 2003, p. 89. 5

Para Canotilho, esses três elementos – povo, território e poder – são os elementos decantados (exaltados, engrandecidos), sobretudo pela doutrina de direito internacional. Note-se, porém, que o conceito de Estado em direito constitucional e em direito internacional não é coincidente. Idem, p. 90. 6

Idem, p. 89–90. 7 Idem, p. 90.

dico–normativa fundamental vinculativa de todos os poderes públicos. Para o ínclito ju- rista, a constituição confere à ordem estatal e aos atos dos poderes públicos medida e forma.8 Trata-se, segundo ele, de uma verdadeira ordenação normativa fundamental dotada de supremacia – supremacia da constituição – e é nessa supremacia normativa da lei constitucional (como sugeria a teoria tradicional do Estado de Direito) que o pri- mado do direito do Estado de Direito encontra uma primeira e decisiva expressão.9

No que se denomina aqui, Estado Constitucional – Estado Social e Demo- crático de Direito10 –, os direitos fundamentais são peça–chave, quer pela posição que ocupam na ordem jurídica, quer pelas limitações e imposições positivas e negativas que fazem impender sobre a atuação estatal.11

Segundo Luísa Cristina, a concepção dos direitos fundamentais como po- sitivação dos direitos do homem em sede constitucional, de modo que colocá-los a salvo do legislador ordinário deixa transparecer a ínsita relação existente entre direitos funda- mentais e Estado de Direito; todavia, isso não significa que tais direitos constituem mera concessão do Estado.12 Como manifestações jurídicas mais ou menos próximas do va- lor da dignidade da pessoa humana,13 que se impõe ao Estado, os direitos fundamentais incorporam-se na Constituição, plasmado aquele valor prévio como informador de toda a ordem jurídica e das relações Estado–indivíduos.14

Jorge Miranda ao debruçar sobre o conceito de Estado de Direito escreve que não é suficiente enumerar, definir, explicitar, assegurar só por si os direitos funda- mentais; requer que a organização do poder político e toda a organização constitucional estejam orientadas para a sua garantia e sua promoção. Para o retrorreferido jurista, não basta também afirmar o princípio democrático e procurar a coincidência entre a von- tade política do Estado e a vontade popular em qualquer momento; é preciso estabele-

8 CANOTILHO, 2003, p. 245. 9 Idem, p. 246.

10 Jorge Reis Novais sustenta que o Estado de Direito atual é necessariamente Estado Social e De- mocrático. NOVAIS, 2004, p. 10.

11 Idem, p. 22, 32–33.

12 NETTO, Luísa Cristina Pinto e. Os direitos sociais como limites materiais à revisão constitucional. Salvador: Editora Juspodivm, 2009. p. 18.

13 NOVAIS, op. cit., p. 52–53. Para Jorge Reis Novais, “[...] a exigência moral de respeito pelos dita- mes de uma vida digna é, agora, critério de valoração último da legitimidade da sua atuação e fun- damento de invalidação dos atos de qualquer dos poderes do Estado tidos como violadores da digni- dade da pessoa humana”. Idem, p. 52. Em seguida pontifica, in verbis: “A dignidade da pessoa hu- mana do Estado Social e Democrático de Direito é circunstancial e temporalmente determinada e, nesse sentido, é própria de um indivíduo comunitariamente integrado e condicionado, titular de direi- tos fundamentais oponíveis ao Estado e aos concidadãos, mas socialmente vinculado ao cumprimen- to dos deveres e obrigações que a decisão popular soberana lhe impõe como cidadão da possibilida- de de realização da dignidade e dos direitos de todos”. Idem, p. 53.

cer um quadro institucional em que esta vontade se desenvolva em liberdade e em que cada cidadão tenha a segurança da previsibilidade do futuro. Segundo o jurista, é ne- cessário que se não verifique incompatibilidade entre o elemento subjetivo e o elemento objetivo da Constituição; que os direitos fundamentais tenham um quadro institucional de crescimento; que a garantia da liberdade se faça mediante a divisão do poder. A sín- tese desses princípios, o modelo ou a ideia em que se traduzem vem a ser o Estado de Direito.15

Entretanto, não seria correto afirmar que os direitos fundamentais se origi- nam no Estado de Direito16 – entendido como aquele que resulta das lutas liberais do século XVIII e do triunfo do liberalismo no século XIX –, podendo-se falar de uma pré– história dos direitos fundamentais anterior a esta noção, ainda que diversas de suas ca- racterísticas não estivessem integralmente presentes.17 Reconhecendo esta circunstân- cia, registra-se que a noção de Estado de Direito desempenhou papel ímpar na consa- gração e efetivação dos direitos fundamentais; firmada em quatro pilares essenciais – garantia dos direitos individuais, separação de poderes, superioridade da lei e, posteri- ormente, supremacia da Constituição18 – permitiu o florescimento dos direitos funda- mentais, alçados ao cume da ordem jurídica, primeiramente na vertente liberal de prote- ção da esfera individual perante o poder estatal.

O Estado Liberal produto da superação do absolutismo foi essencialmente um Estado concebido – em oposição ao Estado Absolutista19 que se intrometia nas di- versas esferas da vida social – em razão da ideia de separar a esfera estatal da socie- dade ao permitir a esta mover-se segundo suas próprias leis, livre da intervenção esta- tal, quer social, quer econômica. São conhecidas as raízes desta concepção que se po- de chamar de liberal clássica, bem como seus principais teóricos.20

15 MIRANDA, 2008, p. 216–217.

16 Não se quer induzir que a afirmação do Estado de Direito tenha se dado de maneira linear e homo- gênea (como fenômeno histórico–político), uma vez que não ocorreu desta forma. Jorge Reis Novais procura destacar esta heterogeneidade e explica que se pode, mesmo assim, fazer uma generaliza- ção da fórmula desde que se referindo à “racionalização do Estado operada mediante uma limitação jurídica dirigida à eliminação do arbítrio e à proteção de uma esfera indisponível de autonomia indivi- dual”. NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de Direito. Coimbra: Almedina, 2006. p. 47.

17 Confira-se, por exemplo, a Carta Magna inglesa como antecedente das declarações de direitos fundamentais. NOVAIS, 2006, p. 53–55, 77.

18 Mais detalhamento sobre esses pilares consultem-se em: NOVAIS, 2006, p. 32, 44, 51, 77–78. 19 NOVAIS, 2004, p. 17–19.

20 A separação entre Estado e sociedade civil era desejada pela burguesia a fim de agir com liberda- de das peias estatais, o que ganhava força ante as formulações de Adam Smith. Há outras concep- ções teóricas na base da construção do Estado de Direito Liberal; veja, para aprofundamentos: NO- VAIS, 2006, p. 59–102.

A separação entre Estado e sociedade, subjacente ao ideário liberal, limi- tava o Estado a somente garantir a segurança, a liberdade e a propriedade dos cida- dãos, abstendo-se de promover intervenções nas searas econômica e social; o Estado podia ser comparado a um ‘guarda-noturno’ incumbido de zelar pela paz e segurança de forma a que a sociedade ficasse livre para desenvolver.21 No bojo destas concepções, desempenhou-se o projeto liberal–burguês de garantir direitos e liberdades - essencial- mente liberdades individuais negativas – considerados fundamentais, o que passava pela racionalização do Estado e sua submissão ao Direito.22

Esta concepção liberal impregna também o perfil dos direitos fundamen- tais, concebidos essencialmente como direitos voltados contra o Estado no sentido de garantir uma esfera juridicamente protegida de autonomia aos cidadãos. Não se cogita propriamente de direitos fundamentais, cujo objeto constitua prestações estatais; a pro- priedade era o direito fundamental por excelência e sua centralidade se espraiava para a interpretação de todos os demais direitos – lembre-se, por exemplo, do sufrágio censi- tário –, o que acentuava a primazia burguesa.23

Jorge Reis Novais entende que o Estado de Direito Liberal foi, no início, um ‘Estado de Direito material’ no sentido de ser limitado pelos direitos e liberdades in- dividuais e voltado para a construção de uma nova ordem em contraposição àquela do Antigo Regime. Aos poucos, a situação foi se alterando, a assunção de posição hege- mônica pela burguesia e o afastamento dos fundamentos jusnaturalistas foram conferin- do ao Estado de Direito uma configuração mais formalista, passando-se a um ‘Estado de Direito formal’ e depois a um ‘Estado de legalidade’.24

A consagração da liberdade e a garantia meramente formal da igualdade – traduzida em igualdade perante a lei – foram colocadas em dúvida na passagem para o Estado Social.25 As conquistas liberais não foram conquistas verdadeiramente usufruí- das por toda a população, beneficiaram principalmente a então emergente burguesia

21 NOVAIS, 2004, p. 21–22.

22 Idem, p. 21–24. Pode ser averiguado na obra do autor citado sobre a concepção liberal dos direitos fundamentais.

23 NOVAIS, 2006, p. 78 –80.

24 O autor explora o pensamento de Hans Kelsen e o indica como ponto culminante no processo de formalização do conceito de Estado de Direito. NOVAIS, 2006, p. 103–113, 121–123. Suas ideias são ratificadas em outra obra de sua autoria – NOVAIS, 2004, p. 27–30.

25 Estado Social, segundo Jorge Reis Novais, seria um conceito mais amplo, identificador de um novo tipo de relações entre sociedade e Estado, em contraposição com o modelo liberal; de tal conceito distinguem-se os de ‘Estado–Providência’, ‘Estado de bem–estar’ – ‘Welfare State’, ‘Estado de parti- dos’, ‘Estado de associações’, ‘Estado administrativo’, por destacarem aspectos parcelares do Estado Social. Acerca das contraposições desses conceitos podem ser conferidos em: NOVAIS, 2006, p. 187–192.

que, com a superação do Estado Absoluto, da intervenção econômica e das ordens es- tamentais, livrou-se das barreiras para fazer crescer e florescer as atividades comerciais – e posteriormente industriais – e firmou-se como a classe hegemônica, para a qual a superioridade da lei, garantindo estabilidade, era essencial, ao lado da contenção do arbítrio e da intervenção estatais, asseguradas pela garantia da liberdade, propriedade e segurança. Por outro lado, para a massa da população, as conquistas liberais não ti- nham, em grande medida, superado a dimensão formal; a garantia normativa da propri- edade, por exemplo, servia aos proprietários, mas significava pouco para os não pro- prietários.

Os pressupostos e os valores em que se assentava o modelo liberal en- tram em crise na passagem do século XIX para o XX.26 Jorge Reis Novais explica por que o contexto socioeconômico em que as duas grandes guerras se deram caracteri- zou-se pelo fim do otimismo liberal e da crença nas virtualidades da autorregulação do mercado. Com fulcro em Harold Laski, o autor identifica os fatores que inviabilizaram a manutenção do Estado Liberal; não se conseguia manter a produção de lucros que ge- rassem um fundo permanente de excedente social de riqueza, bem como não havia mais um consenso das forças políticas em torno de questões centrais. A situação de guerra, por sua vez, também reclamava a intervenção estatal na economia.27 Podem ser arrolados diversos outros fatores que levaram à superação do modelo de Estado Liberal clássico, merecendo destaque as situações de iniquidade agravadas pelas consequên- cias das duas guerras mundiais, bem como a ameaça que passou a sofrer o capitalismo ocidental em virtude da construção do bloco socialista. Como transição histórica, a pas- sagem de um modelo liberal para um modelo social constituiu processo paulatino e não uniforme em termos geográficos.28 Esta passagem é marcada por uma multiplicidade de características e mudanças, devendo se acentuar, que a sociedade deixa de ser conce- bida como uma realidade autossuficiente, para passar a ser encarada como um objeto que o Estado deveria estruturar, regular e transformar com vistas na prossecução da justiça social e do progresso econômico.29 Sobre isso, Jorge Reis Novais arremata que

26

NOVAIS, 2004, p. 30–32. 27

NOVAIS, 2006, p. 181–182.

28 Não se almeja, aqui, elaborar uma análise detalhada de toda a evolução por que passou o Estado Moderno, visa-se tão somente a esboçar os pontos cardeais de suas transformações com vistas no desenvolvimento do objeto de estudo. Nesta esteira, não se explora toda a superação do Estado Li- beral, por exemplo, e não se versa o aparecimento dos Estados totalitários na Europa Ocidental após a Primeira Guerra Mundial nem a formação do bloco socialista. Para desenvolvimentos nesta matéria pode ser consultada em: NOVAIS, 2006, p. 128–178.

29

O Estado empenha-se, então, consciente e deliberadamente, no processo produtivo, na redistribuição do produto social e na direção ou mesmo plani- ficação do processo econômico. A justiça social e a prossecução da igual- dade material – e não já apenas da igualdade perante a lei – são elevadas a fins essenciais do Estado, que assim se afirma como Estado Social.30 3.2 A consagração constitucional dos direitos sociais e o princípio da sociali-

dade

No marco de superação do Estado Liberal, pode-se relacionar a consa- gração constitucional dos direitos sociais ao contexto das lutas travadas pelas classes trabalhadoras em busca da emancipação da sociedade burguesa, identificando-se influ- ências socialistas, o que chamou a atenção para a necessidade de alargar o rol dos di- reitos liberais clássicos, ou direitos burgueses, no sentido de garantir um fundamento existencial–material humanamente digno.31 Sobre isso, Canotilho, em lapidar magistério, aduz o seguinte:

[...] As declarações universais dos direitos tentam hoje uma “coexistência in- tegrada” dos direitos liberais e dos direitos sociais, econômicos e culturais, embora o modo como os Estados, na prática, asseguram essa imbricação, seja profundamente desigual.32

Jorge Reis Novais salienta que o caráter social assumido pelo Estado transparece no plano dos direitos fundamentais no “processo de fundamentalização” de direitos sociais, na interpretação dos clássicos direitos de liberdade sob a perspectiva da socialidade – vinculação social dos direitos no sentido de garantir igualdade material – e na atribuição generalizada de direitos políticos.33 Arremata o multicitado jurista que isso quer dizer que,

[...] ao lado dos direitos e liberdades clássicos, são agora também conside- rados como direitos fundamentais os direitos positivos de caráter social, ou seja, os direitos que se traduzem na exigência de prestações positivas ma- teriais a realizar pelo Estado em favor dos indivíduos. Enquanto as liberda- des negativas clássicas se realizavam tanto mais quanto menor fosse a in- tervenção do Estado, os novos direitos sociais requerem, não uma absten- ção do Estado, mas antes uma intervenção positiva estatal destinada a con- ferir-lhes realidade existencial.34

30 NOVAIS, 2004, p. 31. 31 CANOTILHO, 2003, p. 385. 32 Idem, p. 385–386.

33 NOVAIS, op. cit., p. 32. 34 Idem, p. 32–33.

Quanto à consagração constitucional deste novo modelo estatal que, ao lado dos direitos de liberdade, assumem posição de relevo os chamados direitos sociais; mencionam-se correntemente a Constituição mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919. Esses instrumentos normativos deram destaque aos direitos sociais, demonstrando que a segunda geração de direitos vinha se somar a primeira – de cará- ter liberal – na busca de garantias substanciais e não meramente formais.35 Antonio En- rique Pérez Luño pontifica, à luz da experiência do direito espanhol, que a implantação das liberdades concretas – satisfação das necessidades básicas e fomento das capaci- dades e potencialidades humanas –, ao concretizar o livre desenvolvimento da persona- lidade, requer-se a ação positiva dos poderes públicos com objetivo de remover os obs- táculos de ordem econômica, social e cultural que impedem a plena expansão da pes- soa humana.36 Para o ínclito jurista citado, a estas exigências tencionou responder o Estado Social de Direito ou, acentuando sua orientação libertadora e emancipadora, o Estado Social e Democrático de Direito, postulado da Constituição espanhola. Logo, para o autor, neste modelo de organização política não cabe uma ruptura entre liberda- des individuais e direitos sociais, pois em seu âmago os direitos sociais são direitos de liberdade.37

As liberdades públicas, que supõem concretizações da liberdade e, os di- reitos sociais, como especificações da igualdade material, integram-se profunda e simul- taneamente, pois a igualdade material deve ser a base para o exercício das liberdades públicas. No entendimento de Pérez Luño, com o qual é preciso concordar inteiramente,

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