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acervos discográficos e o risco de congelamento

Ao mesmo tempo em que insisto na importância dos acervos disco- gráficos em processos de construção de memória, preciso igualmen- te apontar um problema: o risco de uma espécie de “congelamento” dessas narrativas. O registro fonográfico levanta os mesmos desafios dos demais processos de patrimonialização, amplamente discutidos nos recentes debates sobre patrimônio intangível. Como não “fixar” um fenômeno dinâmico por natureza? A música que tão bem tem servido como instrumento para narrar versões alternativas da his- tória de Cabo Verde, ao ser gravada e retirada do contexto dinâmico que a gerou, estaria cristalizando essas narrativas?

É evidente que, em alguma medida, o processo de registro fono- gráfico perpetua no tempo a versão de uma manifestação que, no domínio da performance, tem um caráter muito mais dinâmico. To- davia, não compartilho um olhar pessimista sobre tal processo. Dois exemplos bastarão para argumentar que, apesar dos registros fono- gráficos, as músicas continuam alvo de debates que lhes imprimem uma natureza um tanto fluida.

O primeiro exemplo remete a uma canção, intitulada “Saia Cur- ta”, na qual é feita uma referência ao governador Mota Carmo.

La pa qu’es banda de Compe Nove lá para aquelas bandas do campo novo

Tem um casinha qu’es ta tch’ma vôvô tem uma casinha que chamam de Vovô El ta tcheu de menininhas ela está cheia de menininhas

Qu’es panhâ na morada Que eles apanharam na cidade

Por causa de se’s sainhas por causa de suas saias

Ess home nhô Mota Carmo esse homem, o senhor Mota carmo

Tem tude se direito tem todo o direito

De q’rê caba de querer acabar

Trata-se de um gênero musical, a coladeira, que tem como uma de suas principais características o modo alegre e jocoso de tratar si- tuações do dia a dia dos cabo-verdianos. É, então, em tom de brin- cadeira que a canção “Saia Curta” registra um episódio envolvendo o governador Mota Carmo. A música relata as consequências de um ato do governador que proibiu as meninas de São Vicente de usarem saias consideradas muito curtas. A cadeia (“Vovô”) surge para lembrar o rigor da administração colonial – atuando diretamente no plano da moral e dos costumes locais, sempre no intuito de exercer controle.

Noto uma característica relevante da canção. O texto citado foi publicado em um livro, da maneira acima, pelo próprio compositor, Jorge Monteiro. Contudo, pude ouvir de várias pessoas em São Vi- cente versões alternativas para a mesma música, com modificações por vezes pequenas, outras vezes consideráveis. Alguns até mesmo acrescentavam à canção um trecho que dizia: Culpado ê Mota Carmo qu’ mandá tchi bainha (em português: “Culpado é o Mota Carmo que mandou descer a bainha”). O que mostro com isto é que nem o regis- tro sonoro – e nem mesmo o registro escrito da letra da música por parte de seu compositor! – impediram que ela fosse continuamente reelaborada pelo público em geral.

A dinâmica a que está submetida a música vem revelar igualmente sua capacidade de abrigar sempre novos significados e interpreta- ções. Tal polissemia foi capaz até de provocar um debate, que pude acompanhar, sobre as verdadeiras intenções do compositor Jorge Monteiro. Dois senhores cabo-verdianos disputavam a preeminência de suas respectivas versões para a música “Saia Curta”. Como parte da disputa, um deles afirmava o olhar crítico e irônico do composi- tor em relação à administração colonial, enquanto o segundo insis- tia no caráter conservador da canção, acreditando que se tratava de um elogio relativamente velado do compositor ao governador Mota Carmo e às suas tentativas de construção de uma ordem, fundada na moral colonial. Insisto, assim, que a música, ainda que registrada,

mantém grande vivacidade no relato que faz da administração do go- vernador Mota Carmo – uma vivacidade que não aparece, por certo, nos documentos escritos oficiais. E é por essa via, da crítica e do hu- mor, que o governador e seus atos se fazem presentes ainda hoje na memória coletiva da população cabo-verdiana.

No último exemplo, volto ao caso do arquivo da Rádio Nacional de Cabo Verde. Foi com grande entusiasmo que me debrucei, ao longo de meses de trabalho, sobre aquele acervo – não apenas para pes- quisar as músicas ali registradas e os encartes dos discos, sempre tão ricos em informações, mas igualmente para analisar as transforma- ções imprimidas àqueles objetos. As informações contidas nas fichas técnicas dos discos eram continuamente “corrigidas” pelos funcio- nários da rádio, que reescreviam nomes das músicas e dos autores. Se no encarte constava, originalmente, a informação “Xandinha – morna de Amandio Cabral”, logo ao lado constava uma inscrição em caneta, com o nome de um coautor: Dante Mariano. Em outro disco, ao lado do título “Hora di Bai” (de Eugénio Tavares), em caneta vermelha destacava-se outro nome pelo qual a canção é conhecida: “Morna de Despedida”. Ainda, em outro disco, a canção “Salaman- sa”, ali apontada como de domínio popular, era corrigida em seguida com uma anotação à mão, identificando o autor: Ti Goy – o mesmo compositor que volta a ressoar na voz entusiasmada dos jovens da Baía das Gatas, citado no início deste artigo.

O momento de gravação dos primeiros discos foi também um mo- mento de constituição da ideia de autoria – em Cabo Verde e, inclusi- ve, no Brasil. Tal questão dos direitos autorais retoma, por outra via, a temática do patrimônio, uma vez que implica a ideia sempre pre- sente de “propriedade”. O que destaco, porém, é que a noção de pro- priedade no contexto abordado aparece claramente como objeto de disputa, imersa em contínuas discussões. Todo o arquivo discográfi- co da Rádio Nacional de Cabo Verde está permeado por anotações nos próprios encartes, deixando evidente que o registro das canções se

permite acompanhar de reelaborações próprias da música popular. Enfim, torna-se claro como a dinâmica da “música tradicional cabo- -verdiana” não se perde neste duplo processo de mercantilização e patrimonialização.

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