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O espaço geopolítico chamado Nigéria, nas palavras de Hugh Cli- fford, um governador-geral da época colonial, é “um mero conjunto de stados nativos autorreferenciados e mutuamente independen- tes, separados por grande distância, diferenças históricas, tradição e barreiras etnográficas, raciais, tribais, políticas, sociais e religiosas” (CLIFFORD, 1920 apud ETENG, 2004, p. 39). Isto significa que antes de 1914, quando Lord Fredrick Lugard, o primeiro governador-geral do país, amalgamou unilateralmente os protetorados do norte e do sul e a colônia de Lagos em um único país, nunca houve uma enti- dade que respondesse por este nome: Nigéria. Em essência, antes do domínio colonial britânico, Nigéria não existia. Em vez disso, havia os estados autônomos dos iorubás, dos hauçás e fulas, dos canúris, dos tiv e dos jucuns, e as sociedades segmentares dos ibos, dos ijós

e muitas outras. Individualmente, alguns desses estados se estabe- leceram como forças dominantes na savana, na floresta e no litoral, controlando o comércio e produzindo o que há de melhor em bustos naturalistas em bronze fundido. Em sua forma atual, o país está de- lineado, em grande medida, ao longo de fronteiras étnicas – o norte hauçá e fula, o sudoeste iorubá e o leste ibo, com os grupos étnicos minoritários imprensados entre estas divisões principais.

Entretanto, categorizar a Nigéria em termos de uma clivagem nor- te-sul, como alguns trabalhos têm feito (SALIH, 2001), assemelha- -se mais a uma abordagem reducionista, muito embora algum nível de homogeneidade regional pareça existir, especialmente no cam- po da religião. Por exemplo, ao mesmo tempo em que o Islã é a reli- gião dominante no norte, o cristianismo floresce por todos os cantos do sul. Isto, entretanto, em vez de ser um indicador de uma forma existente de identidade unificadora, pode ser mais bem considerado como efeito de uma circunstância histórica, fruto das próprias ro- tas através das quais as duas religiões imperiais fizeram sua entrada no território. Os diferentes grupos étnicos que compõem a Nigé- ria não estão apenas separados por grande distância e pela história, como observou Hughes Clifford, mas são expressivamente diferentes em termos de orientação cultural. Estes estados, agregados não por consentimento ou mutualismo, apresentavam diferenças suficientes para justificar a adoção, pelos britânicos, de formas adaptadas de do- minação indireta nas três divisões coloniais originais do país – leste, norte e oeste – a fim de dar conta das peculiaridades identificadas, pelo menos, com os três grupos étnicos principais. Esse amontoado de povos de identidades culturais diversas, largamente representado como um erro de proporções monumentais, é percebido como a base da fragilidade da Nigéria enquanto país.

Na medida em que o amálgama encampado por Lugard produ- ziu uma entidade que “sobrescreve” as estruturas pré-coloniais em operação, pode-se argumentar que os ativos e os passivos dos esta-

dos outrora independentes são automaticamente transferidos para a nova estrutura, neste caso a Nigéria. Nessa senda, obras de arte an- tigas produzidas em Nok, Ifé, Igbo-Ukwu, Benim e outros lugares são nigerianos, da mesma maneira que as pessoas de diferentes gru- pos étnicos foram tornados, por amálgama, nigerianos. Mas à medi- da que uma identidade decretada ou proclamada é internalizada ou expressa publicamente, ela é função da percepção das vantagens daí derivadas, muito especialmente quando essa identidade não se en- contra validada por algum mito que possa explicar a adoção da ordem vigente (BEATTIE, 1964). Em outras palavras, a força da identidade nigeriana e o quanto ela perseverará são determinados basicamen- te pelos privilégios concomitantes que conferem a seus portadores e pelo grau em que o passado incorporado em objetos artísticos é re- cordado coletivamente.

O passado da Nigéria, ao que parece, existe no passado dos seus povos, e sua identidade está embutida na deles. Um silogismo des- ta natureza, embora simplista, poderia explicar a ausência de uma identidade nigeriana monolítica. Enquanto isso, os numerosos passados e as memórias diferenciadas produzidas só podem apon- tar decididamente para o multiculturalismo, para a multiplicidade de identidades e para uma variegada diversidade, em tudo oposta à produção de uma memória coletiva pré-colonial e de ideais sobre os quais a identidade nacional pudesse ser fundada.

Hoje, mesmo com todos os desafios à identidade nacional, a Nigé- ria é indubitavelmente uma realidade vivida, mas há dúvidas se ela está inscrita nos objetos culturais que possam pré-datá-la – caso em que temos alguma reserva quanto à possibilidade de artefatos cultu- rais oriundos de Nok, Igbo-Ukwu ou de outros lugares serem apro- priados como nigerianos, ou de qualquer desses grandes trabalhos artísticos ser capaz de produzir uma memória que eleve a consciência nacional. Um exemplo que pode ser apropriadamente reconhecido como evidência do distanciamento desses objetos da realidade ni-

geriana é a reação de um monarca do Benim diante do retorno de quatro peças antigas, compradas de volta na casa de leilões londrina Sotheby’s, em 1980: o rei expressou sua frustração de ver as obras de arte serem mantidas em Lagos, que então era a capital federal, em vez de serem levadas para a Cidade do Benim, seu lugar de origem (OMORUYI, apud WILLET, 1990, p. 177), o que implica, para a ima- ginação popular, identificar essas peças como do Benim e não como nigerianas. Isto não deveria soar estranho no que tange às formas de identificação na Nigéria, já que “nós”, “nosso” ou qualquer prono- me possessivo, aliás, é usado mais em relação à identidade étnica. A tarefa de identificar o que é nigeriano tende a se revelar mais proble- mática em vista de um etnonacionalismo predominante que consti- tui o marco fundamental da política do país.