Nós somos os flagelados do vento leste
A nosso favor não houve campanhas de solidariedade Não se abriram lares para nos abrigar
E não houve braços estendidos fraternalmente para nós [...]
somos os flagelados do vento leste
os homens esqueceram-se de nos chamar irmãos e as vozes solidárias que temos sempre escutado são apenas as vozes do mar que nos salgou o sangue as vozes do vento que nos entranhou o ritmo do equilíbrio
e as vozes das nossas montanhas, estranhas e silenciosamente musicais
(MARTINS, Ovídio, “Os flagelados do vento leste”)
Assim se autodefine o cabo-verdiano, um povo que ao longo dos séculos vem existindo em um contínuo “ato de resistência, tenacida- de e teimosia” para sobreviver às agruras da natureza, às adversida- des do clima e à pobreza dos recursos. Um povo que, apesar de ter a fome como companheira de caminhada, insiste em plantar o milho e o tem como símbolo de sua cultura. Um povo marcado pela resistên- cia e que, se vê na paisagem árida o motivo de sua desgraça, consegue ver na chuva o milagre da vida, a transformação do árido em verde. Ao longo destas páginas, vimos mudar a relação com a paisagem e, com isso, a sua construção enquanto valor. Paralelamente, vimos ser construído o sentido do cabo-verdiano enquanto povo. Em ambas as construções algo permanece: ontem ou hoje, sendo negada ou cultu- ada, é a natureza árida que está no cerne da autodefinição do homem das ilhas, de sua cultura e do seu ethos.
Na relação com a natureza, atribuímos a ela um valor que varia ao longo do tempo, da cultura e dos interesses vigentes, em um processo que não é absoluto. A mesma paisagem que já foi caracterizada como feia, estéril, insalubre; que já foi vista como um entrave ao desenvol- vimento social, cultural e econômico; que já foi descrita incontáveis vezes na literatura cabo-verdiana com adjetivos tão negativos, co- meça a ser apreciada e construída em outras bases, convertida em bela, em fonte de riqueza tanto econômica quanto cultural. E não só: de entrave ao desenvolvimento passa a se constituir como o principal fator para que este se efetive.
Lembrando Simmel (1998), a paisagem é um construto social, sua beleza e sua hostilidade estão inseridas naquilo que ela provoca em nós e não em si mesma. São os nossos interesses que determinarão a forma como nos relacionamos com ela ou como a representamos. No caso específico de Cabo Verde, vimos um processo no qual já se valo- rizou a paisagem para produção, em que o valor estava nos aspectos produtivos de fertilidade da terra. Na atualidade, vemos esse pro- cesso se converter, e o valor se encontra numa estética da paisagem segundo a qual ela deve ser preservada e valorizada por si mesma, as características da paisagem sendo valiosas não tanto como recursos, mas como reservatórios de valor dignos de serem vistos e admirados.
Ao introjetar uma política de proteção da natureza, com a criação de unidades de conservação e de uma reserva da biosfera, Cabo Verde se insere num contexto internacional no qual impera o conceito de natureza como patrimônio de todos. Por outro lado, ao valorizar seus recursos naturais “típicos” para a exploração turística, Cabo Verde passa a ocupar um lugar, ainda que pequeno, no cenário internacio- nal como “destino turístico”. Do feio ao belo, de empecilho à pos- sibilidade de desenvolvimento, vemos a paisagem natural das ilhas ser elevada à categoria de patrimônio natural, ainda que não oficial- mente, e como tal, devendo ser classificado, identificado, promovido e protegido.
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