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Um ponto que precisa ser esclarecido é a noção de patrimônio que orienta a questão aqui lançada. Com a intensificação dos debates neste campo, dentro e fora da academia, o termo “patrimônio” tem se tornado um tanto polissêmico. Sem almejar uma discussão apro- fundada sobre o conceito, procuro nesta seção apenas fazer mais cla- ra a perspectiva adotada, localizando no debate sobre patrimônio o caso abordado.

Como tantas outras partes do mundo, Cabo Verde tem direciona- do o olhar para os processos de patrimonialização de forma cada vez mais vigorosa nos últimos anos. Isto é perceptível no debate público (veiculado pelos meios de comunicação de massa), nas políticas go- vernamentais e nas discussões de cunho acadêmico. O adensar do debate sobre patrimônio pode ser percebido, por exemplo, na aber- tura de um programa de mestrado pela Universidade de Cabo Verde, dedicado a fornecer formação avançada na área de “Patrimônio, Tu- rismo e Desenvolvimento”. Além disso, em 2009, o país teve uma de suas localidades – a Cidade Velha – declarada Patrimônio Mundial da Humanidade. Adentramos, portanto, um terreno onde a noção de patrimônio tem já uma história e encontra-se, em certa medida, institucionalizada. Nos dois casos citados, a noção de patrimônio que predomina é aquela que tem sido operacionalizada pela UNESCO, mas que, indo além das fronteiras deste órgão, pode ser entendida como uma categoria “bastante familiar ao moderno pensamento oci- dental” (GONÇALVES, 2003, p. 21). Observo que esta noção de pa- trimônio caracteriza-se, ainda, pela amplitude do seu escopo, uma vez que é entendida como passível de ser universalmente aplicada. Tendo isto em vista, é pela definição fornecida pela própria UNESCO, por meio de seu comitê interno responsável pela área, que dou início a esta breve discussão.

Em 2008, o Comitê Intergovernamental para a Proteção do Pa- trimônio Mundial, Cultural e Natural publicou, como parte de suas “Orientações Técnicas para Aplicação da Convenção do Patrimônio Mundial”, o trecho que se segue:

O patrimônio cultural e natural faz parte dos bens inestimáveis e insubstituíveis não só de cada país mas de toda a humanidade. A perda, por degradação ou desaparecimento, de qualquer des- ses bens eminentemente preciosos constitui um empobrecimento do patrimônio de todos os povos do mundo. Pode-se reconhecer,

com base nas respectivas qualidades notáveis, ‘um valor universal excepcional’ a certos elementos do referido patrimônio que, por essa razão, merecem ser muito especialmente protegidos contra os perigos cada vez maiores que os ameaçam (UNESCO, 2008, p.:12-13).

Chamo a atenção para três aspectos do texto citado. Em primeiro lugar, a percepção do patrimônio como um conjunto de bens cul- turais e naturais a que se atribui “valor universal excepcional”. Em segundo lugar, uma perspectiva voltada para a ideia de preservação e proteção do patrimônio em risco de degradação ou desaparecimento. E, por fim, a noção de “propriedade” presente em toda a concepção de patrimônio como um conjunto de bens, sejam eles de um país, ou “de todos os povos do mundo”. Partindo daí, precisamos examinar essas ideias, confrontando-as com outras concepções de patrimônio que, em contextos diversos, remetam a algum sentido de patrimo- nialização da música cabo-verdiana.

Se por patrimonialização entendemos um processo instituciona- lizado de reconhecimento e atribuição de valor a uma manifestação cultural, como sugere o texto da UNESCO, pergunto-me sobre a per- tinência de estender esta discussão ao caso da música cabo-verdiana. A morna, em especial, já é amplamente reconhecida por suas “qua- lidades notáveis”, interna e externamente a Cabo Verde. Quero di- zer com isto que, independentemente de qualquer política oficial de patrimonialização desta forma musical, ela já vem passando por um processo de patrimonialização em vários outros contextos.

Fora do arquipélago, a música cabo-verdiana é reconhecida pelos próprios mecanismos de legitimação da indústria cultural, como as premiações do Grammy. Outro bom exemplo do que procuro mos- trar são os discursos construídos sobre a música cabo-verdiana no domínio da world music, fração do mercado musical global em que está inserida. As ilhas de Cabo Verde são descritas pela gravadora de

world music Putumayo como o berço de um dos maiores tesouros musicais já encontrados no mundo. Noto que a citação original, em inglês, segue assim: “Not only are they starkly beautiful islands, but they are home to one of the world’s greatest musical treasure troves” (PUTUMAYO, 2011). O uso do termo treasure trove é especialmente significativo, uma vez que diz respeito a um tesouro de propriedade desconhecida ou simplesmente sem dono. Retirar dos cabo-verdia- nos a propriedade sobre suas produções musicais, tratando-as como bens culturais pertencentes a “todos os povos do mundo”, é uma postura consonante com os processos de patrimonialização imple- mentados pela UNESCO e que já vem sendo praticada pela indústria musical.

Internamente às ilhas, a “música tradicional cabo-verdiana” tam- bém é, há longo tempo, associada a concepções nativas de patrimônio. Os cabo-verdianos referem-se à música produzida no arquipélago como “o nosso diamante”. Conforme apontado anteriormente, é pleno o reconhecimento da morna como um símbolo de Cabo Verde pela população em geral. A música cabo-verdiana como um todo é referida pela gente das ilhas como um bem cultural de grande va- lor. Em campo, cheguei a ouvir que a música seria para os cabo-ver- dianos “nosso único produto de exportação” – o que já indica como esta concepção de patrimônio não só se confunde em alguma medida com a de propriedade, como também está estreitamente relacionada à ideia de mercado.

O texto da UNESCO aqui citado não se limita a discutir os pro- cessos de patrimonialização como mecanismos de reconhecimento de valor de bens culturais e naturais. Como se pode notar, há ainda uma referência fundamental à ideia de proteção de algo herdado. Se por patrimonialização entendemos o processo de preservação de um bem cultural ameaçado de desaparecimento, também julgo necessá- ria alguma cautela no caso aqui abordado. As políticas de salvaguarda implicam a crença numa fragilidade das manifestações culturais em

foco. Alimenta-se a ideia de uma ameaça sempre presente e da ur- gência de uma reação, “numa operação por meio da qual se procura guardar algo que corre o risco de ser destruído” (OLIVEN, 2003, p. 77). Não penso ser este o caso da música cabo-verdiana.

O evento narrado no início deste artigo já basta para levar adian- te meu argumento de que as chamadas “músicas tradicionais cabo- -verdianas” podem parecer mais frágeis em alguns contextos, mas permanecem fortes como parte de outros tantos atos de sociabili- dade. Certamente é impossível prever o futuro dos gêneros morna e coladeira, e eu não ousaria afirmar qualquer coisa neste sentido de forma categórica. Apenas acho excessivo o medo de desaparecimen- to das referidas formas musicais. Entrar nesta discussão, contudo, é algo que precisa ser feito com muito cuidado. Não posso deixar de contrastar meu argumento, externo, com as questões nativas, inter- nas. Da mesma maneira que apresento a música cabo-verdiana como um patrimônio através do prisma nativo (“o nosso diamante”), pre- ciso notar que a partir da mesma perspectiva nativa há, de fato, uma preocupação em relação ao futuro dessas manifestações culturais. O pouco interesse dos jovens pelas mornas e coladeiras é continua- mente mencionado pelos cabo-verdianos, revelando o receio de que as gerações futuras não saibam zelar por este patrimônio herdado. O que pretendo, portanto, é colocar essas ideias lado a lado com outras, complexificando o quadro.

Como insisto neste artigo, a indústria da música tem desempe- nhado um papel importante em dissipar, ou ao menos minimizar, o suposto risco de desaparecimento da “música tradicional cabo- -verdiana”. Ao transformar em mercadoria esses bens culturais de Cabo Verde (e de toda a humanidade, no discurso da UNESCO e das gravadoras), a indústria musical global contribui para o retorno de tais produções, fortalecidas, para as experiências musicais dos ca- bo-verdianos – inclusive aqueles das gerações mais novas. Acredito ainda que a grande quantidade de migrantes cabo-verdianos viven-

do no exterior seja outro importante fator a ser considerado.3 A mú-

sica tradicional cabo-verdiana tem seu valor continuamente renova- do nas vivências do migrante que, longe de sua terra natal, encontra nas mornas e nas coladeiras uma forma de manter seus vínculos com as ilhas. Cheios de saudade das coisas da terra, os migrantes contri- buem para conservar o vigor da música cabo-verdiana – seja nas vá- rias casas noturnas que frequentam no exterior, com apresentações ao vivo da “música tradicional”, seja nos retornos periódicos a Cabo Verde, quando mornas e coladeiras se fazem presentes nos atos de sociabilidade.4

Nesta breve imersão no debate sobre patrimônio, algumas ideias fundamentais foram mencionadas: reconhecimento, atribuição de valor, preservação, propriedade. Minha discussão neste artigo reto- ma ainda outro ponto: a ideia de registro. Esta pode abarcar igual- mente os processos oficiais implementados por órgãos governamen- tais (como é o caso do registro de bens culturais de natureza imaterial implementado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Na- cional no Brasil),5 o próprio registro etnográfico (produto do ofício

do antropólogo), ou o registro fonográfico mediado pelas gravado- ras. Neste último caso, trata-se de uma produção que é simultanea- mente alienável e não alienável, vendida nas lojas de discos e igual- mente passível de ser mantida como parte de coleções valorizadas e 3 Apesar da dificuldade de trabalhar com números precisos quando o assunto é migração internacional, acredita-se que seja possível afirmar com segurança, hoje, que o número de pessoas de origem cabo-verdiana vivendo fora de cabo Verde seja muito superior à população residente no arquipélago.

4 sobre as experiências musicais dos migrantes cabo-verdianos no retorno às ilhas, ver dias (2004).

5 A relativamente recente categoria de “patrimônio imaterial” ou “intangível”, que sustenta hoje muitas das políticas do ipHAn, opõe-se ao chamado “patrimônio de pedra e cal”, entre outros fatores, por não implicar o tombamento de bens. A proposta é de “registrar” saberes, celebrações, formas de expressão e lugares, fazendo um acompanhamento para verificar permanências e transformações.

conservadas com cuidado. Colecionados, os discos não podem mais ser pensados separadamente, e sim como parte de um conjunto que ganha sentido em sua totalidade. Seja uma coleção pessoal de anti- gos discos de vinil, ou o arquivo discográfico de uma rádio, ambos os processos de registro e colecionamento são de grande relevância para uma discussão sobre construção de memórias e pertencimentos.