• Nenhum resultado encontrado

contraponto baiano do açúcar e do petróleo 1 livio sansone

Universidade Federal da Bahia

O açúcar e o petróleo são possivelmente a primeira e a segunda mer- cadorias-chave globais. Tem havido, é claro, outras mercadorias globais, tais como o sal, o ferro, o cacau, o café e o algodão – nota- -se um conjunto crescente de publicações na história e na antropo- logia a respeito das mercadorias globais – mas, por uma variedade de razões, seus impactos sobre a formação da identidade e em gran- 1 Meu título é uma referência oblíqua ao clássico livro de Fernando ortiz,

contrapunteo cubano del tabaco y del azúcar. Madrid: catedra, 2002 [1940], em que ele se refere ao tabaco como o motor de uma forma de produção “branda” enquanto o açúcar seria o motor de uma forma de produção “dura”. A metáfora do contraponto entre duas mercadorias “opostas” também foi utilizada, no caso do recôncavo baiano, por barickman (1998). Agradeço ao conselho nacional de pesquisa (cnpq) e ao instituto do Milênio sobre a desigualdade, do instituto Universitário de pesquisas e estudos do rio de Janeiro (iUperJ) pelo apoio financeiro a este projeto de pesquisa, não exatamente generoso, mas certamente muito necessário. Agradeço também a meus assistentes de pesquisa Washington de Jesus, Agrimária Mattos, evelim sousa, rosana paiva e diógenes barbosa. Uma versão preliminar deste texto saiu com o titulo Um contraponto baiano do açúcar e do petróleo: mercadorias globais, identidades globais? (in: cAroso, carlos; tAVAres, Fatima; pereirA, claudio [org.], 2011, pp. 351-375.

des projetos étnicos ou nacionais foram menos intensos. Ademais, o açúcar e o petróleo, como mercadorias globais, podem ser tomados como paradigmáticos em relação às suas respectivas épocas, já que, de inúmeras maneiras, eles são um símbolo de seu tempo e ícones de poder: a linguagem universal do açúcar e sua tecnologia eram por- tuguesas, por vezes também espanhola. O açúcar tornou-se uma mercadoria que caracterizava e, em muitos sentidos, representava o Império português e o período da dominação ibérica do Atlântico. No caso da perfuração de petróleo e sua transformação em combustível, desde o seu início, no final do século XIX, a linguagem técnica – no fim das contas um jargão-mercadoria global – era e é ainda predomi- nantemente o inglês, e a maior parte de sua tecnologia tem sido até agora produzida nos Estados Unidos e no Reino Unido. O petróleo e a tecnologia que ele possibilita representam o estágio da modernidade cujo idioma global é o inglês.

Este artigo explora os efeitos do açúcar e do petróleo sobre a for- mação de identidades ou, mais especificamente, sobre a produção da negritude e da branquidade. O estudo centra-se na região do en- torno de Salvador, Bahia, onde ambas as mercadorias exerceram e ainda exercem um grande impacto, o açúcar desde 1550 e o petróleo desde 1950. A perfuração de poços de petróleo desde o início da dé- cada de 1950 e, mais tarde, a construção de uma enorme refinaria tiveram lugar em uma região até então dominada pela monocultura da cana e por engenhos ou usinas de açúcar. Após comparar a vida cotidiana sob a égide destas duas mercadorias, estabeleço a relação com a questão de uma identidade negra transnacional criada através do Atlântico, baseada em um passado comum de escravidão e em um passado mais recente, estendendo-se aos dias atuais, em que hie- rarquias raciais ainda penalizam populações definidas como negras. Finalmente, tento equacionar tanto a hegemonia cultural que acom- panha a economia de uma mercadoria global e a influência do Atlân-

tico negro (GILROY, 1993) quanto um conjunto de singularidades que caracterizam essa região do estado da Bahia.

Essa parte da Bahia é emblemática para outras regiões do Brasil e diversos países em que a exploração do petróleo chega para substi- tuir monoculturas ou formas de economia de subsistência (como a cana-de-açúcar, o cacau ou a pesca em pequena escala), ao mesmo tempo em que cria – amiúde muito rapidamente – uma economia local completamente diferente, com novas conexões globais, salários mais altos, distintos padrões de consumo conspícuo, novos valores associados a certas formas de trabalho manual e habilidades técnicas, e uma maneira totalmente nova de avaliar o que é um bom emprego.

A pesquisa que fundamenta este artigo é parte de um projeto mais amplo que combina minhas duas preocupações intelectuais atuais: a história dos Estudos Afro-americanos na Bahia desde o fim dos anos 1930, um período que culmina com a visita de Franklin Frazier, Lorenzo Turner e Melville Herskovits à Bahia –1940-43 (SANSONE, 2011), e o desenvolvimento, na região em torno de Salvador, Bahia, ao longo de um extenso período, daquilo que gosto de chamar de cultura da desigualdade – a naturalização da diferença (TILLY, 1998) – que torna aceitável ou suportável a vida em um contexto de de- sigualdade lancinante, através de um tipo de pacto social e cultural entre os ricos e os despossuídos. Essa cultura se desenvolve de forma bem lenta e leva muito tempo para recuar. Obviamente, tento tra- çar rupturas tanto quanto continuidades na experiência desse pacto social tão distorcido. O pacto baiano segue um conjunto de regras locais, mas também apresenta similaridades com outros pactos do gênero no sul global, em lugares com um histórico de desigualdades duráveis, especialmente outras partes da América Latina e da África, afinal, a região e o continente com os maiores índices GINI, coefi- ciente que mede a desigualdade.

O estudo da manutenção de desigualdades persistentes e extre- mas, assim como as formas culturais específicas e as estratégias so-

ciais que essas desigualdades ajudam a criar, pode se beneficiar de novos insights ao enfocar a longa história de regiões específicas, identificadas com sistemas de oportunidades abertos, porém terri- torializados. A esse respeito, enfatizar a situação desta região espe- cífica do Brasil pode permitir o reconhecimento de como tais desi- gualdades são construídas, postas em ação, conseguindo, de alguma maneira, reproduzir-se ao longo das gerações. Algumas regiões são particularmente cruciais, por exemplo, aquelas que experimentam uma transformação bastante súbita, indo de uma monocultura para uma “monoindústria”. A região ao redor do município baiano de São Francisco do Conde, que contava com cerca de 25 mil habitantes no ano 2000, localizada no Recôncavo baiano, a 80 km de Salvador, é um desses casos: é interessante tanto por seu passado, por ser um dos berços da sociedade baseada na monocultura do açúcar no Bra- sil, quanto por seu presente, em virtude de ter uma renda per capita bastante elevada, derivada do refino e da transformação do petróleo, combinada a um índice GINI extremamente alto.2

Minha pesquisa é baseada em trabalho de campo entre dois grupos distintos ainda que por vezes inter-relacionados: 1. antigos trabalha- dores das usinas de açúcar e seus descendentes; e 2. a primeira gera- ção de trabalhadores do petróleo e seus descendentes. A isso acres- centamos, é claro, material proveniente de arquivos e de acidentes, tais como o encontro do livro de registro da fazenda e usina Dao João que teve um lugar central na pesquisa. Para ser capaz de descrever o longo período que vai de 1950 até o presente, nossa pesquisa con- centrou-se em dois grupos etários: a geração mais velha, atualmente na faixa de 60 a 90 anos, e a geração mais jovem, na faixa de 15 a 30 anos. De janeiro de 2007 a janeiro de 2009, após dois anos de pesqui- sa em arquivos, história oral, entrevistas aprofundadas e observação 2 Há um livro bastante abrangente sobre essa região, a recente compilação

participante, nossa equipe (composta por mim e quatro estudantes de graduação em final de curso) começou a aplicar um questionário a uma amostra representativa, composta por 500 famílias, distribu- ídas em diferentes distritos do município. Este levantamento, cen- trado na percepção da desigualdade em relação ao consumo, à ter- minologia racial, ao lazer e ao binômio trabalho e desemprego, será interpretado em outra ocasião. Este artigo está relacionado mais à parte qualitativa de nossa pesquisa, enfocando uma usina específica, mais tarde transformada em região de produção de petróleo, do que à vida em geral nos espaços rurais monocultores da Bahia ou à indús- tria petrolífera como tal no Brasil.3

Em muitos aspectos, minha pesquisa representa uma extensão do grande projeto Columbia-Unesco sobre as relações raciais no Brasil (CHOR MAIO, 1999; PEREIRA; SANSONE, 2007), que realizou tra- balho de campo sobre a sociedade monocultora entre 1950 e 1953 na mesma região (WAGLEY, 1963; WAGLEY; ROXO, 1970). Esse foi o período em que as primeiras perfurações de poços de petróleo fo- ram feitas na área, a vida nas usinas sendo vista como o epítome do atraso no estado da Bahia. De fato, bem em frente à fazenda e usina Dao João estudada por William Hutchinson (1957) e mais tarde por Maxine Margolis (1975), o recém-fundado Conselho Nacional do Pe- tróleo, poucos anos depois rebatizado de Petrobras, construiu o pri- meiro campo de poços de grande porte na Bahia, e o nomeou – o que então foi percebido como uma provocação cultural contra o sistema monocultor dominante – com o mesmo nome da usina: Campo Dao 3 no brasil tem havido, surpreendentemente, pouca pesquisa socioantropológica sobre o açúcar e, em especial, sobre o petróleo. com poucas exceções, tais como José sérgio leite lopes (1976) que abordou uma usina de açúcar no estado de pernambuco, o pouco que existe de pesquisa tende a evitar o foco sobre um engenho de açúcar ou o campo de extração de petróleo específico, o que se relaciona, em grande medida, com o fato de haver poucas fontes escritas para pesquisas em escalas tão pequenas, e em função de a etnografia e a história oral não estarem sendo utilizadas suficientemente.

João. Obviamente, naqueles primeiros anos de aberta oposição eco- nômica e cultural entre o mundo da perfuração e refino do petróleo e o mundo da produção do açúcar e do álcool, ninguém, na verdade, poderia imaginar que apenas 20 anos mais tarde, em meados da dé- cada de 1970, a cana-de-açúcar viria a se tornar, por meio do etanol, um componente importante dos combustíveis automobilísticos no Brasil.

Além de comparar as relações e as hierarquias sociais e raciais na era do açúcar e na era do petróleo, investigo também os diferentes sistemas de memória que o açúcar e o petróleo desenvolveram na região. Conforme demonstrarei mais adiante, a indústria do petró- leo teve um grande impacto no sistema da memória e da lembrança. Neste artigo, estou interessado nas consequências da chegada e do desenvolvimento da indústria do petróleo, inicialmente, e dos royal- ties, mais tarde, no cotidiano familiar, na formação de identidades, na vida religiosa e em noções de negritude.

Em muitos aspectos, o estudo da gênese de desigualdades persis- tentes e extremas é uma análise dos diferentes estágios da moderni- dade e de suas consequências para o sistema de dominação e hierar- quia social, assim como para o tipo de resistência e para o conjunto de expectativas que dele derivam. Em meu projeto, eu e meus assis- tentes isolamos, para propósitos analíticos, três estágios na constru- ção das desigualdades, cada uma deles sendo caracterizado por uma força diretriz principal na economia:

• um primeiro período no qual a cana-de-açúcar, com sua cul- tura e seu sistema de memória, determina a economia local e as conexões transnacionais – atores destacados são importan- tes e famílias locais bem conhecidas de capitalistas vivem em constante falta de capital: são capitalistas sem capital;

• um segundo período no qual o petróleo, com sua cultura e seu sistema de memória muito mais poderosos, torna-se repen-

tinamente e durante algumas poucas décadas a força econô- mica motriz – o único ator destacado é um capitalismo (sem rosto) sem capitalistas;

• um terceiro período caracterizado por uma arrecadação mu- nicipal relacionada à exploração do petróleo, a qual permite um populismo movido a petróleo em São Francisco do Conde – o ator de destaque é a riqueza sem contrato social, da for- ma que ocorre na maioria das sociedades hidrocarburetadas (KARL, 1997; CORONIL, 1997).