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Mamãi!

sonho que, um dia,

em vez dos campos sem nada

do êxodo das gentes nos anos de estiagem

deixando terras, deixando enxadas, deixando tudo, das casas de pedra solta fumegando do alto, dos meninos espantalhos atirando fondas, das lágrimas vertidas por aqueles que partem e dos sonhos, aflorando, quando um barco passa,

dos gritos e maldições, dos ódios e vinganças, dos braços musculados que se quedam inertes, dos que estendem as mãos,

dos que olham sem esperanças o dia que há de vir, Mamãi!

sonho que, um dia,

estas leiras de terra que se estendem,

quer sejam Mato Engenho, Dàcabalaio ou Santana, filhas do nosso esforço, frutos do nosso suor, serão nossas.

E então,

o barulho das máquinas cortando, águas correndo por levadas enormes, plantas a apontar,

trapiches pilando,

cheiro de melaço estonteando, quente, novas seivas brotando da terra dura e seca,

vivificando os sonhos, vivificando as ânsias, vivificando a Vida!...6

Até o momento analisei atitudes e discursos sobre a terra e a paisa- gem a partir da visão dos agentes coloniais, missionários e viajantes. De uma forma geral esta visão estava baseada nas noções negativas de aridez, seca, insalubridade e indolência, e meu objetivo foi o de explorar o significado dessas classificações dentro do contexto apre- sentado. As expressões vinham acompanhadas de uma variedade de ideias ambivalentes sobre os nativos, e algumas dessas ideias foram também examinadas. Nesta seção quero examinar os desdobramen- tos desse discurso no processo de construção da nação cabo-verdia- na em um momento que considero importante para a configuração do estado cabo-verdiano moderno: o Movimento Claridade.

6 nUnes, António de. poema de Amanhã. Revista Certeza, n. 2, são Vicente de cabo Verde, 1944. Folha da Academia.

Tal como expresso no poema de Antonio de Nunes, a denúncia sobre o estado de abandono da colônia, feita pela emergente elite in- telectual cabo-verdiana, começou a evoluir nos finais do século XIX com o processo de “fincar os pés na terra”. Foi o movimento que se formou ao redor da revista Claridade que marca o apogeu da reivin- dicação dos valores locais e afirma ter tomado para si a voz que até então era quase exclusiva dos colonizadores.

Essa grande virada consistiu na divulgação, por meio da arte e da literatura, dos temas do dia a dia, o drama do homem das ilhas, o universo da seca, das fomes, da insularidade, da aridez e da emigra- ção. Pela análise do discurso literário dos claridosos, podemos per- ceber como estes atores selecionaram e adaptaram os discursos sobre Cabo Verde à sua própria necessidade de criar uma nação autônoma e descolonizada, ao mesmo tempo em que mantinham os valores por- tugueses. Como afirma Pratt (1992) para o caso americano, esboça-se a dinâmica da autorrepresentação no contexto da subordinação e das resistências coloniais.

Entre outros, um dos temas centrais desenvolvidos em Clarida- de refere-se ao espaço, à paisagem e ao clima em Cabo Verde e sua participação na definição dos traços que caracterizam os habitantes das ilhas. O clima certamente pode ser considerado como um fator de grande influência na formação do arquipélago, que esteve sujei- to a frequentes e prolongadas estiagens ao longo de sua história. A seca e as crises de fome condicionaram, em larga medida, a trajetó- ria socioeconômica do país, deixando sua marca na dura realidade vivenciada pela população do arquipélago, obrigada a enfrentar um conjunto de dificuldades para a sua sobrevivência.

Como veremos, é forte a presença do ambiente no discurso dos claridosos, consolidando-se como um importante fator explicativo para o grau de desenvolvimento que os cabo-verdianos estavam ap- tos a alcançar. O que percebemos na análise dos textos publicados na revista Claridade é que um discurso determinista é tomado na cons-

trução da especificidade cabo-verdiana, constituindo-o como um fator central na construção da personalidade do homem das ilhas.

Para os claridosos, o cabo-verdiano é o “homem do mar” que, estando habituado aos horizontes largos, tem a alma grande e é es- sencialmente contemplativo. Por outras vezes, é a seca que assume a centralidade na formação da personalidade do habitante das ilhas. É o homem cabo-verdiano descrito como um homem “resignado”, uma vez que “a natureza ingrata [...] lhe tira as qualidades mais apre- ciadas no mundo pragmático de hoje” (1986, p. 4).

Ouvi por diversas vezes que o homem cabo-verdiano é um “ho- mem apesar da seca”. Conforme os depoimentos registrados, fica a impressão de uma relação estranha com o destino e até mesmo com Deus. Este não deu riquezas a Cabo Verde, os cabo-verdianos seriam como filhos bastardos que souberam criar suas terras e sobreviver a elas, por isso seriam eles a sua única riqueza. É assim que surge o cabo-verdiano como herói, como aquele que sobreviveu a uma terra onde não há condições de vida. O drama reside na penosa constatação de que a natureza é, em Cabo Verde, tão rebelde e diabólica que o ho- mem não consegue vencê-la. O homem é, antes de tudo, sua vítima. Observa-se aí uma importante relação de continuidade e descon- tinuidade com os discursos analisados na primeira seção. No que se refere à determinação do ambiente na configuração cultural em for- mação, percebemos a continuidade, porém, esta se quebra quando se analisa que tipo de homem que emerge dessa relação com o meio – a qualidade desse homem muda essencialmente.

Retomando a perspectiva dos colonizadores, viajantes e missio- nários, estes vendo a pobreza da terra diretamente associada à po- breza e à indolência dos nativos, traçamos alguns paralelos. Não só a terra era descrita de maneira negativa, como os homens que nela trabalham e que dela vivem eram também incorporados nessa visão da paisagem. Agora, de acordo com os novos atores que tomam para si essa caracterização, a natureza se apresenta como “ingrata”, o solo

como “agressivo”, a paisagem como “trágica”. Porém, o homem cabo-verdiano é oposto a esse quadro, mais do que isso, é sua face positiva que se apresenta nas afirmações de “doçura da população”, de um “povo heróico”, um povo que luta incansavelmente contra o destino de viver inserido em uma natureza ingrata.

A grande mudança em relação aos séculos anteriores reside na forma como é feita a caracterização do homem como parte dessa pai- sagem. O discurso claridoso nega a imagem do homem indolente e, em certa medida, culpado pela improdutividade da terra, e o coloca no lugar de vítima, aquele que sofre com o “destino” de ter que viver numa terra ingrata. Porém, pela sua índole que nega a passividade, o homem cabo-verdiano do Movimento Claridade supera esse destino, resiste à ingratidão do clima e, em uma relação de ódio e amor, tira da terra o que necessita para sobreviver. O cabo-verdiano resiste ao clima, é aquele que sabe esperar a chuva cair e, quando ela cai, sabe extrair da terra o alimento, daí seu heroísmo.

O discurso da geração dos claridosos pode ser visto como uma verdadeira narrativa da nação, porque a cria e recria, criando des- continuidades identitárias. A força da poesia e da ficção de Clarida- de e a influência que ela exerce até os dias de hoje em várias esferas da vida do arquipélago encontram-se na disseminação de sua ide- ologia. É dessa forma que a cultura é. A caracterização de grande- za, heroísmo e resistência desse povo “abandonado por Deus nesses dez grãozinhos de terra perdidos no Atlântico” é incorporada ainda hoje na autocaracterização do cabo-verdiano, é assim que ele define sua identidade, seja no cotidiano, seja na esfera política. A sociedade e também sua relação com a natureza foi dramatizada, inventada e reinventada pela poesia e pela literatura da época; e a eficácia dessa construção é vivida em um processo que perdura até hoje. É nesse sentido que o discurso de identidade pregado pelo Movimento vem sendo (re)apropriado pelo Estado e pela população na constante bus- ca por uma especificidade cabo-verdiana.