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Aridez, seca, “patrimônio natural” e identidade em cabo Verde

Andréa lobo

Universidade de Brasília

No presente artigo pretendo discutir a construção cultural da nature- za enquanto patrimônio natural. Meu argumento é de que a categoria “natureza” é construída e manipulada socialmente, tendo um im- portante papel na formação de identidades coletivas. Nesse sentido, a categoria patrimônio ganha um caráter especial, uma vez que agrega valor aos aspectos naturais de um dado lugar, transformando-o. Mi- nha análise tem como ponto de partida o contexto cabo-verdiano,2

1 A primeira versão deste trabalho foi apresentada no seminário procAd “patrimônio, Memória e identidade”, realizado na casa da nigéria, salvador, de 23 a 27 de agosto de 2010. Agradeço aos participantes do seminário pelas valiosas contribuições e sugestões ao texto.

2 o arquipélago de cabo Verde é formado por 10 ilhas com topografia, solo e clima diferenciados, foi povoado originalmente por portugueses e por africanos da costa que haviam sido para ali trazidos em situação de servidão. com o tempo, foi se desenvolvendo uma sociedade crioula, produto de um complexo arranjo de misturas entre pessoas de origens étnicas, religiosas e linguísticas diferenciadas. seu papel como intermediário num sistema de trocas intersocietárias foi a base de sua reprodução social, como agentes no comércio atlântico e com a costa da

considerando os dados etnográficos e as construções históricas sobre a natureza árida das ilhas.

Parto, portanto, dos relatos dos colonizadores e suas referências quase sempre negativas sobre a natureza e os homens que nela vi- viam, sendo por ela influenciados. Em seguida passo pelos textos e pelas poesias de intelectuais que, no contexto da iminente indepen- dência, roubam para si a voz e buscam definir o cabo-verdiano como um “homem apesar da seca”, a natureza ainda sendo caracterizada de forma negativa, porém o homem não. Por fim, trago para a discussão relatos modernos sobre a paisagem árida das ilhas, agora não mais como entrave, mas como uma característica singular do arquipélago que deve ser valorizada pelos cabo-verdianos. Com uma breve aná- lise dos Planos Nacionais do Desenvolvimento e outros documentos, tento dar conta do processo de transformação da natureza das ilhas em meio ambiente, digno de preservação, proteção, documentação e promoção – sua transformação em um patrimônio que, em certa medida, define os próprios cabo-verdianos.

Estaria abusando da categoria “patrimônio” ao trazê-la para esta discussão, mesmo com o cuidado de colocá-la entre aspas? As limi- tações e as possibilidades que a noção de patrimônio oferece para o entendimento da vida social e cultural fizeram parte do debate de, pelo menos, duas coletâneas brasileiras sobre o tema.3 Para alguns

dos autores que compõem as coletâneas, a preocupação é com o in- flacionamento da categoria. Porém, outros refletem sobre as possibi- África. na falta de um sistema produtivo local que desse conta das necessidades de subsistência dos ilhéus, cabo Verde tem sua história marcada por duros períodos de fome provocados pelas secas que regularmente assolam as ilhas. 3 AbreU, regina; cHAgAs, Mario (org.). Memória e Patrimônio: ensaios

contemporâneos. rio de Janeiro: dp&A, 2003; liMA FilHo, Manuel Ferreira;

ecKert, cornélia; beltrão, Jane (org.). Antropologia e patrimônio cultural:

lidades de se transitar analiticamente com esse conceito em diversos contextos sociais e culturais. Nesse sentido, Maria Cecília Fonseca resgata a noção de patrimônio natural para sua análise, ressaltan- do que, cada vez mais, a preocupação em preservar está associada à consciência da importância da diversidade – seja a biodiversida- de ou a diversidade cultural – para a sobrevivência da humanidade. No caso da natureza e sua biodiversidade, a autora diz que há uma clareza maior por parte da opinião pública de que se trata de um pa- trimônio de todos os cidadãos. Daí os movimentos ambientais e os governos dos Estados nacionais – especialmente aqueles classifica- dos como “em desenvolvimento” – emplacarem o discurso pela pre- servação de algo que é uma “riqueza” nacional.

Além disso, cabe esclarecer que esta categoria aparece nos do- cumentos que serão analisados na última seção, mas não como uma categoria oficial, ou seja, não há nenhum sítio promovido a status de patrimônio natural em Cabo Verde tal como temos na Constituição brasileira, por exemplo, para os casos dos biomas da Mata Atlântica, da Floresta Amazônica e do Pantanal.4 Porém, em ambos os casos, o

termo patrimônio funciona como estratégia de promoção dos atri- butos naturais, como tentarei demonstrar ao longo do trabalho.

Quero dizer com isto que, para compreender o significado que têm as construções sobre a natureza para os cabo-verdianos, não basta entender as propriedades genéricas do meio ambiente natural. É necessário assimilar também os conceitos específicos das relações entre o homem, a sociedade e a natureza, bem como os dispositivos e os canais propriamente sociais (ou institucionais) pelos quais certos 4 sobre o caso brasileiro, é interessante notar que aos biomas cerrado, caatinga e pampas não é atribuída a categoria de patrimônio natural. no caso do cerrado e da caatinga, há uma batalha legislativa que se arrasta por mais de 15 anos para que os referidos biomas sejam incluídos no artigo da constituição que define os patrimônios naturais do país. para maiores informação sobre a temática, ver a proposta de emenda à constituição 115/95 (conhecida como pec do cerrado).

membros de uma sociedade particular, vivendo num tempo parti- cular, criam os discursos sobre ela. Nesse sentido, vemos a paisagem das ilhas ser transformada de empecilho a patrimônio num processo em que as pessoas significam a si mesmas e seu mundo por intermé- dio de sua relação imaginada com a natureza.