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Fonte de memória, os arquivos discográficos são também objeto de disputa, necessariamente inseridos num campo de poder. Exemplo disto é a história da Rádio Barlavento (também de São Vicente), to- mada por um comando do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) na noite de 9 de dezembro de 1974, às vésperas da independência.

A Rádio Barlavento pertencia ao Grémio Recreativo do Mindelo, uma associação composta por membros da elite local. Eram deno- minados gente brónke ou brónke de terra – literalmente, “gente branca” e “brancos da terra”. As expressões não fazem alusão direta à cor da pele. Com a acentuada ascensão socioeconômica do mesti- ço na história de Cabo Verde, o vocábulo brónke (branco), quando empregado nestas expressões, perdeu a noção de cor e passou a se referir à posição social, designando a elite cabo-verdiana. Era esta elite que se reunia frequentemente na sede do Grémio Recreativo do Mindelo, localizada em frente à Praça Nova, para juntos conversarem

e se divertirem.6 A admissão ao Grémio era rigidamente controlada,

formando um grupo coeso que, com a independência nacional, foi atacado como “burguês” e “antipatriota” (Entrevista..., 2002, p. 15). A Rádio Barlavento foi, portanto, um dos maiores emblemas da alta sociedade mindelense. O ato simbólico de sua tomada por militantes do PAIGC, tendo o povo como testemunha, assistindo a tudo através dos alto-falantes instalados na Praça Nova, representou um momen- to de virada na história nacional.

A tomada da Rádio Barlavento por membros do PAIGC não é um fato isolado. Em Portugal, com a revolução de 25 de abril de 1974, também houve a tomada da Emissora Nacional de Radiodifusão, que era vinculada ao Estado Novo. E, para citar um caso aparentemente mais distante, no Afeganistão a rádio era tão intensamente associada às políticas culturais do Estado que a estação foi destruída logo após a destituição de Amanullah, em 1929 (BAILY, 1994).

Tomar a Rádio Barlavento era um ato simbólico de destituição de um grupo vinculado ao poder colonial. Significava também o con- trole altamente estratégico de um meio de comunicação de massa e, ainda, a posse de um arquivo sonoro, um capital simbólico, fonte para a construção de narrativas sobre Cabo Verde – crucial naquele contexto de disputa entre diversos projetos para a nação cabo-ver- diana.

Ainda no âmbito da discussão sobre memória, gostaria de chamar a atenção para o fato de que, ao tratarmos de música popular, mer- gulhamos num domínio muito especial para a construção de narra- tivas plurivocais sobre a nação. As manifestações da cultura popular favorecem a construção de narrativas que bebem em fontes diver- sas e revelam discursos distintos da história oficial do país. A cultura popular conforma um espaço que se abre eficientemente para uma 6 observo hoje que o próprio grémio recreativo foi alvo de um processo de

multiplicidade de vozes sobre as experiências vividas pelos cabo- -verdianos. Trago aqui um único exemplo para reforçar esta ideia.

A maneira como foi sendo elaborada a história oficial de Cabo Verde revela com nitidez um processo de seleção – como, aliás, em qualquer processo de construção de memória. Algumas temáticas que remetiam às experiências mais duramente vividas no cotidiano dos ilhéus foram cuidadosa e sistematicamente silenciadas, porque não condiziam com a imagem que o Império Português gostaria de apresentar sobre suas possessões em África. Refiro-me, em particu- lar, à seca e à fome.

O arquipélago de Cabo Verde tem sofrido, ao longo de séculos, verdadeiras catástrofes de ordem climática. Entre o século XIX e a primeira metade do século XX, a seca provocou impactantes mor- tandades pela fome. E ao mesmo tempo em que viviam essas cala- midades, os cabo-verdianos eram obrigados a se calar, impedidos até mesmo de pronunciar a palavra “fome”. No entanto, apesar das proibições, a seca e a fome ganharam reelaborações na música popu- lar pelo uso de metáforas ou por referências indiretas.

Um exemplo disto é uma canção que discorre sobre uma planta – a fedegosa (ou, no crioulo cabo-verdiano, fêdagósa). Reproduzo aqui um pequeno trecho da canção, de autor desconhecido:

Oi Fêdagósa oi Fedegosa

Fêdagósa bô ê mau Fedegosa, você é má

Bô matá-me nha mamã Você matou a minha mãe

Bô matá-me nha papá. Você matou o meu pai.

A fedegosa é uma planta que os cabo-verdianos consideram im- própria para o consumo humano. É tida como “comida de cabra” ou “comida de bicho”. Na medida em que a canção (também conheci- da popularmente como “morna da fome”) sugere o uso da fedegosa

como alimento, deixa gravadas na memória as marcas da condição limítrofe vivida pelos cabo-verdianos. E a música vai além. Acusa a fedegosa pela morte dos pais do sujeito da canção. Poderíamos nos perguntar se o autor não estaria usando o nome da planta como uma forte metáfora para falar da própria fome.

Músicas como a citada multiplicam-se, remetendo a temáticas não abordadas pela história oficial, ou agregando novas perspecti- vas aos eventos que marcaram a história desse povo. Isto é o que se passa, por exemplo, com uma série de canções sobre a emigração, abordando aspectos diversos de uma experiência definidora para os cabo-verdianos. Quando tais narrativas são gravadas e arquivadas, elas passam a ocupar outro lugar na disputa com as narrativas oficiais na construção da memória de uma nação.

Não poderia deixar de ressaltar também que os discos (e não mais exclusivamente as músicas) são, eles próprios, fonte de memória ao mapearem as trajetórias dos migrantes cabo-verdianos. Há uma va- riedade de gravadoras, em diversos países, responsáveis pela repro- dução de músicas cabo-verdianas: Alvorada Discos (Portugal), Cabo- -Verde Records (Estados Unidos), Morabeza Records (Holanda), IRI (França), entre outras. Os países onde estão sediadas tais gravadoras representam, evidentemente, localidades com grande concentração de migrantes cabo-verdianos. Chamo a atenção ainda para os casos em que as diferentes faixas de um único disco foram gravadas em distintos estúdios, em países diversos.7 As histórias dos próprios dis-

cos permitem, portanto, um mapeamento da circulação dos músicos cabo-verdianos, inseridos num contexto migratório – e funcionam, assim, como uma fonte alternativa para narrar os diversos aspectos da história deste país marcado pela emigração.

7 Agradeço a gláucia Aparecida nogueira por me fornecer esta informação, em conversa pessoal.