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10 PRINCÍPIOS DA COMPETÊNCIA INTERNACIONAL

10.1. a Acesso à justiça: Negativa de denegação de jurisdição

A obrigação de evitar denegação de jurisdição, agindo como limite à fixação de regras de competência internacional, deve ser entendido como uma proibição aos Estados de excluir o acesso de determinados indivíduos ou grupos de indivíduos aos seus órgãos jurisdicionais. Tal proibição não significa uma restrição à possibilidade de que a justiça de um determinado país dê- se por incompetente para o julgamento de determinado caso ou que julgue improcedente a demanda de um estrangeiro. Exige sim que o Estado faculte, em termos gerais, sua prestação jurisdicional aos estrangeiros nos mesmos termos em que oferece a seus nacionais.

Reflexo desse princípio é a necessidade de se expurgar da ordem jurídica internacional normas de competência internacional arbitrárias que, na prática, limitem ou simplesmente excluam de antemão o acesso de estrangeiros aos tribunais nacionais. Exemplo disso está presente nos artigos 14 e 15 do Código Civil francês,80 cuja aplicação literal resulta na impossibilidade de conhecimento pelos tribunais franceses de quaisquer litígios entre estrangeiros, ainda que domiciliados na França.

Tais dispositivos, contudo, apesar de ainda em vigor, não são mais aplicados pelo Poder Judiciáiro francês ou aceitos pela doutrina. O Supremo Tribunal francês, Cour de Cassation, já vem decidindo pela não aplicação de ambos dispositivos do CC. Os artigos não são mais obstáculos ao conhecimento de demandas que envolvam apenas estrangeiros, sem a participação de franceses. Isso porque, os tribunais franceses só se preocupavam em conhecer litígios que

80

Artigo 14. “L’etranger, même non résidant en France, pourra être cité devant les tribunaux français, pour

l’exécution des obligations par lui contractées en France avec un Français; il pourra être traduit devant les tribunaux de France, pour les obligations par lui contractées en pays étranger envers des Français

Artigo 15. “Un Français pourra être traduit devant un tribunal de France, pour des obrigations par lui contractées

envolvessem seus nacionais, excluindo lides que envolvessem estrangeiros, ainda que domiciliados na França, ou lides que tratassem de fatos ou atos integralmente ocorridos em território francês. Entendimento já superado.81

O direito de acesso aos tribunais é reconhecido pelo Direito Internacional como um verdadeiro direito fundamental do homem, o que se reflete em diversas convenções internacionais declaratórias de direitos que lhe conferem proteção específica.82 Sua aceitação reiterada o transforma, assim, em norma geral obrigatória de Direito Internacional.83 O repúdio à denegação de justiça, no sentido apresentado, é um corolário do próprio principio da igualdade – reconhecido, entre outros, na Declaração Universal dos Direito do Homem – de onde decorre a proibição da discriminação entre nacionais e estrangeiros para fins de lhes permitir pleno gozo de direitos fundamentais.

A proibição à denegação da justiça é princípio do direito natural incorporado às regras delimitadoras da jurisdição estatal. A Declaração dos Direitos do Homem, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, estabelece, dentre seus postulados: "Todo homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele."

CARMEN TIBURCIO ressalta que a Corte Europeia de Direitos Humanos já decidiu ser o direito de acesso às cortes nacionais (artigo 6°) um dos mais importantes da Convenção Europeia de Direitos Humanos (casos Lawless v. Ireland e Ireland v. UK), não devendo estar sujeito a limitações. Aponta, ainda, que a Corte Europeia de Direitos Humanos:

81

ANCEL, Bertrand e LEQUETE, Yves. Les grands arrêts de la jurisprudence française de droit international

privé. 4. ed. Paris: Dalloz, 2001.

82

A este respeito:

Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo VIII: “Toda pessoa tem o direito de receber dos Tribunais nacionais competentes recurso efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais, que lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei.”

Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, artigo 14, I: “Todas as pessoas são iguais perante os Tribunais e as Cortes da Justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com as devidas garantias por um Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil (...)”.

Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), artigo 8°, I: “Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.”

83

O artigo 53 da Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados define como norma geral de direito internacional “a

norm accepted and recognized by the international community of States as a whole as a norm from wich no derogation is permitted and wich can be modified only by a subsequent norm of general international law having the same character”.

has interpreted article 6 of the European Convention, wich grants the right to a hearing, among others, in the criminal context, in very broad terms. Firstly, the Court interprets this provision as going far beyond the right to a hearing, that is, as if this provision assured the right to an effective remedy.84

No Brasil, a própria Constituição da República reconhece, expressamente, em seu artigo 5º, caput e inciso XXXV, o direito de acesso aos tribunais tanto dos nacionais quanto dos estrangeiros aqui residentes (direito que tanto a doutrina quanto a jurisprudência interpretam como extensível a todo e qualquer estrangeiro, mesmo aqueles não residentes no país).

Uma das consequências práticas desse princípio é a necessidade, em determinadas situações concretas, de se conceder a jurisdição, a despeito do próprio ordenamento legal. Ou seja, se for observado que o autor de eventual ação ficará sem qualquer opção, deve-se conceder a tutela jurisdicional sob pena de menoscabo do presente princípio. Esse reflexo é conhecido como princípio do forum necessitatis.