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10 PRINCÍPIOS DA COMPETÊNCIA INTERNACIONAL

10.5 PRINCÍPIO DA COMMITAS GENTIUM ou COOPERAÇÃO JUDICIAL

Trata-se de um princípio do Direito Internacional geral que limita a liberdade dos Estados na fixação de suas regras de competência internacional. Engloba atos, práticas e regras de boa vontade, amizade e cortesia no intercâmbio mútuo entre os Estados soberanos. Exigência fundamental para prestar tutela jurisdicional efetiva em um mundo fracionado juridicamente.126

Há uma obrigação entre os povos de assegurar a consecução da justiça, objetivo geral de todas as sociedades. Daí o reconhecimento de sentenças estrangeiras, o respeito de imunidades e a cooperação interjurisdicional dos Estados.

É nesse sentido que JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES afirma que o “exercício da jurisdição internacional do Estado atende ou deve atender às aspirações da comunidade internacional” e que ao exercerem a jurisdição delegada no âmbito interno, editando normas legais ou pronunciando decisões judiciais, “as autoridades do Estado devem observar os valores e princípios em que se assenta a comunidade nacional que lhes delegou essa jurisdição, sob pena de transformar as leis em manifestação da força ditatorial usurpadora da autoridade originária.”127

Ressalte-se que o dever de cooperação entre os Estados encontra-se refletido na própria Carta das Nações Unidas, na definição de seus propósitos:

Article 1 The purposes of the United Nations are: (...)

126

SORIANO e ALFÉREZ desenvolvem que o fundamento constitucional da cooperação jurídica internacional é o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 24 da constituição da Espanha, tanto aos nacionais como aos estrangeiros. Deste direito resulta o dever do Estado de prestar essa tutela e, para que seja efetiva, o Estado, muitas vezes, precisará da cooperação de Estados estrangeiros. “ofrecer una tutela eficaz exige, necesariamente,

partir de los limites que para cada Estado se derivan de la división del mundo em Estados independientes (esto es, del fraccionamiento territorial) y del principio de mutuo reconocimiento de sus ordenamientos y de sus autoridades.” SORIANO, M. Virgos e ALFÉREZ, F. Garciamartin. Derecho Procesal Civil Internacional: litigación internacional. 2° ed. Madrid: CIVITAS, 2007, p. 42

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MAGALHÃES, José Carlos de. Fatores de limitação da jurisdição do Estado. In: Revista dos Tribunais, ano 88, v. 767, set. 1999, p. 52-3.

2. To develop friendly relations among nations based on respect for the principle of equal rights and self-determination of peoples, and to take other appropriate measures to strengthen universal peace.

3. To achieve international co-operation in solving international problems of an economic, social, cultural, or humanitarian character, and in promoting and encouraging respect for human rights and for fundamental freedoms for all without distinction as to race, sex, language, or religion...

Em virtude dessa necessidade de coexistir, surgem limites à vontade do Estado. Ao restringir sua jurisdição e reconhecer a existência de outros ordenamentos jurídicos independentes, o Estado admite que pode ter de recorrer a esses outros ordenamentos, como procedimento necessário para o exercício de sua própria função jurisdicional. Como não pode por si assegurar o cumprimento de notificações, produção de provas ou mesmo efetivação de sentenças fora de suas fronteiras, o Estado, para cumprir seu papel, terá que se socorrer da cooperação das autoridades de outros Estados.

Trata-se de um reflexo natural da própria existência do Direito Internacional.128 Entender que os limites impostos à jurisdição decorrem apenas do binômio vontade/conveniência do Estado significa negar o próprio Direito Internacional, que estaria relegado a segundo plano, à imposição de sua criação e aceitação por cada Estado.

Nesse sentido MORELLI aduz:

Una norma internacional puede imponer al Estado que tenga en su ordenamiento determinadas normas sobre los limites de la jurisdicción, o puede simplemente imponer al Estado o autorizar-lo a que ejercite la jurisdicción em determinados casos. En una y outra hipótesis las normas internas de adaptación al derecho internacional son normas sobre los limites de la jurisdicción, ya que precisamente la promulgación se este tipo de normas constituye, en la primera hipótesis, el contenido de la obligación internacional, y en la segunda, el médio técnico a que recurre el ordenamiento interno para hacer legitimamente posible el cumplimento de la obligación o el ejercicio de derecho que la norma constitucional crea.129

128

Para STRENGER “No direito internacional privado, a reciprocidade, noção difícil de conceituar, é fórmula que

permite conseguir resultado simétrico ou correlativo, na aplicação dasleis de dois ou mais países ou no reconhecimento de direitos subjetivos dos cidadãos desses países. Por meio do princípio da reciprocidade condiciona-se essa aplicação ou reconhecimento ao que se tenha estabelecido a respeito no país estrangeiro de que se trate. Princípio que, à diferença das regras que com concreção poderiam ocupar-se desses problemas, é vago e geral quanto à sua formulação técnica, porém proporciona resultados casuísticos e flexíveis.” STRENGER, Irineu. Direito Processual Internacional. São Paulo: Ltr, 2003. p.31. Em relação à reciprocidade, o presente trabalho adota

o entendimento dos autores SORIANO e ALFÉREZ no sentido de que: “La reciprocidad sólo se justifica en um

Estado de Derecho si se utiliza como estrategia de producción de cooperación internacional (esto es, para inducir a otros Estados a prestarla). En este sentido, sólo la reciprocidad cooperativa cumpre esa función y sólo ella está legitimada constitucionalmente. La reciprocidad no-cooperativa es um medio inapropiado para lograr ese fin, pues conduce a um nível subóptimo de cooperación: no es método adecuado de produccion de cooperación internacional y no legitima la limitación que infringe el derecho a la tutela judicial efectiva.” SORIANO, M. Virgos e

ALFÉREZ, F. Garciamartin. Derecho Procesal Civil Internacional: litigación internacional. 2° ed. Madrid: CIVITAS, 2007, p. 44.

129

MORELLI, Gaetano. Derecho Procesal civil Internacional. Tradução de Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires: E.J.E.A., 1953, p. 146.

É o direito internacional que reconhece aos Estados direitos e obrigações no seio da comunidade internacional. E é justamente o reconhecimento por essa mesma comunidade internacional da soberania de um Estado que permite a ele o direito dela participar, assumindo compromissos, participando de organismos internacionais e contratando com outros estados igualmente soberanos.

SORIANO e ALFÉREZ destacam que apesar da jurisdição ser indubitavelmente um atributo da soberania do Estado, a coexistência de uma pluralidade de Estados impõe limites ao poder de cada um desses Estados, fixados pelo Direito Internacional público e que sobrepassá-los implica uma infração internacional.130

Assim sendo, a autonomia do Direito Internacional, em relação à vontade dos Estados membros da sociedade internacional, justifica o reconhecimento de fatores que estabelecem limites à atividade jurisdicional. A cooperação internacional é uma necessidade ínsita à ideia de soberanias que convivem pacificamente numa comunidade internacional, o que revela uma importante diretriz ao processo civil internacional, em especial a competência internacional.

Sobre a temática da cooperação jurisdicional salienta KLOR:

La justicia, en tanto cometido esencial del Estado, no puede verse trabada por fronteras nacionales que se erijan en obstáculos a procesos que iniciados en un Estado, requieran del despliegue de actividad procesal a su servicio en otros. Para adecuado funcionamiento de la justicia en las relaciones de tráfico externo, es imprescindible la existencia de normas claras reguladoras de la cooperación o auxilio jurisdicional internacional. Tradicionalmente la cooperación internacional se fundamento en razones de conveniencia, en la teoria de la comitas gentium, o en el principio de reciprocidad. Actualmente, en cambio, la base de asistencia jurisdicional radica en la credibilidad comum de las naciones respecto a que, al ser la justicia una funcion esencial del Estado, los limites territoriales de las naciones no pueden alzarse como vallas para su realización131.

A professora CLAUDIA MARQUES elucida sobre a importância da matéria e sua relação com o princípio da segurança jurídica:

O reconhecimento das decisões estrangeiras é uma parte importante do Direito Internacional Privado ou do Processo Civil Internacional, visando justamente garantir o atendimento das finalidades de harmonia internacional de decisões almejadas por essas disciplinas. Visa igualmente dar às partes a segurança jurídica, por meio da circulação

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Para os autores ccoperação “que no se limita al eventual reconocimiento de la decisión extranjera, sino que

implica coadyuvar a una buena resolucion del litígio en el extranjero: mediante la tramitación de las notificaciones que deban tener lugar en España o practicando las pruebas que nos soliciten.” SORIANO, M. Virgos e

ALFÉREZ, F. Garciamartin. Derecho Procesal Civil Internacional: litigación internacional. Madrid: CIVITAS, 2000.

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KLOR, Adriana Dreyzin de. Algunas reflexiones sobre la cooperación jurisdicional internacional en torno a la calidad del derecho de la integración. In LABRANO, Roberto Ruiz Diaz (Org.) Mercosur – Unión Europea:

cooperación jurídica internacional, sentencias y laudos extranjeros, exhortos – medidas cautelares, derecho comunitario, Tribunal de Justicia de las Comunidades Europeas. Asunción: Intercontinental, 2001, p. 18.

dos julgados e atos, o reconhecimento dos direitos adquiridos e situações juridicamente constituídas no exterior132.

Ocorre que, a cooperação interjurisdicional envolve múltiplas questões afetas substancialmente ao exercício da soberania do Estado, pois, ao aceitar o cumprimento de uma sentença proferida em outro Estado, automaticamente, abdica de sua jurisdição para resolução daquela, e com isso, afasta a aplicação de seu ordenamento jurídico ao caso, efetuando tão-somente o reconhecimento e a execução da norma concreta já transformada em sentença pelo Estado requerente. Uma das perspectivas da cooperação jurisdicional133 está na homologação de sentenças estrangeiras, quando um Estado requerido deve realizar a análise de certos requisitos, cuidando-se de uma

jurisdição de controle, jurisdição delibatória134.

É importante entender que o princípio da cooperação internacional não se limita aos conflitos propriamente transnacionais, envolvendo interesses materialmente pertinentes a dois ou mais Estados, mas também às lides com elementos como o domicílio de um dos sujeitos da relação processual, ou o local onde se encontram os meio de prova, situados em território de outro país que não o do juízo competente, o que exige uma intensificação do intercâmbio.135

As dificuldades da cooperação, além do procedimento burocrático e, em regra de alto custo, são bem demonstradas pela atividade delibatória, a que estabelece determinados crivos, como competência do país prolator e ordem pública, pelos quais deverá passar a decisão estrangeira, além, é claro, da abdicação da jurisdição.

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MARQUES, Claudia Lima. Direito Internacional Privado: solucionando conflitos de cultura: os divórcios no Japão e seu reconhecimento no Brasil. Revista de Informação Legislativa, n. 162, abr.-jun. Brasília: Editora do Congresso, 2004, p. 101.

133

“não é qualquer ato que interessa à efetividade da jurisdição transnacional; portanto, a cooperação estaria

adstrita àqueles atos judiciais, administrativos ou legislativos que servirem concretamente à jurisdição. Daí a expressão ‘cooperação jurisdicional’ e não apenas ‘cooperação jurídica’, que seria demasiadamente extensiva”.

BELTRANE, Adriana. Cooperação Jurídica Internacional. Revista de Processo. Rio de Janeiro. n.162, p. 187-196, 2008.

134

“Delibação, que vem do latim (delibatio-onis), é tirar, colher um pouco de alguma coisa; tocar de leve,

saborear, provar, no sentido de experimentar, examinar, verificar; e portanto, o que pretende significar em direito processual é que o tribunal, tomando conhecimento da sentença estrangeira, para mandar executá-la, toca de leve apenas em seus requisitos externos, examinando sua legitimidade, sem entrar no fundo, ou mérito, do julgado.”

CASTRO, Amílcar de. Direito Internacional Privado. 5ª ed. aum. e atual. com notas de rodapé por Osíris Rocha, Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 554-555.

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Para NADIA, SALLES e ALMEIDA, cooperação interjurisdicional ou simplesmente cooperação judicial significa “o intercâmbio internacional para o cumprimento extraterritorial de medidas processuais provenientes do

Judiciário de um outro Estado. Tradicionalmente também se incluiria nesta matéria o problema da competência Internacional. Todavia, a doutrina mais recente abriga sob esta rubrica teórica apenas o atendimento a medidas processuais e à execução extraterritorial da sentença estrangeira.” o que discorda-se. ARAUJO, Nadia de.,

SALLES, Carlos Alberto de, ALMEIDA Ricardo Ramalho. Medidas de Cooperação Interjurisdicional no Mercosul.

Contudo, o incremento do fluxo de mercadorias, pessoas, serviços e capitais entre os países demanda o aprimoramento e intensificação dos mecanismos e técnicas de cooperação. É cada vez mais frequente o condicionamento da efetividade de uma prestação jurisdicional à execução em território estrangeiro. Corolário desse panorama é o desenvolvimento de normas de fixação de jurisdição, apartadas de conceitos de simples exercício de força ou poder e voltadas para a necessidade de desenvolvimento de um processo isonômico que viabilize a tutela mais justa e efetiva dos interesses das partes envolvidas no litígio internacional.

Daí a conveniência e necessidade de uma diretriz de cortesia entre os povos, orientando a atividade jurisdicional de cada país na máxima cooperação. No Brasil, o princípio da cooperação é objeto de disposição constitucional expressa, artigo 4°, IX da CF, de modo a influenciar de forma substancial as normas sobre competência internacional, condicionando-as a uma pacífica convivência, buscando evitar conflitos ou desproporcionalidades.