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10 PRINCÍPIOS DA COMPETÊNCIA INTERNACIONAL

10.2 PRINCÍPIO DO FORUM NECESSITATIS

O principio do forum necessitatis está relacionado com a necessidade de se garantir uma tutela jurisdicional, evitando-se uma denegação internacional de justiça, a permitir o acesso aos tribunais inicialmente incompetentes.

Por exemplo, em se tratando de relações de consumo, será a regra apurar-se que o consumidor, pessoa física, encontra-se muito menos capacitado, senão totalmente incapacitado, de dar início a um processo isonômico contra uma grande companhia transnacional em outro foro que não o do seu próprio domicílio. Se, nessa situação, a lei não alarga o exercício da jurisidição nacional de maneira a permitir ao autor a propositura de ação para a defesa de seus direitos, a referida lei, ainda que apoiada em motivos razoáveis, poderá, sem dúvidas, negar a essa parte a garantia constitucional do acesso à justiça.

O presente princípio é um remédio baseado no direito de acesso à justiça que permite outorgar jurisdição internacional a juízes que, a princípio, carecem de tal potestade para conhecer e decidir em determinado caso concreto.

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TIBURCIO, Carmen. The human rights of aliens under international and comparative law. Haia: Martinus Nijhoff Publishers, 2001, p. 247 e 255.

Outros exemplos são os casos em que se lesiona de maneira grave direitos humanos fundamentais. Os Estados podem decidir de maneira unilateral arrogando jurisdição e permitindo a seus juízes adotarem, por exemplo, medidas urgentes. Os tribunais de um país podem abrir sua jurisdição a fim de que direitos materiais de uma pessoa não fiquem privados de tutela, o que levaria a uma denegação internacional de justiça.

O princípio foi expressamente invocado em interessante questão julgada pela Corte de Cassação dos Países Baixos, em 13 de fevereiro de 1987. Cuidava-se de saber se era competente a justiça holandesa para julgar uma ação de modificação de cláusula de alimentos, fixada no divórcio decretado pelo Tribunal de Amsterdã, quando o marido ainda estava ali domiciliado. Sendo autor e ré de nacionalidade canadense, e já então domiciliados no Canadá, o fator de conexão com a decisão anterior proferida pelo tribunal holandês seria insuficiente para determinar a competência do tribunal acionado. Contudo, como a justiça canadense não admitiria decidir uma modificação de cláusula fixada por sentença estrangeira, para evitar a denegação de justiça, a Corte holandesa, acionada, exerceu sua jurisdição.85

De fato, forum necessitatis não é uma situação inédita, uma vez que já reconhecida pelo direito comparado, existindo como previsão expressa do artigo 3° da Lei Federal suíça de 198786, sobre direito internacional privado, para fixação da competência da justiça daquele país. Da mesma forma, dispõe o Código de Processo Civil português, em seu artigo 65°, número 1, alínea d, após recente reforma em vigor desde janeiro de 199787.

De forma semelhante, o artigo 2° da Convenção Interamericana sobre competência na esfera internacional para a eficácia extraterritorial das sentenças estrangeiras dispõe que:

Artigo 2°. Também se considerará satisfeito o requisito da competência na esfera internacional quando a critério do órgão jurisdicional do Estado Parte onde a sentença deve ter efeitos, o órgão jurisdicional que proferiu a sentença tenha assumido jurisdição para evitar denegação de justiça por não existir órgão jurisdicional competente.

85 Vide Revue Critique de Droit International Privé, n° 3, 1988, t. 77, p. 555. Apud JATAHY, op. cit. p. 26

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Article 3. Where the present law makes no provision for judicial competence in Switzerland, and it proves impossible for the proceedings to be taken abroad or it is unreasonable to demand such proceedings, the judicial or administrative Swiss authorities of the place wih which the case is sufficiently connected, have jurisdiction. Onde a atual legislação não prevê competência judiciária na Suíça, e que seja impossível demandar no estrangeiro, ou que não seja razoável exigir tal processo, a autoridade suíça, administrativa ou judiciária, do caso que seja suficientemente conectado com o caso, terá jurisdição. Grifo nosso.

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MANUEL RAMOS afirma que “traduz-se em a competência internacional dos tribunais portugueses poder ser

desencadeada não só quando a efectivação do direito só é possível através de acção proposta em território português mas ainda quando, assim não sendo, não se possa exigir ao autor a sua propositura no estrangeiro.

RAMOS, Rui Manuel Moura. A Recente Reforma do Direito Processual Civil Internacional em Portugal. In: O

Basicamente podem-se elencar dois requisitos para a aplicação do princípio do forum de necessidade: 1°) O litígio deve estar claramente conectado com o local do foro; 2°) Recorrer a tribunal estrangeiro deve ser impossível ou excessivamente oneroso.88

Diante dos requisitos, os casos susceptíveis de proporcionar a abertura da jurisdição são:

a) Conflito negativo de competências. Os tribunais nacionais e estrangeiros declaram sua incompetência para analisar deteminado caso concreto, ocorrendo o chamado conflito negativo de competência. Nesse caso, não existe tribunal estatal competente em nenhum país. Portanto, deve-se permitir aos particulares litigarem no tribunal que apresentar um mínimo de conexão com a causa, uma efetiva ligação, ainda que mínima. De modo que, sempre que a declaração de incompetência jurisdicional de um Estado puder levar a um conflito negativo de jurisdição, o Estado que apresentar um mínimo de conexão, deve conhecer da causa, sob pena de se produzir uma efetiva denegação internacional de justiça.89

b) Carga processual desproporcional na jurisdição estrangeira. Nessas situações, a jurisdição estrangeira, ainda que competente, apresenta, em função de circunstâncias, tutela jurisdicional excessivamente onerosa ou remota. Por exemplo, em casos de guerra civil, golpes de estado, intolerância religiosa, problemas étnicos etc. A parte deve demonstrar que litigar no estrangeiro pressupõe uma carga desproporcional para si.

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CARAVACA, Alfonso Luis Calvo e GONZÁLEZ, Javier Carrascosa. Competência judicial internacional:

régimen de producción interna en Derecho internacional privado español. Revista Decita n. 04. Fundação Boiteux.

2005 pp. 519-542. Ainda, segundo a lei finlandesa, um tribunal nacional é competente quando a condução do litígio no exterior envolva extrema injustiça e custos para a parte filandesa. FAWCETT, James J. Gerenal Report, In:

Declining Jurisdiction in private international law. Oxford: Clarendon Press, 1955, p. 8.

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Importante não confundir com reenvio do conflito de leis, JATAHY explica: “A necessidade de evitar a denegação de justiça, que faz com que uma justiça originariamente incompetente adquira a jurisdição para decidir a lide, não se confunde com a figura do reenvio do conflito de leis. Nessas circunstâncias, não há base para a aplicação do reenvio ao conflito de jurisdições. No conflito de regras de conexão, o reenvio é possível porque a regra do foro indicou como aplicável o direito estrangeiro, levando o juiz a examinar se deve ater-se apenas às normas do direito material do sistema indicado ou respeitar também suas regras de conexão, que podem devolver à aplicação da lei do foro. Esta dúvida é impossível em matéria de conflito negativo de jurisdições. Não se considera qualquer norma de competência estrangeira. NIBOYET, que chegou a utilizar a expressão renvoi de jurisdictions, mais tarde reconsiderou sua posição. Comentando algumas decisões da jurisprudência francesa e examinando as razões que fundamentaram a aceitação da jurisdição por ausência de outro tribunal apto a proferir o julgamento, entendeu que se tratava, em tais circunstâncias, de se evitar a denegação de justiça e não de reenvio. A atribuição de jurisdição ao Estado para decidir medidas cautelares destinadas a produzir efeitos em seu próprio território emerge do princípio que veda a denegação de justiça. O elemento do periculum in mora, que informa a concessão da cautelar de caráter executório justifica a jurisdição internacional do Estado onde a medida é requerida, já que a não apreciação do pedido por falta de previsão legal específica de competência internacional ficaria traduzida em denegação de justiça.” JATAHY, Vera Maria Barrera. Do conflito de jurisdições: a Competência Internacional da

c) Impossibilidade de execução da decisão estrangeira. Se a decisão só pode ser efetivada materialmente no local do foro, ele deve, ainda que não seja competente, abrir sua jurisdição, sob pena de denegação internacional de tutela efetiva.

SORIANO e ALFÉREZ lembram que o surgimento de um foro de necessidade pode ocorrer tanto em razão de um conflito negativo, por força do qual não exista foro competente para proferir uma tutela substancial da questão litigiosa, quanto em razão de uma negativa de reconhecimento de decisão estrangeira. O último caso ocorre quando, por exemplo, o autor não possa iniciar um processo perante a justiça brasileira, por se tratar de matéria excluída de sua jurisdição, ao mesmo tempo que ele se nega a reconhecer os efeitos de uma decisão proferida no exterior, cuja execução no Brasil constitui a única via possível de sua tutela efetiva90.

BARBOSA MOREIRA, em fundamentação de voto proferido em Apelação Cível no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, ressaltou a necessidade de se terem as autoridades brasileiras como competentes, quanto a uma ação de divórcio, a fim de se evitar denegação de justiça às partes:

Ex abundatia, ainda há consideração de ordem prática a tornar particularmente

aconselhável, na espécie, o reconhecimento da competência da nossa Justiça. É que, a não ser assim, poderão surgir, para o Autor, ora Apelante, dificuldades de vulto na obtenção da prestação jurisdicional.

(..)

Ocioso recordar que a melhor doutrina, brasileira e estrangeira, para impedir a formação de um nó indesejável, que significaria denegação de justiça, preconiza, em emergências desse tipo, que a Justiça do país onde se propôs a ação admita a sua própria competência, desde que razoavelmente fundada (cf. Haroldo Valadão, Direiot Internacional Privado,vol. III, Rio de Janeiro, 1978, p. 132). Razão a mais para que se reforme a sentença reconhecendo-se como competente a Justiça brasileira.91

Ressaltando que, em qualquer caso, na linha dos ensinamentos de SORIANO e ALFÉREZ, caberá sempre ao demandante o ônus de provar a existência das condições que justifiquem a fixação extraordinária da jurisdição, a partir de um foro de necessidade.

O que ocorre é que, em casos concretos, revela-se necessário apurar qual dos princípios deve prevalecer, sopesando-os. É exatamente o que DANIEL SARMENTO apresenta como uma ponderação de interesses, resultando de um balanço dos bens jurídicos em jogo: “De um lado da balança devem ser postos os interesses protegidos com a medida, e, de outro, os bens jurídicos que serão restringidos ou sacrificados por ela”. Assim, verificando o aplicador da norma que há desequilíbrio em relação a um dos lados da balança, deverá buscar, “à luz das circunstâncias

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SORIANO, Miguel Virgós e ALFÉREZ, Francisco Garciamartín. Op. cit. p. 59

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concretas, impor ‘compreensões’ recíprocas sobre os interesses protegidos pelos princípios em disputa, objetivando lograr um ponto ótimo, em que a restrição a cada interesse seja a mínima indispensável à sua convivência um com o outro.”92 Assim então deverá proceder o juiz, avaliando sempre as situações concretas em função das quais a intenção válida do legislador de limitar a jurisdição nacional deva, de fato, ceder ante à aplicação da garantia constitucional de acesso à justiça.

Trata-se de uma tarefa sutil e delicada. A violação do acesso à justiça como razão determinante da prorrogação da jurisdição internacional, em hipótese legalmente prevista, deverá ser grave, revelando verdadeiro e insanável prejuízo do direito de uma das partes em obter a efetiva tutela jurisdicional pretendida, ou ainda, a não observância de condição que seja indispensável para a obtenção da referida tutela, através do desenvolvimento de um processo justo e équo.

A competência da justiça brasileira deve ser estabelecida sempre que o magistrado concluir como indispensável para se evitar situação de inaceitável denegação de justiça ou ainda como condição para o desenvolvimento de processo justo e équo, constituindo verdadeiro dever da autoridade jurisdicional dar cumprimento à garantia constitucional que, nos termos da própria Constituição, tem aplicação imediata, inteligência do art. 5°, § 1° da Constituição da República.

Relembrando os casos de jurisdição voluntária, é preciso que apresente elementos de conexão mínima para a fixação da competência nacional, além da ponderação dos princípios que envolvem a matéria. Desse modo, qualquer situação que represente um afastamento absurdo da competência da justiça brasileira, impedindo o acesso da parte à obtenção da tutela jurisdicional específica, por não haver outro foro internacional competente, ou sujeitando-a a ônus processuais exagerados, poderia ser reparada por força da aplicação direta da garantia-síntese do acesso à justiça, ante, repita-se, à ponderação dos interesses em jogo.

Dessa forma, defende-se que a fixação da competência internacional concorrente da autoridade judiciária brasileira, ainda que somente determinada em razão dos critérios estabelecidos no artigo 88 do CPC, deva comportar ampliação, em situações concretas, ante à necessidade de aplicação dos princípios que regulam a matéria, como o do acesso à justiça, na sua função balizadora de exercício da jurisdição internacional. 93

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SARMENTO. Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000, p. 89.

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Referida situação, contudo, não significa de forma alguma a possibilidade de integração analógica de dispositivo legal interno. Constitui, na verdade, aplicação direta do dispositivo constitucional ao caso concreto, quando a