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Acomodação e metalinguagem das histórias em quadrinhos no Brasil

HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NO BRASIL E NA ESPANHA

3 Para a elaboração desta

2.2.4 Acomodação e metalinguagem das histórias em quadrinhos no Brasil

Nos anos 1950, contudo, uma nova geração de humor adulto, com jovens e mordazes artistas gráficos, começa a emergir do universo underground para a mídia massiva. A Segunda Guerra Mundial também trouxera para as histórias em quadrinhos, e para as artes em geral, a morbidez que deu força ao gênero do terror. Porém, a nova convivência da televisão com mídias já institucionalizadas, como os diferentes tipos de periódicos em suporte de papel, as películas cinematográficas ou as diferentes peças radiofônicas, foi o fato social desencadeador da fase de acomodação e metalinguagem nas narrativas gráficas seqüenciais brasileiras.

As conseqüências diretas da acomodação foram verificáveis na diminuição das tiragens das histórias em quadrinhos, assim como na melhoria de seus atributos gráficos. A metalinguagem foi garantida pelas claras referências nos enredos quadrinhísticos sobre a mídia televisiva e sua repercussão social.

Millor Fernandes, que iniciara em O Cruzeiro suas contribuições na mídia, com menos técnica de desenho e mais criticismo social, faz escola entre os chargistas dos anos 1950. Flávio Colin, um artista gráfico brasileiro já consagrado no terror, quadrinhiza a série radiofônica O Anjo, representando o ingresso das histórias em quadrinhos adultas brasileiras no gênero detetivesco. Carlos Zéfiro inicia a publicação clandestina de seus “catecismos”, histórias e r ó t i c a s q u e exerceram grande fascínio entre os j o v e n s d o s e x o m a s c u l i n o p o r d é c a d a s , e r a m c o l e c i o n a d a s e trocadas em todo eixo

Rio/São Paulo. Charge de Millor Fernandes.

O Abutre e Prometeu, segundo as Fábulas Fabulosas de Millor.

Um grupo de jovens intelectuais paulistas, segundo por Álvaro de Moya, organizou a Primeira Exposição Internacional de Histórias em

Quadrinhos, inaugurada em 18 de julho de 1951, no Centro Cultura e Progresso. Primeira no Brasil e... primeira no mundo. Moya, o

português Jayme Cortez, Miguel Penteado, Reinaldo de Oliveira, Syllas Roberg (o único que não era artista gráfico) e outros. Os textos que serviam de tutorial à exposição, muito embora fossem de autoria coletiva, tinham o toque especial de Roberg, o mais intelectualizado do grupo naquele momento, futuramente um grande ensaísta. As idéias do grupo se clarificaram no texto de apresentação, Nós lemos histórias em

quadrinhos, no qual o grupo já discutia claramente o

protagonismo do leitor, declarando que:

[...] a criança lê, apaixonadamente, histórias em quadrinhos porque já se substituiu, por força de natural evolução, o romantismo, o lirismo enfadonho e ridiculamente fantasiado das histórias de fadas de épocas passadas. Ela lê aquilo que lhe serve de catarse, numa idade em que despreocupação pela leitura é notória. [...] o adulto lê, atenciosamente, história em quadrinhos porque manterá estreita aproximação com a sátira do genial Al Capp, porque estudará as notáveis exteriorizações do expressionista Will Eisner; porque se embevecerá com o 'poeta da linha' E.T. Coelho; porque apreenderá ou aprenderá extraordinárias composições artísticas com Alex Raymond, Milton Caniff, Hal Foster, etc. (MOYA, 1977, p. 17)

O editor italiano radicado no Brasil, Victor Civita, inicia a publicação de O Pato Donald, de Walt Disney, criando um título próprio para as aventuras do personagem, que já eram publicadas anteriormente pela EBAL, em sua recém fundada Editora Abril

Cultural, nos anos 1950. Posteriormente, a referida editora formaria

uma equipe com grandes artistas gráficos brasileiros, instruídos pelo argentino Luis Destruet, que fariam sua produção própria no Brasil.

Da primeira equipe de criação Disney no Brasil participaram Álvaro de Moya, Jayme Cortez, Jorge Kato, Waldyr Igayara, fazendo artes e criando histórias em quadrinhos inéditas, partindo dos roteiros de Cláudio de Souza e Alberto Maduar. Esta produção será contínua, até os anos 1990. No entanto, por uma política interna dos estúdios Disney, a editoração impedia a clarificação da autoria, fazendo artistas gráficos e roteiristas do Brasil e do mundo passar incógnitos por cerca de meio século. Posteriormente, estas informações foram resgatadas por depoentes e especialistas no gênero, como Álvaro de Moya, Roberto Elísio dos Santos e outros.

Capa de Seleções Coloridas: Walt Disney, título publicado pela EBAL. Capa de Pato Donald: 70 anos, álbum comemorativo editado pela Abril, que publica título próprio do personagem no Brasil desde 1950.

As histórias em quadrinhos infantis brasileiras também se fortaleceram nos anos 1950 e 1960. Os quadrinhistas Maurício de Sousa e Ziraldo Alves Pinto criaram personagens legitimamente brasileiros, que vem encantando gerações de crianças e adultos há quase de cinqüenta anos.

Maurício de Sousa publicou suas primeiras histórias em quadrinhos infantis, com os personagens Bidu e Franjinha, em suplementos jornalísticos de São Paulo, em 1954. Cebolinha e

Cascão nasceriam em 1960, como

amigos de Franjinha, assim como

Titi e Jeremias. A personagem Mônica foi criada em 1963, assim

como Magali, tendo por musas inspiradoras as filhas de Maurício de Sousa. Posteriormente, estes e outros personagens fariam parte da Turma da Mônica, titulo publicado em diferentes periódicos, tanto em suplementos jornalísticos, ou em revista própria d e s d e 1 9 7 0 a t é 2 0 0 7 , ininterruptamente, desde então. A empatia da Turma da Mônica permitiu ao seu autor comandar um dos maiores estúdios de criação de histórias em quadrinhos da América Latina, com todos os derivativos possíveis desta mídia: linhas de produtos, desenhos animados de curta e longa metragem,

veiculação em marcas.

Ziraldo, artista gráfico já conhecido por sua obra de chargista na imprensa, lançou uma série de personagens infanto-juvenis, A Turma do Pererê, Super-Mãe e O

Mineirinho, que publicou ora em títulos próprios, ora em

diferentes periódicos humorísticos, infantis, noticiosos, de atualidades. Os personagens quase “cinquentões” prosseguem em publicação até 2007, assim como passam por adaptações para o

c i n e m a , d e s e n h o a n i m a d o , s é r i e s televisivas, esquetes humorísticos.

Primeira tira da personagem Mônica, publicada em 1963. Uma das mais famosas charges de Ziraldo.

Página de O Menino Maluquinho: Gingobéu, de

Ziraldo. Vinheta com a Turma do Pererê, de Ziraldo.

Charge de Henfil.

Tira Xabú: o provocador, de Henfil.

Charge de Henfil.

Antes do final da década de 1950, inicia-se a publicação da revista Senhor, congregando definitivamente a nova geração de humoristas, amadurecida após a Segunda

Guerra Mundial. De um humor mais mordaz e politizado, despontavam na narrativa gráfica brasileira Jaguar, C a r l o s S c l i a r, G l a u c o Rodrigues, Michel Burton. Outro dos grandes autores dos anos 1960, Henfil, inicia suas publicações na imprensa estudantil. Logo, a revista mineira Alterosa

publica pela primeira vez Os fradinhos, Baixim e Cumprido, de Henfil, que mais tarde

“se transferiram” para outro jornal “menos sério”. Um grupo de humoristas p o l i t i z a d o s l a n ç a o p e r i ó d i c o m a i s enxovalhado pelo poder em toda história do Brasil,

O Pasquim. Jaguar, Millôr

Fernandes, os irmãos Ziraldo e Zélio, Nani,

Fortuna, Paulo Francis, Claudius e Henfil, entre outros ilustres, passaram pelas páginas do famoso jornal. Além da veiculação mais representativa

d e h i s t ó r i a s e m quadrinhos adultas e c h a r g e s p o l í t i c a s históricas, a editoria de O Pasquim renovou a linguagem jornalística brasileira, com suas entrevistas ousadas e transcritas na íntegra.

O controle da natalidade, abordado em charge de Jaguar.

Rocky Lane, personagem criado por Primaggio Mantovi, com o qual iniciou sua carreira como quadrinhista.

A segunda geração da produção das histórias em quadrinhos Disney no Brasil, nos anos 1960, ainda sob as asas de Victor Civita, contou com o artista gráfico gaúcho Renato Vinícius Canini, considerado excessivamente vanguardista pelos estúdios norte-americanos; Carlos Edgar Herrero, o mais influenciado por Carl Barks; o italiano Primaggio Mantovi, que criou independentemente muitos personagens infantis também publicados pela Abril Cultural; o artista gráfico Moacir Soares, especialista em funny animals, que chegou a ser diretor artístico do Estúdio Disney no Brasil; Rubens Cordeiro, mais dedicado aos cenários realistas e personagens humanos; o grande roteirista Ivan Saidenberg, que criou toda a natureza de roteiros para a equipe Disney do Brasil.

Em 1963, o pesquisador Herman Lima publicou, após uma pesquisa autônoma de décadas, a obra História da caricatura no

Brasil, que se constitui no quarteto de volumes mais relevantes e

consultados por todos os pesquisadores brasileiros da área, até a atualidade. Mais do que reconhecimento, esta obra e sua publicação representaram a visibilidade das histórias em quadrinhos como bem cultural digno de documentação, assim como sua linguagem e mídia reconhecidas como objetos de pesquisa na área de comunicação social.

Um dos políticos que mais “sustentou” o humor gráfico brasileiro, como fonte de inúmeras situações humorísticas, foi Jânio da Silva Quadros. No entanto, um de seus deslizes derivou no golpe militar, sofrido pelo povo brasileiro em 1964. Sob a ditadura militar, no período de 1964 a 1985, os chargistas e quadrinhistas voltaram a uma situação de risco social muito forte, devido às sérias restrições à liberdade de imprensa e expressão. Àqueles que não se submeteram às novas regras do jogo social ou não migraram para a produção de obras infanto-juvenis, restou o exílio ou a garantia de longas estadias no presídio, espancamentos e toda a sorte de perseguições, como as sofridas pela equipe da redação de O Pasquim. Rotineiramente, seus integrantes eram presos e sua redação empastelada, durante todo esse período.

Um dos mais importantes e ecléticos roteiristas brasileiros, Gedeone Malagola, criou o super-herói brasileiro Raio Negro, em 1965. Sua origem e seu “design” são perturbadoramente semelhantes a um certo X-Man, mas o paradigma editorial brasileiro ainda primava pela apropriação de conteúdos das mídias estrangeiras.

Página de Lobisomem contra o estranho vampiro, com roteiro de Gedeone Malagola e desenhos de Nico Rosso e Kazuhiko.

O fato também é explicável pela falta de formação de Malagola em técnicas de desenho, o que o obrigava a utilizar artes de outros autores, normalmente estrangeiros, para a consecução de suas histórias em quadrinhos. Como o personagem Raio Negro era o alter-

ego de um militar da aeronáutica, ele não foi molestado pela censura e passou ao largo de inúmeros problemas, pelos quais passavam seus pares. Por outro lado, a sua produção como roteirista de terror, ao lado de Rubens Francisco Luchetti, Nico Rosso, Sergio Lima e outros, eventualmente passava por alguns contratempos, mesmo mesclada em meio as produções norte- americanas reeditadas no país, nos títulos

Kripta, Frankestein, A Múmia, Drácula, Estórias Negras e Clássicos do Terror. O

personagem Lobisomem, criado em parceira com Nico Rosso e Sergio Lima, foi relançada em um álbum de luxo comemorativo, em 2002.

Victor Civita, acreditando na perenidade do universo Disney, promoveria cursos de formação em sua editora, nos anos 1970, que fomentariam uma nova geração de artistas gráficos e roteiristas, ativos até a atualidade. Apesar de todas as campanhas difamatórias contra a leitura infantil de histórias em quadrinhos no Brasil, beirando até as atitudes nazistas de censura e queima de exemplares, as histórias em quadrinhos infantis e seus autores seguiram com excelentes resultados no mercado editorial brasileiro, numa época jamais igualada pela Abril Cultural ou outras editoras.

A produção de histórias em quadrinhos para adultos nos anos 1970 seguiu sofrendo com a opressão da ditadura militar. O temor à exposição pública fez com que muitos autores brasileiros se ocultassem na produção underground dos fanzines, ou seguissem se dedicando exclusivamente ao público infantil, o que abriu uma brecha de mercado para os autores estrangeiros. A revista Grilo trouxe para o Brasil o quadrinho europeu e norte-americano adulto, reunindo seus diferentes gêneros, publicando autores como Guido Crepax, Gilbert Shelton, Robert Crumb, Wolinski, gerando uma nova linha de influência na produção brasileira, o “circuito underground”.

A situação do terrorismo nos EUA, em charge de Chico Caruso.

Em 1970 é lançada em São Paulo a revista Balão, predominantemente formada pelos alunos da Faculdade de

Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo -- FAU- USP, participantes ou egressos dos movimentos culturais

estudantis. Nela ingressou uma nova geração de quadrinhistas e chargistas de renome, muitos dos quais acabaram por trocar suas carreiras universitárias pelas narrativas gráficas: Luiz Gê, Gus/Guido, os irmãos gêmeos Chico e Paulo Caruso, Laerte Coutinho, Xalberto, entre outros.

O artista gráfico Jô Oliveira publica seu trabalho na revista italiana Linus, abrindo às avessas as portas para o mercado editorial brasileiro, contribuindo posteriormente com O

Pasquim. Nesta mesma década e nos anos 1980, a editoração de

Otacílio D'Assunção, o Ota, resgatou a publicação dos títulos de terror escritos nos anos 1950, como Spectro e Sobrenatural, além de incluir colaboradores brasileiros na revista MAD, em sua

edição brasileira.

Inicia-se O Salão de Humor de Piracicaba em 1974, que veio a se tornar o evento da maior representatividade no país, ainda ocorrendo ininterruptamente, cujo primeiro júri foi formado predominantemente pela equipe de O Pasquim, apadrinhado especialmente por Zélio.

Os anos 1980, nos quais foi se dando lentamente a abertura política do país, contou finalmente com iniciativas na área da leitura pública. Em 1982, um grupo de desenhistas e amantes das histórias em quadrinhos se organizou e inaugurou, na cidade de Curitiba, capital do estado do Paraná, a Gibiteca de Curitiba, primeiro acervo público do gênero no país, com estrutura para consultas, empréstimos, exposições e eventos.

Pablo Picasso, em charge inédita de Paulo Caruso.

Tira de Gatos, de Laerte.

No exato momento da transição democrática do Brasil, em 1984, Toninho Mendes e Luiz Gê editam a revista Circo, em São Paulo, que p u b l i c o u h i s t ó r i a s e m quadrinhos do c h a m a d o “ c i r c u i t o u n d e r g r o u n d ” b r a s i l e i r o , d e autores como Laerte, Glauco, Alcy, Paulo e Chico Caruso, Nani, Luscar, Lourenço Mutarelli, conjugadas com os autores internacionais Abuli, Bernet, Margerin, Moebius, Robert Crumb, entre outros.

Dois anos depois, o lançamento da revista Animal, sob a supervisão e d i t o r i a l d e Priscila Farias, R o g é r i o d e Campos e Newton Foot, trouxe novos parâmetros para o quadrinho autoral brasileiro, lançando autores como Adão Iturrasgarai, André Toral, Osvaldo Pavanelli e divulgando também uma nova geração de autores europeus e argentinos, como Liberatore, Daniel Torres, Max, Jaime Hernandez, Alan Martin, Jaime Hewlett, Muñoz, Sampaio, entre outros. Nessa época, Watson Portela é premiado no Salão Internacional do

Canadá, com sua história em quadrinhos autoral Paralelas.

Verificando o amadurecimento da produção brasileira, o quadrinhista Jal e o também editor Gualberto Costa criaram o Prêmio HQ/MIX, na cidade de São Paulo, em 1988, contemplando mais de uma dezena de categorias relacionadas à criação, assim como à tradução e edição de histórias em quadrinhos no Brasil. Com o aprimoramento dos critérios de avaliação, também passaram a receber premiações as reportagens noticiosas e os trabalhos acadêmicos de grau, como trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses sobre o tema. Nos dezenove anos seguintes, a importância do prêmio HQ/MIX só tem acrescentado prestígio à produção de histórias em quadrinhos no Brasil.

Tira de Gatos, de Laerte.

Tira Vicente Tarente, de Glauco.

No final de década de 1980, começou a ser introduzido no Brasil o formato de álbum de histórias em quadrinhos. O quadrinhista Júlio Shimamoto e o roteirista Ulísses Tavares lançaram o álbum de luxo

Subs em 1989, uma das primeiras publicações brasileiras de autor em

formato europeu, com valor referencial para a editoração brasileira. Este e outros lançamentos seguintes demonstraram que, além do amadurecimento da mídia e da linguagem das histórias em quadrinhos no Brasil, agora estavam disponíveis condições tecnológicas de produção, distribuição e consumo. Estas foram as condições precursoras da digitalização das histórias em quadrinhos brasileiras, iniciada na década seguinte.

2.2.5 Digitalização das histórias em quadrinhos no