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Leitura, letramento e História em Quadrinhos Nesta confluência de funções sociais da leitura é que

3.1 SIGNIFICAÇÕES DO ATO DE LER

Evoluindo da situação original da concepção da escrita, na Antiguidade e Idade Média, como meio de detenção de informação e trânsito de poderes constituídos socialmente, a leitura da Idade Moderna constitui-se em uma das primeiras estruturas da chamada “indústria do lazer”. Ou seja, as barreiras da popularização da leitura não foram rompidas socialmente por nenhum idealismo, mas pela simples constatação da existência de um mercado consumidor para os diferentes produtos e serviços da recém nascida imprensa massiva.

Com uma defasagem relativa à distância dos proeminentes escritores e da indústria editorial legalmente constituída, o Brasil teve uma dificultosa iniciação na formação da leitura de lazer. O consumo de periódicos e romances, assim como sua concepção, se deu de forma muito diversa ao caso europeu. O pensamento sobre os usos e costumes da leitura, a natureza das obras viáveis para editoração e outros elementos que constituem a formação do leitor no Brasil, foram e ainda são prismados pelas relações cotidianas anteriormente vivenciadas no Velho Mundo. Marisa Lajolo e Regina Zilberman, ao estudar a formação da leitura no Brasil, verificaram que

Se, na Europa, livros publicados já no século XVII (ou até antes) textualizam o leitor, sendo Don Quixote (1605-1615), de Miguel de Cervantes, o exemplo mais notável, no Brasil, é só na ficção romântica que os esforços nessa direção mostram-se visíveis. [...] Só por volta de 1840 o Brasil do Rio de Janeiro, sede da monarquia, passa a exibir alguns dos traços necessários para a formação e o fortalecimento de uma sociedade leitora: estavam presentes os mecanismos mínimos para a produção e circulação da literatura, como tipografias, livrarias e bibliotecas; a escolarização era precária, mas manifestava-se o movimento visando à melhoria do sistema; o capitalismo ensaiava seus primeiros passos graças à expansão da cafeicultura e dos interesses econômicos britânicos, que queriam um mercado cativo, mas em constante progresso. (LAJOLO ; ZILBERMAN, 1996, p.18)

A significação primordial do ato de ler, constituída junto aos grupos sociais que detinham estrategicamente este conhecimento como técnica, passou a constituir-se em forma de participação social durante as repercussões sociais e políticas que decorreram das mudanças no modo de produção no Ocidente, por meio dos mesmos mecanismos sociais que determinaram o início da Revolução Industrial.

Assim, a leitura constituída como mera decifração evoluiu para a incorporação interpretativa das relações entre texto e imagem, ou entre texto fictício e realidade, entre símbolos e publicidade, ou seja, uma fruição estética e uma aprendizagem para além do utilitarismo.

Paulatinamente, as práticas ocidentais de leitura vincularam-se a uma esfera de vivências prazerosas, nas quais o escritor também teve a licença de escrever e ilustrar obras que moviam significados afetivos e pessoais para seus leitores. O surgimento dos diferentes gêneros literários, das diferentes linguagens das mídias e a diversificação dos suportes se sustentou nas práticas de leitura da população como um todo, sendo verificável a semelhança internacional e histórica na apropriação das leituras por seus leitores.

Sob esta visão evolutiva da significação do ato de ler, autores como Roger Chartier (2003) associam em toda a sua obra a formação do leitor ao conceito de apropriação, que seria uma ressignificação pessoal dos objetos culturais socialmente dados. Ou seja, a produção e distribuição dos bens culturais são massivas, mas a ressignificação é individualizada.

Esse processo de apropriação implica que a origem, forma de produção, suporte, gênero ou caráter da publicação são menos importantes que a própria formação pessoal e gostos do leitor, que são constituídos historicamente, em âmbito pessoal, comunitário, local, acrescidos por um constituinte social global. Dessa forma, a apropriação e os usos da leitura, cuja proficiência plena configura o letramento, são construídos pelas relações socialmente constituídas entre o “mundo do texto” e o “mundo do leitor”. Segundo Richard Romancini,

É interessante notar que, da perspectiva do historiador – é preciso lembrar que a categoria de “apropriação” surge neste âmbito –, projetam- se variadas estratégias metodológicas para aumentar a inteligibilidade dos modos como ocorrem os cruzamentos entre “mundo do leitor” e “mundo do texto”. A reconstituição dos “protocolos da leitura” de cada texto, o estudo dos documentos ou depoimentos sobre as práticas de escrita e leitura, a análise das representações iconográficas desta atividade são algumas das estratégias utilizadas. É no âmbito historiográfico, pelas próprias características dos objetos das investigações – o conhecimento de práticas culturais do passado –, que elas são mais mobilizadas. (ROMANCINI, 2002, p. 29)

Dessa forma, a orientação da apropriação da leitura e da formação do leitor também se articula em relação de posse ou consumo dos bens culturais vinculados à leitura. A mesma lógica de consumo e apropriação que norteou a visão moderna e contemporânea da leitura, contudo, é a que dá a tônica de outras vivências midiáticas do século XXI, ao oferecer outras formas de aproximação e fruição estética, apresentadas ao grande público como mais eficientes e intensas.

Ocorre que, ao satisfazer de forma mais instantânea suas necessidades de fruição, a apropriação destes bens culturais se dá de forma mais superficial, tirando da audiência a oportunidade da verdadeira leitura, na qual a interpretação pessoal, a memorização e a ressignificação fazem toda a diferença. Ou seja, a leitura “bibliográfica” depende de aprendizagem, interpretação, memorização, problematização, que são processos mentais superiores e complexos, enquanto a apropriação de outros bens culturais constituídos nas mídias e linguagens atuais como, por exemplo, uma comédia de costumes feita sob a linguagem televisiva, necessita apenas de referências cotidianas de convívio social urbano.

Estes fatores, aliados à má qualidade da educação e à precariedade das instalações presenciais dos ambientes educativos e de lazer culturais, apontam para uma situação internacionalmente documentada, de perda da significação do ato de ler, para além do utilitarismo de um aprendizado forçado. As campanhas de incentivo à leitura, por exemplo, frequentemente constituem discursos inócuos, nos quais

Muitas vezes se diz “É que ler é um prazer”, “O prazer de ler…”, “Desfrute da leitura!”, mas quando alguém declara que é leitor a alguém que não é leitor, para ele isto é inacreditável. Porém, muitas vezes as campanhas de promoção da leitura incorporam este discurso quando identificam que: “Ler é bom”, “É preciso ler”, “Ler é viajar”, “Ler é desfrutar”, “Ler é um prazer”, porque se fosse tão evidentemente um prazer, então não seria necessário ficar o tempo todo dizendo, demonstrando e explicando que é um

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prazer. (GÓMEZ, 2006, Anexo 1, p. 50)