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OU QUEM PAGA AS CONTAS DO MILAGRE

2.2 A adaga do (sub)desenvolvimento

A política salarial do governo Costa e Silva preservou o caráter de arrocho, impresso já na gestão de Castello Branco. O Decreto 62.461, de 25 de março de 1968, alterou a tabela de salário-mínimo aprovada pelo Decreto n. 60.231, de 16 de fevereiro de 1967. O mote dessa alteração fora “o propósito do Governo em corrigir o desgaste produzido pela inflação no salário real dos trabalhadores e elevar progressivamente o padrão dos assalariados à medida que o País se desenvolve”. A tabela vigorou por três anos, estabelecendo, para os menores de 16 a 18 anos, um salário-mínimo entre 50% e 75% (Mapa 1).

A nova tabela salarial dividiu o país em 23 regiões. Os estados de Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro e Santa Catarina foram divididos em duas sub-regiões, a primeira compondo os municípios mais dinâmicos desses estados e a segunda os demais municípios. Os maiores salários mínimos nominais foram concedidos aos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Guanabara (NCr$ 129,60), ao passo que Minas Gerais e o Distrito Federal ficaram no segundo grupo (NCr$ 124,80).

Os dados relativos à primeira sub-região do estado de São Paulo, que engloba o ABC, locus preferencial da análise que desenvolveremos no capítulo 4, demonstram que, além de não serem contemplados com o reajuste estadual, ficando seu salário nominal em NCr$ 117,60, os trabalhadores dessa sub-região têm altos dispêndios para a reprodução de sua força de trabalho: a alimentação representa 43%; a habitação, 33%; o vestuário, 14%; a higiene, 6% e o transporte, 4% de seus gastos.

alcançar Cr$ 187,20 em 1970. Essa queda constante foi especialmente pronunciada de 1964 para 1965, caindo 20% apenas nesse intervalo.

Tabela 9 - Salário-mínimo real – Brasil (1959-1970)

Mês e ano Salário-mínimo nominal – Cr$ Deflator ICV 1965/1967: 100 Salário-mínimo real – Cr$ (preços de maio/1969) Janeiro de 1959 5,90 4,04 331,50 Outubro de 1960 9,44 7,08 302,65 Outubro de 1961 13,216 10,1 297,02 Janeiro de 1963 21,00 16,3 292,55 Fevereiro de 1964 42,00 34,1 179,55 Março de 1965 66,00 64,9 230,80 Março de 1966 84,00 90,1 211,60 Março de 1967 105,00 122 195,36 Março de 1968 129,60 151 194,83 Maio de 1969 156,00 187 189,37 Maio de 1970 187,20 227 187,20

Fonte: Adaptado de Bresser-Pereira (1973, p.129). Org.: S. R. BRAGA (2007).

Já a Tabela 10 revela que, à revelia da miserabilização dos assalariados de menor renda, que tiveram uma queda remuneratória de quase 50%, o salário médio teve tendência ascendente no estado de São Paulo no período.

Tabela 10 - Salário médio no estado de São Paulo (1965-1970)

Mês e ano Salário-médio

nominal – Cr$

Deflator Salário-médio real

Cr$ (preços de fevereiro de 1969) Março de 1965 119,70 64,9 405,66 Março de 1967 219,55 122 466,00 Março de 1968 267,82 147 400,66 Maio de 1969 400,48 187 470,96 Fevereiro de 1970 534,05 220 534,05 Fonte: Bresser-Pereira (1973, p.130). Org.: S. R. BRAGA (2007).

Essa ambivalência nos padrões salariais confirma a existência de um processo de concentração de renda da classe média para cima, pois se o salário mínimo cai e, mesmo assim, o salário médio cresce, é porque está ocorrendo uma redistribuição de renda em favor dos que recebem os maiores salários.

Füchtner (1980) informa que, em 1967, enquanto o salário mínimo no Rio de Janeiro era de NCr$ 105,00 a média salarial, no setor bancário, era de NCr$ 311,00; no de comunicações, NCr$ 272,00; no de transporte, NCr$ 269,00; nos de saúde, comércio e cultura, NCr$ 175,00 e no industrial, NCr$ 172,00.

A tendência à concentração da renda da economia brasileira, a partir de meados dos anos 1950, pela crescente capital-intensividade dos investimentos realizados, manteve a economia em um estado de subconsumo, já que todo investimento resulta, a curto ou a longo prazo, em um aumento de oferta de bens de consumo, que necessitam encontrar mercado.

Celso Furtado (1968) constatou esse fenômeno (Tabela 11) e propôs um papel mais ativo do Estado na distribuição de renda. No momento dessa análise, 50% da população viviam ao nível da subsistência, com uma renda per capita de US$ 130, tendo uma participação na renda equivalente ao 1% mais rico da população.

Tabela 11 - Perfil da demanda global no Brasil Grupos % da população População 1000 Renda per capita (US$) Renda total (US$ 1.000) % da renda 1º 50 45.000 130 5.850 18,6 2º 40 36.000 350 12.600 40,1 3º 9 8.100 880 7.128 22,7 4º 1 900 6.500 5.850 18,6 100 90.000 350 31.428 100,0

Fonte: Adaptado de Furtado (1968, p.8). Org.: S. R. BRAGA (2007).

Recusando a política “cepalina” de defesa da constituição de um mercado interno de ampla base, o regime autoritário ampliou o “vampirismo” social. José Carlos Duarte (1971) afirma que a metade da população remunerada, situada no extremo inferior da distribuição, viu cair sua participação na renda total de 17,7% para 13,7%, em que pese um aumento de 79% no PIB. A concentração de renda foi especialmente forte entre os 10% mais ricos da população, que passaram de 38,87% da renda para 45,35% da renda.

Ruy Mauro Marini (1986) afirma que, entre 1960 e 1970, os 5% mais ricos da população haviam aumentado sua participação na renda global de 27,3 a 36,3% e os 80% mais pobres, reduzido a sua de 45,5 a 36,8% enquanto os 15% médios se mantiveram estáveis em 27%.

O planejador de Geisel, Velloso (1977), apoiando-se em estudo da Virgílio Gibbon sobre os dados de IR de pessoas físicas, no período 1970-1975, afirma a existência de intensa mobilidade vertical nas faixas médias de renda urbanas: cerca de 50% dos indivíduos que, em 1970, estavam na classe de renda inferior (Cr$ 10.000,00 - Cr$ 14.000,00 anuais), haviam passado para classes de renda superiores, em 1975.

Tabela 12 - Distribuição da renda pessoal 1960/1970

Camada da população Participação percentual da renda total

1960 1970 40% mais pobres 11,20 9,50 10% seguintes 6,49 4,69 10% seguintes 7,49 6,25 10% seguintes 9,03 7,20 10% seguintes 11,31 9,63 10% seguintes 15,61 14,83 10% mais ricos 38,87 48,35 Total 100,00 100,00 30% mais ricos 65,79 72,81 5% mais ricos 27,35 36,25 1% mais rico 11,72 17,77 Fonte: Duarte (1971, p.40).

Duarte (1971) calculou a variação do salário real entre 1960 e 1970, por grupos de renda (Tabela 13). Os dados levantados denotam que, enquanto os salários dos 50% mais pobres permaneciam estagnados, os demais estratos, especialmente a partir dos 20% mais ricos, cresceram, demonstrando que, ao contrário do antigo padrão de concentração de renda apenas entre capitalistas, o novo modelo expandiu os “benefícios do desenvolvimento” à classe média.

Tabela 13 - Salários reais por estratos populacionais– Brasil (1960 e 1970) Porcentagem da

população

Renda média real a preços de 1949 r2/r1

1960 (r1) 1970 (r2) 50%mais pobres 3,62 3,64 1,01 10% seguintes 7,67 8,30 1,08 10% seguintes 9,25 9,56 1,03 10% seguintes 11,58 12,76 1,10 10% seguintes 15,99 19,65 1,23 10% mais ricos 39,90 64,14 1,61 5% mais ricos 56,02 96,16 1,72 Fonte: Duarte (1971, p.42). Org.: S. R. BRAGA (2007).

Este processo de concentração de renda garantiu a manutenção do mercado em níveis elevados para as indústrias dinâmicas, tecnologicamente de ponta, como a automobilística. Os estímulos às exportações de manufaturados permitiram compatibilizar concentração de renda e desenvolvimento. Estabeleceu-se um “círculo virtuoso” de desenvolvimento, em que o setor moderno concentrou a renda na classe média e alta e esta concentração, por sua vez, estimulou o crescimento do setor moderno. À medida que as indústrias se tornavam cada vez mais automatizadas e capital-intensivas, a tendência natural do mercado foi o favorecimento dos grupos intermediários, em prejuízo das classes baixas, já que esse tipo de indústria demanda pessoal de nível médio em muito maior proporção, do que a indústria trabalho- intensivas (BRESSER-PEREIRA, 1973).

Foram excluídos o setor produtivo tradicional e a classe baixa, marginalizados do processo de desenvolvimento. Estudos mostram que, em função do desempenho da economia, na década de 1970, o emprego urbano cresceu a uma taxa mais elevada (6,42% ao ano) que a população urbana (4,83% anuais). Na criação de empregos nessa década, o setor secundário superou o terciário.

A concentração de renda na classe alta e na classe média favorece, assim, um desenvolvimento ainda maior das grandes empresas capitalistas nacionais e internacionais e das empresas públicas. Todas essas grandes empresas, por sua vez,

na medida em que são altamente capital-intensivas e tecnologicamente sofisticadas, aumentam sua procura de pessoal especializado e de pessoal administrativo, ao invés de aumentarem sua procura de pessoal não especializado. Aumenta, assim, o emprego para a classe média, enquanto, acentua-se a marginalização da classe baixa. (BRESSER-PEREIRA, 1973, p.17).

Para estimular a grande indústria, Delfim Netto expandiu o sistema de crédito ao consumidor e garantiu à classe média o acesso aos bens de consumo duráveis – de automóveis a aparelhos eletrodomésticos. Este setor, priorizado pelas políticas econômicas, canalizou uma parcela significativa dos investimentos estrangeiros, que, em termos globais, passaram de cerca de US$ 11,4 milhões para mais de US$ 4,5 bilhões entre 1968 e 1973.

Eis o milagre!