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OU QUEM PAGA AS CONTAS DO MILAGRE

2.4 A fome nossa de cada dia

O salário é o preço pago pelo empregador pelo aluguel da força de trabalho. Essa parte do capital variável deveria permitir aos trabalhadores sua reprodução social, garantindo-lhes

alimentação, saúde, educação, habitação, transporte, vestuário e lazer e boas condições de trabalho. Mas, com a “verdade salarial”, essa concepção se mostra, cada vez mais, fraudenta.

Um operário que tivesse trabalhado no mesmo emprego de 1964 a 1970, recebendo apenas os aumentos dados pelo governo, teria perdido 33% de seu salário. De 1972 a 1974, segundo o DIEESE, os metalúrgicos conheceram uma perda de poder de compra de 10,2 % (MARQUES, 1980). O comércio interno ressentiu-se, de imediato, com a queda do poder aquisitivo dos trabalhadores. Nos três primeiros meses de 1966, as vendas a varejo decaíram na Guanabara em 40%, em Belo Horizonte 64% e em São Paulo 43%. A elevação do custo de vida chegou a um nível jamais registrado, enquanto o aumento do salário mínimo não ultrapassava os 100%, a taxa de inflação era de 220%.

Analisando-se o tempo de trabalho necessário para a compra de alimento mínimo, Vieira (1985) constata que, em 1969, eram necessárias 110 horas e 23 minutos, para comprar-se essa alimentação, já em 1973 eram necessárias 147 horas e 4 minutos para adquirir-se a mesma alimentação. Em nome do crescimento do bolo, a maioria da população trabalhava mais para comer. O resultado seria um exército de desnutridos, com mínimas possibilidades de uma maior participação nos vários setores da vida nacional.

Em 1969, informa Zuleide Melo (1978), a participação do trabalho na formação da renda industrial era apenas 35%, contra 65% de participação do capital. Isto significa que, de cada Cr$ 100,00 gerados pelo parque industrial, Cr$ 65,00 remuneravam o capital e Cr$ 35,00 o trabalho. Em 1959, o trabalho retinha 43% da renda industrial, enquanto o capital era remunerado com 57%. Essa partilha teve crescente elevação a favor do capital no período que se seguiu. Lula da Silva (1981, p.109) comenta: “O aumento do salário seria inflacionário se ele se sobrepusesse à produtividade. Se o trabalhador produzisse 10 e recebesse 11, seria inflacionário. Mas, hoje, ele produz 10 e recebe 3. Como é que é inflacionário esse salário?”.

Se, como nos informa Yves Lacoste (1971), a insuficiência alimentar é um dos índices de subdesenvolvimento, interessa observar como essa coincide com o crescimento do PNB no Brasil. O Decreto-lei 399, de 30 de abril de 1938, que regulamenta as comissões de salário mínimo46, estabelece que uma pessoa adulta normal deve ingerir: ¼ l de leite, 50 g de queijo, 200 g de carne, 150 g de feijão, um ovo, 100 g de arroz, 500 g de batatas, legumes e verduras, 300 g de frutas ou doces, 200 g de pão, 100 g de açúcar, 12 g de sal, 50 g de banha, 20 g de

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café ou chá, 25 g de manteiga. A Tabela 19 apresenta um quadro dos valores mínimos diários de nutrientes para adultos em atividade.

Tabela 19 - Necessidades mínimas diárias de nutrientes para adultos ativos

Nutrientes Unidade Necessidades

Calorias cal 3.040,0 Proteínas g 65,0 Cálcio mg 800,0 Ferro mg 12,0 Vitamina A mcg 1.500,0 Tiamina mg 1,5 Riboflavina (Vitamina B2) mg 1,6 Niacina (Vitamina P. P.) mg 15,2

Ácido Ascórbico (Vitamina C) mg 75,0

Fonte: Adaptado de Melo (1978, p.129). Org.: S. R. BRAGA (2007).

Melo (1978) chama a atenção para o subconsumo do leite no Brasil: cada brasileiro ingere por ano apenas 80 l de leite, in natura e nas diversas formas de derivados. Quanto aos queijos, nosso consumo per capita é de um 1 kg por ano, isto é, sete vezes menor que o dos argentinos, 11 vezes menor que o dos norte-americanos e 11 vezes e meia menor que o da França. Na Europa, de modo geral, a população ingere uma média de 3.400 cal e 88 g de proteínas totais, diariamente, enquanto no Brasil nossa cota fica em torno de 15 g. de proteínas por habitante, colocando-nos ao lado de indianos e paquistaneses. A Tabela 20 não foi construída de acordo com os percentuais ótimos de alimentação, mas de acordo com o poder aquisitivo do salário mínimo.

Essa autora (1978) realiza pesquisa de campo na cidade do Rio de Janeiro, que detém o salário-mínimo mais alto do País: Cr$ 1.108,00 em 1978, do qual descontados o INPS e Imposto Sindical, o trabalhador recebe em tomo de Cr$ 1.000,00. A autora constatou que um indivíduo gasta cerca de Cr$ 540,00 mensais em alimentos. Se as famílias eram constituídas de uma média de quatro pessoas, a despesa mensal só com alimentação deveria ser Cr$ 1.620,00 (levando-se em conta que duas crianças comeriam o mesmo que um adulto). Melo (1978) conclui que, se a despesa com a alimentação não deveria superar 50% do orçamento doméstico, de acordo com Decreto 399, o rendimento mensal dessa família deveria ser de Cr$

3.240,00, para garantir sua sobrevivência em condições dignas, de sorte que a alimentação mínima indispensável para manter um indivíduo saudável não estava ao alcance de 79% da população fluminense. Além disso, a saúde e a educação foram esquecidas das necessidades básicas dos trabalhadores, não havendo nenhuma indicação de como esses problemas se resolveriam.

Tabela 20 - Horas trabalhadas por alimentos (São Paulo, 1965, 1973, 1974)

Produtos Quantidade/mês Dez./1965 Dez./1973 Mar./1974

Carne 6,0 kg 26 h 24 min 66 h 22 min 65 h 57 min

Leite 7,51 4 h 15 min 5 h 46 min 6 h 55 min

Feijão 4,5 g 7 h 08 min 11 h 28 min 10 h 50 min

Arroz 3,0kg 3 h 45 min 5 h 54 min 6 h 32min

Farinha de trigo 1,5 kg 2 h 23 min 2 h 23 min 2 h 31 min

Batata 6,0kg 7 h 35 min 8 h 49 min 9 h 50 min

Tomate 9,0kg 8h24min 14 h 53 min 23 h28 min

Pão 6,0kg 7 h 48 min 13 h 04 min 17h13min

Café (pó) 600,0 g 46 min 3h47min 4 h 09 min

Banana 7,5 dz 4hoomin 10 h 44 min 10 h 23 min

Açúcar 3,0 kg 3 h 48 min 2 h 46 min 2 h 57 min

Manteiga 750,0 g 7 h 19 min 6 h 41 min 6 h 30 min

Banha 750,0 g 3h44min 9 h 05 min 9 h 39 min

Total 87 h 20 min 158 h 42 min 176 h 54 min

Fonte: Adaptado por Melo (1978, p.131).

O jornal Guerrilha Operária, publicado pela ALN, em 1971, em única edição, informa, ainda, que o aluguel representava, em 1965, 273h e 40 min e, em 1969, 407h e 50 min. Do mesmo modo, o gás engarrafado, que, em 1965, correspondia a 9h e 28 min, em 1969, passou a responder por 12h e 12 min.

Com alimentação tão precária, insuficiente para repor as energias gastas diariamente no trabalho, com uma saúde que se deteriora a cada dia pela debilitação constante, com a fadiga e cansaço que se acumulam sem serem contrabalançados por horas de repouso e lazer, não é difícil compreender porque a vida média do homem brasileiro é mais baixa que a de muitos países. A média de vida do homem brasileiro fica em tomo dos 48 anos de idade, sendo que em alguns Estados do Nordeste não ultrapassa, de modo geral, os 42 anos, e apenas uma pequena parcela atinge os 60 anos, contrariamente ao que ocorre hoje em boa parte do mundo (MELO, 1978, p.134).

Nesse sentido, é compreensível que apenas 51%, da PEA brasileira (32.398.000 em 1973) tenham exercido algum tipo de atividade. Dos 30.577.000 restantes, 21.394.000 viviam economicamente inativos e cerca de 10 milhões não trabalhavam por problemas de saúde. Outros 10 milhões formavam “as legiões perambulantes e nômades que palmilham as estradas do interior, sem trabalho fixo”, aqueles que, na cidade, não conseguem colocação no mercado de trabalho, “os biscateiros que só esporadicamente conseguem ocupação, e que constituem a massa flutuante de desempregados, o exército industrial de reserva” (MELO, 1978, p.135)47.

A mera reprodução da força de trabalho não qualificada, que, segundo o discurso hegemônico, pouco ou nada contribuía para o desenvolvimento do país, era algo, à primeira vista, inaceitável para o modelo concentrador. Entretanto, vale considerar, como o faz Lúcio Kowarick (1979), que essa população “marginal” contribui para a reprodução ampliada do sistema. Efetivamente, a reprodução do trabalhador ao nível da subsistência permite uma redução progressiva dos salários, dado o aumento de produtividade dos setores capitalizados da economia e a manutenção de um setor de serviços informal, cujos excedentes são drenados para o capital monopolista.

Figura 2 - A “abertura” segundo Edgar Vasques. Fonte: Retratos do Brasil.

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O II PND, pela primeira vez, menciona a existência de “focos de pobreza absoluta” na periferia dos grandes centros urbanos.

Essa população marginal, entretanto, em um contexto de alta rotatividade de mão-de-obra, era, vez por outra, assimilada ao operariado industrial. John Humprey (1978) demonstrou a prevalência de categorias semiqualificadas (56,9%) e não qualificadas (26.9%) entre os operários industriais. De fato, a classe operária, com o crescimento industrial, mudara quali- quantitativamente. Enquanto em 1960 apenas 15,9% do proletariado estava no exército industrial ativo, essa proporção cresceria para 37,1% em 1976.

Como nos lembra Francisco de Oliveira (1977), tudo contribuía para que o Brasil, na sétima década do século XX, se encontrasse no umbral de sua transmutação em uma nação industrial. Todavia, o crescimento do bolo não se destinara a matar a fome dos trabalhadores e o salário mínimo não cobria, “por dia normal de serviço”, “as suas necessidades normais de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte” (BRASIL, 1938, Art. 2º), de modo que a reprodução dos trabalhadores deveria se fazer pelo prolongamento da jornada de trabalho (a hora extra), incentivada pela política laboral do regime, que já prolongara a jornada de ramos industriais mais atrasados e com baixo nível de organização sindical, a agricultura e a construção civil.

Marini (1986) cita Joaquim Santos de Andrade, presidente do Sindicato de Metalúrgicos de São Paulo48, “insuspeito por sua capacidade de acomodação”, que denunciara que “os operários estão trabalhando doze horas por dia”, esclarecendo que 97 % deles tinham o seguinte regime de trabalho: oito horas diárias, duas horas extras (máximo permitido pela CLT, salvo em casos excepcionais) e mais 1,36 horas diárias a pretexto de compensar o descanso do sábado, de modo que trabalhavam 66 horas por semana, em lugar das 48 horas que a lei estabelece.

Humprey (1978), em investigação de campo em uma indústria automobilística de São Paulo, entre 1974-1975, mostrou que o incremento da carga de trabalho dos operários, desde sua entrada na fábrica, variava entre 20 e 50%, segundo a categoria. Face a essa sobrecarga de trabalho, o número de vítimas de acidentes de trabalho, entre os metalúrgicos acentuava-se, progressivamente, alcançando 33,08 % dos efetivos, o que desencadearia uma série de medidas saneadoras por parte do governo Geisel, que pretendia evitar danos à “qualidade da vida” do país.

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É interessante observar que esse autor utiliza, nesse artigo, dados da revista Brasil Socialista, publicação conjunta da APMLe do MR-8, editada no exterior, entre 1974 e 1977, com certa circulação clandestina no Brasil.

Com a diminuição da parte referente a salários no custo de sua reprodução, a classe trabalhadora teve que aumentar a produção doméstica de valores de uso. Como nos lembra Eunice Durham (1986, p.208), “a família é o núcleo de reprodução e de rendimentos e a vida familiar, uma estratégia que, jogando com a mão-de-obra disponível entre atividade remunerada e trabalho doméstico, procura assegurar um determinado nível de consumo”.

Regina Célia Bêga dos Santos (1986, p.72) afirma que “quanto mais baixo o custo de reprodução dos trabalhadores, menos investimentos ou serviços serão utilizados ou serão considerados necessários”. No entanto, se existe um mínimo em que se precisa investir, é certo que isso tem implicações territoriais, posto que qualquer investimento, valorizando o espaço, tende a expulsar a parcela mais explorada da classe trabalhadora para áreas menos valorizadas, que, mais cedo ou mais tarde, também serão alcançadas pelas inversões capitalistas e daí, nova expulsão, que expande a cidade pela incorporação de novas áreas.

Se os artifícios usados pelos trabalhadores para sobreviver com salários tão escassos acabaram por elevar os níveis de acumulação do capital, entende-se que a organização dessa população tenha se evoluído, tanto em nível de elaboração quanto em poder de pressão, das silenciosas ocupações de áreas vagas ao ruidoso MCV, alterando, em alguns momentos, a correlação de forças entre os agentes que, com interesses, conformam os territórios.

Se “os gestores do capital atrófico acreditaram na possibilidade de um capitalismo sem contradições, bastando para tal, a desagregação permanente dos movimentos populares” (RAGO FILHO, 2001, p.172), essa premissa revelou-se inócua, pois é certo que as lutas sociais avançavam quando todos os caminhos pareciam fechados.

Analisada a importância do “arrocho salarial” no modelo brasileiro de desenvolvimento entre 1964 e 1978, é possível compreender a ação política das organizações de esquerda brasileiras, junto aos movimentos populares do pós-1964, o que constitui o objeto de pesquisa do próximo capítulo.

FRENTE 2: