• Nenhum resultado encontrado

De Marxistas a Cristãos: uma via de mão dupla

OU QUEM PAGA AS CONTAS DO MILAGRE

ESNI ESG

4.3 De Marxistas a Cristãos: uma via de mão dupla

A contestação inicial ao regime foi feita pela intelligentsia radicalizada do movimento estudantil103, o primeiro a se reestruturar no pós-1964 e que se tornou locus de recrutamento das organizações de esquerda. Para Bresser Pereira (1979, p.83-84), “a revolução política radical de nosso tempo é a [...] dos estudantes e dos intelectuais não comprometidos [...] não são mais os operários, como pretendia Marx no século passado, a classe revolucionária”. O destinatário de sua crítica negativa era a sociedade industrial tecnoburocrática.

Essa experiência demonstrou a homologia de posição entre os operários (dominados) e os intelectuais (dominados entre os dominantes), que desviaram a esses parte do seu capital cultural acumulado, permitindo-lhes “os meios de constituírem objetivamente a sua visão do mundo e a representação dos seus interesses numa teoria explícita e em instrumentos de representação institucionalizados – organizações sindicais, partidos, tecnologias sociais de. mobilização e de manifestação, etc.” (BOURDIEU, 1989, p.153-154).

O “vanguardismo” do movimento estudantil não se fez sem tensões. Gabeira (1979, p.60) coloca o dilema do momento: “se a teoria afirma que a revolução seria conduzida pelos trabalhadores, como pode a prática (o movimento das camadas médias) avançar?” A partir dessa perspectiva, esse movimento teria necessariamente que refluir à espera de que “os setores mais conseqüentes” tomassem a frente da cena, já que “os estudantes se rebelam e se esgotam; os operários vêm no refluxo da luta estudantil e reconduzem todo o movimento de massas a partir do novo alento que lhe vão conferir”. Para essas esquerdas, o operariado era o herói romântico da epopéia revolucionária.

Trata-se de uma visão (“incendiário aos 20, bombeiro aos 40”) partilhada com os segmentos mais conservadores da sociedade104 e de uma hipótese que inúmeros militantes da

103

No interregno 1935-1965, o número de universitários, no Brasil, saltara de 27.501 a 155.781.

104

Lula da Silva (2002, p.1) partilha da mesma opinião: “O auge da vida dele começa aos 20 e termina aos 30. Nessa idade, todos somos mais impetuosos. [...] Temos mais pressa. Mas vai chegando um tempo em que a gente

“nova esquerda” não tiveram a oportunidade de provar. Também Guarany (1984, p.30) afirmaria: “Todos éramos de classe média. Qual o operário que teria a loucura-lucidez de se meter naquilo?”105 Se a velha esquerda imobilista, hegemonizada pelo PCB, fora culpabilizada pela derrocada de 1964, a hiperatividade voluntarista da “nova esquerda” seria condenada por lançar os “gorilas” da repressão contra os operários, adiando sine die a “revolução brasileira”. Para Ridente (1993, p.276), a bancarrota do conflito armado (1966- 1974) representou o fim de “um projeto de revolução, de transformação da sociedade brasileira pela ação de grupos de ‘vanguarda’, que não puderam representar politicamente a classe trabalhadora”.

A práxis estudantil, mesmo quando se radicalizou, foi apontada como “produto ‘revolucionário’ da frustração das aspirações da classe média”, que realizou a “polarização ‘revolucionária’ da consciência pequeno-burguesa”, afirmaria Foracchi (1966, p.11). Para essa analista, a classe média brasileira não possuía, nos idos de 1960, “condições de tomar como classe providências que afetem a estruturação dos processos econômicos, mas alimenta tal ilusão , em grande medida por intermédio do mito da ascensão pela educação”. Dessa sorte, a ação estudantil ilustraria “uma modalidade radical de consciência dos obstáculos criados para o prosseguimento da trajetória de ascensão”.

Fato é que alguns “revolucionários” levaram às últimas conseqüências a tentativa de incorporação ao proletariado. Assim, observa-se o trabalho da AP, anterior ao golpe, junto aos sindicatos rurais, vistos como canalizadores de transformações revolucionárias no campo, e seu processo de proletarização, relatado por Aldo Arantes e Haroldo Lima (1984).

Aplicada intensivamente no segundo semestre de 1968 e em 1969, declinando em meados de 1970, a experiência de integração na produção teria deixado saldo positivo, por “consolidar e ampliar importantes trabalhos populares da AP e inaugurar novas frentes em áreas trabalhadoras, contribuindo para que muitos quadros e militantes tivessem um contato mais direto com as massas” (ARANTES; LIMA, 1984, p.119), ao mesmo tempo em que colaborava com a salvaguarda de seus militantes. Escondidos da polícia por um cerco de

vai percebendo que a história não se adapta ao nosso tempo de vida. A gente é que tem que se adaptar à história. [...] A história é um processo”.

105

Apesar da hegemonia da intelligentsia na “nova esquerda”, a ALN (herdeira do (des)trabalho do PCB no movimento sindical em São Paulo) teve 68 “trabalhadores manuais urbanos” (14,8%) dentre os processados da organização, número que se elevaria a 168 (36,6%), computando-se também os “autônomos”, “empregados” e “técnicos médios” (RIDENTI, 1993).

operários, os militantes da APML106 sobreviveram à caça às bruxas comunistas, daí sua rápida reconstrução entre 1976 e 1977107.

A história da AP/APML, nascida da JUC em 1962, exemplifica a aproximação de setores católicos do marxismo. Novaes (1997) destaca que Julião, o advogado das Ligas Camponesas, se declarava marxista-cristão, termo incorporado, posteriormente, por muitos militantes oriundos das CEBs.

Malgrado essa uni/diversidade, na hierarquia da Igreja Católica, reinava o medo do comunismo. A ameaça vermelha (e o ateísmo que a fortiori a acompanharia) levou os setores conservadores dessa Igreja a apoiarem a “Revolução de 1964”. Se a CNBB foi criada em 1952 por Dom Hélder Câmara (“elemento progressista”, considerado “a voz dos que não têm voz”), em meados da década seguinte, a Conferência era hegemonizada pelos setores mais conservadores.

Isso não impediria que, em agosto de 1968, o padre operário Pierre Wauthier fosse expulso do Brasil, por envolvimento na greve de Osasco, o que teria “obrigado” a CNBB a responder ao arbítrio na linguagem dos direitos humanos108: “Por vezes o dever de colaborar pode assumir a forma da denúncia franca e leal contra a violação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais”, afirmaria a Igreja (apud PIERUCCI, 1996, p.253).

A partir do “endurecimento” do regime, com o advento do AI-5, um acordo tácito entre os bispos arrefecia a polarização política, culminando em uma maior no período 1974-1982, “em grande parte em função da decrescente influência da direita católica, maior moderação nos documentos progressistas109 e um grande esforço da parte dos progressistas para trabalhar dentro da instituição” (MAINWARING, 1989, p.191).

106

Após sua conversão ao maoísmo, a AP, nascida do cristianismo católico, adotou essa sigla. Vale lembrar que, em 1973, a maioria dessa organização integrou-se ao PCdoB.

107

A partir desse momento, a APML retoma a atuação no movimento estudantil, ganhando a hegemonia na Refazendo, tendência estudantil majoritária em São Paulo, Bahia e Minas Gerais e participando, ativamente, nos movimentos populares de saúde (os conselhos populares de saúde), feministas (publicando o jornal Brasil Mulher e realizando os Congressos da Mulher Paulista) e ações pela anistia, em São Paulo.

108

O padre francês, que rezava missa em fábricas de Osasco, recusou-se a persuadir os trabalhadores a desistirem da greve e foi levado por executivos da companhia à polícia sob a mira de arma. Também na greve da Contagem, três padres e um diácono associados à JOC foram torturados em Belo Horizonte, acusados de subversão e mantidos na prisão até fevereiro de 1969.

109

De seu lado, a Igreja atendia ao apelo de Golbery à oposição: “retenham seus radicais e nós reteremos os nossos” (ARTURI, 1999, p.285).

Assumindo a “denúncia franca e leal”, os bispos progressistas, aliando-se a agentes pastorais de base, engajaram-se na renovação da Igreja, a partir da “opção preferencial pelos pobres”, sacralizada no CELAM de Puebla (1979). A Igreja popular dos anos 1970, que teve como as CEBs ícones e mobilizou milhões de pobres, ancorou-se em uma instituição forte, com quase 250 bispos. Desde o início dos anos 1970, setores da PO, CPT e CEBs passaram a fornecer locais para reunião, todo tipo de infra-estrutura, recursos e quadros (leigos e padres militantes) ao movimento sindical e “popular”.

As CEBs definiam-se em torno dos três termos: a comunidade, como aglomerado de pessoas, cujos laços de solidariedade tinham um rebatimento territorial (seus membros são avant tout vizinhos); do eclesial, de ecclesia (assembléia, igreja), portanto, congregação de fiéis; da base, não por sua identificação com os pobres e oprimidos, mas por apresentarem as características de assembléia estável de fiéis, que formariam a Igreja local110.

As CEBs revitalizaram os movimentos sociais111, organizando, nos bairros mais pobres, clubes de mães, associações de moradores, movimentos negros e reivindicatórios de moradia, oposições sindicais e dando “impulso” ao ruidoso MCV. D. Paulo Arns, à frente da Arquidiocese de São Paulo, informa Monsenhor Sérgio Conrado (1989, p.24-25), desencadeou a Operação Periferia, que tinha por objetivos:

• Criar entre os agentes de pastoral um espírito missionário, de ida em busca do povo.

• Criar e coordenar recursos humanos e materiais em todos os setores. • Descobrir e treinar lideranças locais e animadores de comunidades que ajudassem o povo, através da organização, a ser “sujeito de sua libertação”. Ophelia Nascimento Alves, mãe de quatro filhos e esposa de um mecânico, questionada pelo jornal O Movimento (1978) sobre como iniciou sua participação no MCV de São Paulo, responde:

Eu comecei no planejamento dos clubes de mães, em 1974, de onde surgiu a idéia do MCV. Num primeiro momento eu recusei porque achei que ia lutar contra as autoridades. Mas teve um padre que me ajudou a esclarecer mais as idéias e me mostrou que se eu aceitasse, iria lutar contra a alta do custo de vida e não contra as

110

Cf. Reginaldo Prandi e André de Souza (1996).

111

Movimentos sociais são “ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural que viabilizam distintas formas da população se organizar e expressar suas demandas” (GOHN, 2003, p.13).

autoridades. Então eu aceitei e em 1974, demos início à pesquisa nos bairros e verificamos quanto se ganhava e quanto se gastava [...] Mudou muito. Mudou porque a gente aprendeu muito, se conscientizou, a gente sabe o que quer. Mudou tanto a minha vida quanto a vida da minha família. A gente está sempre preocupada em ouvir mais notícias, tá sempre ligada com os problemas do país, com as notícias da economia. Hoje a gente discute política aqui em casa, principalmente na hora do jornal. Agora, como é época de eleição, fica todo mundo preocupado em quem votar quem melhor vai representar.

O depoimento acima corrobora a tese de que tais movimentos não seriam a rigor espontâneos, como defende boa parte da literatura sobre a temática, mas frutos de um processo de educação popular, que teve na Igreja Católica a grande escola112. Löwy (2000, p.254), afirmando que a Teologia da Libertação foi, ao um só tempo, reflexo de uma práxis anterior e uma reflexão sobre essa práxis, ressalta que a JUC foi o centro dessa prática, mais tarde, assumida pelas CEBs. O jesuíta peruano Gustavo Gutiérrez, considerado o “pai” dessa corrente teológica, igualmente, atesta que foi na JUC que ela começou a ser gestada por intermédio de uma prática política. Mas foi a JOC que desenvolveu a noção cara à Igreja popular do valor humano fundamental e conjugou a visão religiosa com a política e a economia.

Como vimos e ratifica Maria da Glória Gohn (1991, p.25-26) os “novos movimentos sociais” eram, sobretudo, aqueles inspirados pela Teologia da Libertação, cujo “cerne da diferenciação eram práticas sociais e um estilo de organizar a comunidade local de uma maneira totalmente distinta”113.

A relação (subordinada) da Igreja Católica com o governo Geisel é retratada na solicitação, encaminhada por dom Eugênio Sales, cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, em setembro de 1975, ao ministro da Justiça, Armando Falcão, de permissão para convocar militares para os encontros que começara a promover com empresários e políticos para discutir “problemas gerais do Brasil” (D’ARAÚJO, 2002, p.31).

112

Se há uma prevalência de movimentos “disciplinados” pela Igreja, não se pode negar que alguns outros se configurariam como “espontâneos”, como os quebra-quebras contra os precários serviços ferroviários das periferias de São Paulo e Rio de Janeiro, a partir de 1974. A cultura da ação direta elegia, assim, como instrumentos de combate às carências e injustiças, a violência, contestatória e transgressora.

113

Esse “novo estilo de organização” influenciaria “uma parte significativa da esquerda, o PT, o sindicalismo novo e muitas ligas camponeses, sindicatos e associações de bairros” (MAINWARING, 1989, p.251). Também para Löwy (2000, p.435), “graças ao cristianismo da libertação, idéias, temas e valores do marxismo – claro, de forma seletiva e reformulados em termos político-religiosos – foram assimilados por amplos setores populares no Brasil – que se encontram não só nas CEBs, mas também no PT, na CUT e no MST”.