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Costa e Silva e a saga do desenvolvimento

O LONGO MILAGRE, SEUS SANTOS E EPIFANIAS

1. PEQUENA HISTÓRIA DAS CONTAS DO REGIME

1.2 Costa e Silva e a saga do desenvolvimento

Em março de 1967, foi empossado o general Costa e Silva. Seu ministério era composto por oito oficiais da ativa, dois da reserva, seis técnicos civis e três políticos. Para a condução da política econômica, foram nomeados Antônio Delfim Netto, ministro da Fazenda, e Hélio Beltrão, do Planejamento. No ato de sua posse, o novo ministro da Fazenda anunciou como meta estratégica a aceleração do desenvolvimento econômico do país, em combinação com o combate ao processo inflacionário.

A troca de governo trouxe nova estratégia. O PED, lançado pelo governo Costa e Silva em 1968, tinha por metas o aumento de investimentos em setores diversificados; a diminuição do papel do setor público e o estímulo a um maior crescimento do setor privado; com a expansão do comércio exterior e a contenção da inflação. Este programa se propunha a solucionar os problemas relacionados com a estrutura e o financiamento da comercialização de alimentos e a eliminar os principais pontos de estrangulamento da infra-estrutura, da produção industrial e do mercado interno.

Em agosto de 1968, foi criada a EMBRAER, com a finalidade de desenvolver indústria de material aeronáutico, incluindo a fabricação de unidades de vôo e instrumentos sofisticados de controle e segurança das aeronaves. Ainda de acordo com as diretrizes do PED, o governo criou a EBCT, vinculada ao Ministério das Comunicações. Finalmente, em agosto de 1969, foi criada a CPRM, inserida na estrutura do Ministério das Minas e Energia, para, mediante encomenda do setor privado ou por iniciativa do próprio governo, explorar as riquezas no subsolo nacional.

Segundo estimativas do Instituto de Economia da FGV, o quadro inflacionário brasileiro ao início do governo Costa e Silva, tomando como base o ano de 1966, apresentava um índice de 38,8%. No ano seguinte, a inflação baixou para 24,3 %, elevando-se a 25,4 % em 1968, para declinar novamente em 1969, quando chegou a 20,2%.

Continuava, assim, em pauta “demonstrar a viabilidade do desenvolvimento brasileiro” (BRASIL, 1969, I-2), preocupação que permeou o PED. Em contraste com a retórica do Programa anterior, o PED apoiou-se em um diagnóstico que vinculava o “desafio brasileiro” ao “arrefecimento da substituição de importações”, encerrando um estágio do processo de desenvolvimento econômico do Brasil, caracterizado por uma estratégia baseada num “único fator dinâmico” (a indústria), tornada possível pelo fato de a decisão de investir depender “apenas do tamanho absoluto dos mercados”.

Exatamente porque arrefeceu a substituição de importações e nenhuma estratégia concentrada numa única fonte de dinamismo terá condições de assegurar o desenvolvimento auto-sustentável, a estratégia a adotar no novo estágio objetiva a diversificação das fontes de dinamismo. Dever-se-á ampliar substancialmente o ‘bloco de setores dinâmicos interligados, e que na fase anterior se limitara praticamente à Indústria (Bens de capital, Bens de consumo duráveis, Bens intermediários) e alguns segmentos de Infra-estrutura e de Agricultura. A ampliação desse “bloco” de impactos simultâneos, para abranger (além da Indústria) o Setor Agrícola, áreas substanciais da Infra-Estrutura Econômica e da própria Infra- Estrutura Social (Habitação, Educação, Saneamento) irá permitir a expansão da demanda e oferta capaz de sustentar um ritmo intenso de crescimento, numa

ampliação de mercado que permita superar a fase de crescimento moderado em que se encontrava a economia (BRASIL, 1969, IV-16).

A velha política econômica estaria na contramão da integração nacional, já que, como afirmam Smolka e Lodder (1975, p.205), ele conduz necessariamente, no longo prazo, o sistema à concentração espacial pela simples razão de ser mais eficiente”.

As novas autoridades econômicas recorreram a alguns expedientes que implicaram renúncia de receita: a elevação do teto de isenção sobre o IR das pessoas físicas, resultando em um ganho aproximado de 5% para os salários reais das faixas salariais favorecidas, e o alongamento transitório dos prazos para o recolhimento do IPI, passando a desfrutar de 30 a 45 dias, ao invés de ser feito no ato do faturamento, medida de estímulo à reativação da demanda de consumo e de fornecimento de capital de giro ao setor industrial para atendê-la.

Observou-se, ainda, uma vigorosa expansão da oferta de moeda e crédito, ao passo em que se reduziam as taxas de juros e uma gama de medidas estimulava as exportações (isenção de impostos indiretos, minidesvalorizações cambiais). Para Macarini (2000, p.10), entretanto, não seria correto considerar que “a implementação do ‘modelo exportador’ já se constituísse uma peça essencial da política econômica: na verdade, tal somente ocorreu um pouco mais à frente, durante o governo Médici”.

Presidido pelo ministro da Fazenda Delfim Netto, o CMN transformou-se numa “arena de negociação entre setor público e privado, cabendo à tecnocracia o papel de agente mediador dos interesses privados” (DINIZ, 1994, p.209). Mais do que um formulador da política monetária e creditícia, esse órgão passou a dirigir de fato a política econômica do país.

O desempenho da economia brasileira no ano de 1968 fora extremamente satisfatório: o setor industrial teve crescimento próximo a 14%, o mesmo acontecendo com o emprego industrial. A indústria automobilística iniciou em 1968 o seu ciclo de recordes sucessivos de produção (mais de 270 mil unidades produzidas, contra 225 mil em 1967) e a da construção civil experimentou substancial ativação. O setor de bens intermediários também cresceu: a siderurgia, ao redor de 16% em 1968 e o setor de materiais de construção chegou, inclusive, a ser surpreendido pela grande expansão da demanda. As exportações exibiram os primeiros sinais do futuro boom exportador, atingindo a marca de US$ 1,8 bilhão (MACARINI, 2000).

Octávio Ianni (1971), analisando a política econômica, referente aos anos 1964-70, afirma a continuidade dos mesmos objetivos básicos: controle da inflação; expansão e diversificação das exportações; estímulo à concentração do capital; racionalização das estruturas internas e

externas das empresas; modernização e reintegração do subsistema econômico brasileiro, em nível nacional e internacional.

Assim, a política creditícia, fiscal e cambial, nos termos em que foi posta em prática, provocou o enfraquecimento da posição relativa e absoluta de um setor da burguesia brasileira (não somente pequena e média) em favor da grande burguesia multinacional. Ruy Mauro Marini (1986) informa que, entre 1964 e 1970, o índice de produção industrial no ramo de material de transporte (dominado pelo capital estrangeiro) se elevou de 92,4 a 225,2, enquanto o ramo têxtil (de base nacional, naquele momento) se reduzira de 101,6 a 97,2.

Para rebater a crença de que a “inflação produz o desenvolvimento”, Delfim Netto tentou persuadir a sociedade a aceitar uma política que reduzisse o ritmo de expansão da oferta monetária a limites compatíveis com as necessidades reais da economia e do nível de preços estimado. Todavia, as tensões criadas por essa política econômica junto ao empresariado obrigaram a recorrentes medidas tópicas para abrandar as pressões de frações empresariais em dificuldades, sem abandonar as diretrizes centrais de austeridade e disciplina.

Os últimos meses de 1968 corresponderam a um período de crise, observando-se uma expansão acentuada do déficit orçamentário, dos meios de pagamento e do crédito bancário, numa conjuntura marcada por sinais de estagnação. Sintomaticamente, uma das primeiras medidas do governo Médici consistiu no adiamento do imposto de renda devido pelas pessoas físicas em novembro/dezembro para fevereiro/março de 1970, procurando, assim, estimular as compras de fim do ano.

Durante algum tempo tentou-se esconder o sol com a peneira, resultando daí um hiato cada vez maior entre a inflação real e a inflação oficial, que acabou engolindo todo o sistema de controles de preços, juros e salários. Já em fins daquele ano, o “modelo” girava num vazio: a economia inegavelmente continuava crescendo, mas o processo produtivo começava a engasgar em tantos pontos, que mudanças profundas na política econômica se impunham (SINGER, 1976, p.164).

Sob este espectro, sendo os trabalhadores os eternos culpados das crises do capital, os reajustes salariais de 1969 foram arbitrados supondo: 1) um resíduo inflacionário fixado em 15% no primeiro semestre e reduzido para 13% no segundo semestre; 2) um coeficiente de aumento da produtividade no nível de 2%.30

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O próprio Delfim Netto, em entrevista a Visão (31 jan. 1969), reconhecia que o crescimento da produtividade industrial alcançara 9%.

Durante o ano de 1969 foram recorrentes as queixas de setores empresariais, acusando em maior ou menor medida os efeitos da restrição de crédito, enquanto as dificuldades já antigas de algumas indústrias foram intensificadas. Nesse momento, contudo, a política econômica experimentou nova inflexão, com uma notável ampliação das ambições político-econômicas.

A inflexão foi o resultado de uma mudança na política econômica: o combate à inflação foi dado como vitorioso e a aceleração do crescimento passou a receber máxima prioridade. A partir de 1967, à construção civil foram destinados créditos abundantes do BNH e, em 1968, o seu produto cresceu 23% em relação ao ano anterior. Este foi o início do boom, que logo depois envolveu a indústria automobilística e outros ramos produtores de bens duráveis de consumo (SINGER, 1976, p.112).

A indústria automobilística foi o carro-chefe do anunciado milagre. Em 1966-1967, após concluir a fase de absorção das indústrias nacionais, as empresas estrangeiras conformam um setor altamente oligopolista. Uma única empresa, a Mercedes-Benz, chegou a responder por mais de 50% dos caminhões produzidos no país. Essas montadoras, concentradas no ABC paulista, empregavam 80 mil trabalhadores em 1971. À sua volta, gravitavam indústrias de autopeças, de capital nacional ou estrangeiro. Ao mesmo tempo, o estoque de carros estrangeiros no país passou de US$ 1,2 bilhão em 1960 a 17,5 bilhões em 1980. O automóvel impulsionou a produção siderúrgica, a construção de estradas, pontes, viadutos, facultando às grandes empreiteiras a consolidação de seu próprio império.

Delfim Netto captaria muito bem o novo clima, propondo como meta central do novo governo uma taxa de crescimento de 9% a.a. e a conseqüente duplicação da renda per capita na década de 1970. Delfim Netto permanecerá no governo Médici, mas, para Macarini (2005), não se pode considerar como idêntica a atuação do ministro nos dois governos. O discurso (e a práxis) delfiniana de 1967-1968 não se projetariam facilmente sobre todo o período até 1973: o “milagre” despontou apenas na virada de 1969 para 1970 e o “modelo agrícola- exportador” somente adquiriu o estatuto de núcleo estratégico da política econômica no governo Médici.