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6 Campo teórico-metodológico da pesquisa.

1 A pesquisa e suas metodologias

1.2 Adentrando nos Bairros

Com o contato com os familiares e com as crianças, passei também a freqüentar suas casas, visitando esporadicamente algumas das família à convite das crianças. Um evento organizado pelo grupo de Apoio Mutuo Pé no Chão possibilitou conhecer vários moradores dos dois bairros, e algumas mães dos performers. Tendo feito amizade com várias delas, tornou-se mais fácil o convívio junto dos familiares, uma vez que elas mesmas me chamavam para suas casas quando passava nas ruas. Passei a ter um contato mais cotidiano nas ruas dos dois bairros, já que a convivência entre essas famílias e as crianças se dá em grande parte nessas. No Arruda, por exemplo, era comum sentar em frente às casas enquanto esperava as

crianças para algum evento48 ou atividade, ou ainda sentava-me com grupos de crianças, jovens ou adultos num pequeno quadrado feito sob a sombra de uma árvore ao lado, no Canal do Arruda. Este local era um dos espaços centrais de conversa entre alguns moradores do bairro. Era chamado por alguns deles de “ponto da fofoca”. Em Santo Amaro, era na frente das casas, ou dentro delas que podia passar mais tempo com as famílias. Em Santo Amaro, era muito importante saber aonde ia e com quem encontraria, já que havia no bairro uma guerra entre duas facções de tráfico de drogas – entre a parte norte de Santo Amaro e o sul, chamada de João de Barros. Neste bairro, tive que aprender como me mover. Meus conhecidos, sabendo da minha ignorância em relação aos perigos do bairro, orientavam-me freqüentemente sobre qual rua poderia passar e em qual delas eu poderia “ficar deitada”49.

O que realmente me convenceu que o saber era necessário para circular no bairro, foi a sensação adquirida pouco à pouco de que havia “algo no ar” – como se esse tivesse mais comprimido, densificado. O tempo parecia um pouco mais valioso; também sentia que a vida, a alegria e a tristeza eram mais intensos naqueles becos. Fui entendendo de onde vinha aquele “ar denso”, nas experiências que fui vivendo lá mesmo, e pela narrativa que ouvia das mulheres e especialmente das crianças com as quais convivi. As notícias que chegavam quase todos os dias por algum deles incluíam frases como “Hoje morreu mais um lá no Santo

Amaro”, “Mais um ficou deitado50”, “Santo Amaro é foda”, “Hoje teve tiroteio lá perto da minha casa”. O tom cotidiano da vida, tanto quanto os momentos de performance espetacular

nesses bairros, eram influenciados por esse “ar denso”. Um tipo de atitude mental permeava a vida do bairro de maneira que lembra que Malinowski ([1922] 1978) viu expressado no “inponderabilidade da vida cotidiana”.

Em alguns momentos, essa intensidade se tornou mais palpável. Convenci-me mesmo, por minha própria experiência, que aquele lugar exigia mais do que aprendera nos manuais de campo Malinowskianos. Numa visita à casa de um dos adolescentes raper, no beco do Buraco 2, conversava com sua mãe, que bordava sandálias Havainas com miçangas, uma encomenda que deveriam enviar a italianos que ajudavam no financiamento dos projetos educativos “Pé no Chão”. Chegou sua comadre. Conversávamos descontraidamente sobre relacionamentos

48 Uma característica interessante era que, cada vez que havia um evento, as crianças banhavam-se demoradamente e adornavam-se cuidadosamente para participar do mesmo.

49 À princípio, esse conhecimento parecia ser um cuidado excessivo desses para comigo, um modo de manter o controle sobre meu ir e vir. Mas com o tempo a experiência me mostrou que não era somente eu quem deveria tomar extremo cuidado.

amorosos, conversa preferida delas, acompanhando com os olhos o vai-e-vem da mão de Cícera carregando a fina agulha a perfurar a sandália. Cada volta preenchia a tira da sandália com flores colorido de miçangas. Juntaram-se a nós Sonia e outra vizinha, e o burburinho da conversa aumentou, dividindo agora o grupo. Eu e Sônia combinávamos a entrevista que faria com ela, ainda naquela semana. Ríamos animadamente. Mãe de um dos excelentes dançarinos do grupo, era sempre muito descontraída, rindo de qualquer coisa, contando histórias cotidianas, ou do modo com tinha que aprender a criar filhos tão diferentes. Dizia que tentava achar um caminho para educar os meninos de forma que eles pudessem viver bem, longe da violência.

De repente, em segundos, vi Sônia sumir da minha frente, e disparar para dentro de casa. Na mesma hora que ouvi um estrondo forte, vindo do centro da comunidade, olhei ligeiramente para o lado e assustada, vi que também as demais presentes haviam sumido. Não sabia o que fazer – fiquei paralisada e me ocorreu, muito rapidamente, que estava em apuros – veio um calor no meu corpo, e a boca imediatamente se encheu de um sabor amargo. Mas como a ignorância nos protege algumas vezes, fiquei ali mesma, com os pés aterrados no mesmo lugar, quando as vi voltarem em minha direção, formando novamente a roda, mas com um sorriso ainda nervoso na face. Olhavam todas na mesma direção, tentando decifrar quem estava ao longe. Suspiraram aliviadas, dizendo o nome dos dois jovens de aproximadamente 18 anos, ainda a uma certa distância. Minha presença parecia pouco importar para elas naquele instante porque, por segundos, pareciam não me avistar no meio delas.Quando soube que elas pensaram que o estrondo era um tiro, como eu mesma pensara, meu susto foi maior. E eu sequer saberia o que fazer se a hipótese se confirmasse, caso fosse de fato o início de um “bang-bang”, nome que davam às guerras entre grupos rivais, em tom sarcástico; uma guerra, como elas me disseram, rindo de si, minutos depois.

Os dois rapazes passaram por nós, cumprimentando, e elas, olhos meio revesgados, olhavam umas para as outras e tinham nos lábios um sorriso meio nervoso. Alívio e tensão e uma certa vergonha era o que demonstravam enquanto explicavam que tinham corrido de uma possível guerra entre gangues. Aqui tem de vez em quando uns tiroteio, sabe, Dona Rita?!.

Esta era apenas uma das muitas vezes em que a minha ignorância me pegaria completamente desprevenida. Já em outras vezes, o desconhecimento da dimensão exata da guerra me colocaria em posição de defesa excessiva. Morar na favela não é fácil, quem mora 50 Termo usado para referir-se à alguém assassinado, ou morto.

em Santo Amaro, deve estar ligado, quem mora no Arruda, deve estar ligado, dizia a letra da

música de um dos rappers do Arruda. Para morar nesses bairros, é preciso conhecer profundamente as relações sociais de gerações, seus códigos, seus significados. Jaca (14), um dos meus informantes, avisou-me numa conversa longa que tivemos em março de 2007: “É

preciso tá ligado na lei da favela. Senão, o bicho pega; éééé, o bicho pode pegar, me

avisavam. Minha escolha de morar em outros bairros próximos51 se deu especialmente pelo próprio conselho dos moradores, que por um lado desmitificavam o bairro enquanto lugar apenas do perigo, por outro alertavam da necessidade de conhecer tais regras e do risco que se corre quando não se conhece as mesmas.

Se descrevo esse evento, mostrando como a metodologia de pesquisa exige um saber para além do que podem ensinar os livros acadêmicos, esse relato expressa também como a guerra do narcotráfico tem atingido as famílias e os performers de modo distinto de como atinge aqueles que a assistem pela televisão. Por outro lado, foi exatamente naqueles bairros “perigosos” que pude me sentir acolhida numa cidade frenética e de relações bastantes blasés (Simmel, 1979) como me parecia ser Recife. Era nos becos e nos espaços de convívio cotidianos nas ruas onde fui, entre uma conversa e outra, que fui apreendendo um pouco mais da vida cotidiana, das dinâmicas de vizinhança e de parentesco, dos atritos, dos conflitos entre eles, no que concordavam e no que discordavam na formação dos filhos, etc. Também foi nessas conversas, especialmente, que podia perceber divergências e convergências entre a educação oferecida pelas ONGs aos seus filhos e as suas próprias, bem como entender o vínculo das famílias com as instituições e das trocas possíveis entre esses.

1.3 Entrevistando

Além de inúmeras conversas informais que tive com performers e suas famílias e vizinhos dadas pelo encontro num beco ou noutro, fiz entrevistas abertas com as crianças e alguns dos familiares. Essas entrevistas foram importante meio para entender o modo como se

51 Morei em diversos bairros próximos, como Boa Vista (Centro Recife) e especialmente nos arredores da Cidade Histórica de Olinda (Varadouro, Amaro Branco), com acesso fácil aos dois bairros da pesquisa. Muito embora tenha seguido a orientação dos moradores de Santo Amaro, especialmente, de morar fora do bairro, quando morei em Boa Vista, as más condições do local (barulho em excesso durante o dia e a noite, o que dificultou dormir por quase um mês; falta de água quase diária e má qualidade da mesma, obrigaram a comprar água inclusive para o banho e lavar roupas) eram reconhecidas pelos próprios moradores de Arruda como “morar mal”. Nesse caso, diziam que seu bairro apresentava melhores condições. Um dos maiores problemas que

relacionavam com performances feitas por seus filhos, expectativas que tinham da participação desses em eventos formais como artistas performers, expectativas de futuro, relação com a arte de modo geral. Com os performers, tinha como objetivo investigar como viam a si mesmos, como se relacionavam com suas performances, quais expectativas tinham em relação à arte, como viam as apresentações, a relação com o público etc..9 Outro tema também abordado era a infância, seus significados, diferenças geracionais, e a biografia familiar, considerando lugar de onde provêm, modos de sobrevivência, dinâmicas familiares, entre outras questões que surgissem ao longo da conversa.

1.3.1 Criando intimidade

Embora concorde que a experiência52 é única e bastante particular, já que pessoas podem viver a mesma coisa e significar de modo completamente distinto (Bruner, 1986), também é certo que partilhar determinadas situações cria um conhecimento do outro e, por vezes, uma intimidade que de outro modo poderia ser impossível. Foi, por exemplo, a experiência com as mulheres em Santo Amaro, que me fez entender que o aviso que me davam dos perigos do bairro era um modo que tinham de me acolher e não o contrário, como pensei algumas vezes. Do mesmo modo, foi somente com o contato prolongado e com o partilhar experiências, que fui podendo adquirir mais intimidade com o grupo. Uma das características das crianças é a proximidade rápida, mas adquirir confiança necessária à pesquisa não foi tão simples.

Com as crianças pequenas, esse contato se aprofundou na ocasião das oficinas de bonecos. Auxiliando o educador do grupo “Pé no Chão”, pude estar mais freqüentemente com vários deles, fazendo um vínculo maior. Passaram a me cumprimentar, a perguntar por mim, a perguntar por que não estivera lá na tarde anterior, a desejarem minha presença nas atividades. Também participar das oficinas de arte como aprendiz possibilitou a me ensinarem passos bem básicos das danças populares e do break. Freqüentemente, recebiam visitantes de outros países e, apesar de estarem acostumados com a presença de estrangeiros no grupo, nem sempre um aprofundamento na relação parecia possível, já que alguns permaneciam por pouco tempo, ou vinham como voluntários, com atividades programadas. De fato, reconheciam-me como um enfrentava cada vez que voltava à campo, era justamente encontrar um local salúbre para morar.

estrangeira, e meu interesse em aprender o que eles já sabiam parecia criar uma nova perspectiva para apreciar um visitante, como notei ser também a relação que estabeleciam com um italiano, presente em campo numa das ocasiões, que se envolvia nas oficinas do mesmo modo.

Outro modo de fazer contanto com as crianças, ainda em 2004, foi oferecendo uma oficina de pin-hole53, uma técnica básica de fotografia. Apesar de terem sido apenas dois dias de oficina, foi uma importante estratégia de aproximação de alguns destes performers, e possibilitou perceber a receptividade da imagem no trabalho de campo. Somente depois dessa oficina, passei a fazer uso do vídeo em campo, como tinha planejado no projeto de pesquisa.