• Nenhum resultado encontrado

2.1 “Fazer Minino”

2.5 Casos vividos narrados

2.5.1 Ato 1 Estranhando parentes

Voltemos à conversa com Caixa, responsável pelo meu crescente interesse na temática. Ao ouvir a explicação dos termos de parentesco, propus imediatamente entrevistá-lo, já que seu tio/irmão estava ocupado naquele instante, gingando capoeira. Apoiada pela filmagem do grupo, tivemos uma longa conversa, que transcrevo, em parte, aqui.

Sim, eu vivo com a minha avó porque... quando eu era pequeninho a minha mãe queria me dar a uma pessoa estranha. Aí minha avó pegou e mi pegou, não deixou. O meu avô pegou, eles... e levou pra casa cuidou de mim, não sei o quê. Aí [pausa] minha avô me disse: vamos cuidá desse menino porque... tua mãe é doida! Aí pegou, me cuidou de pequeno até hoje. E hoje eu dou um bom valor a ela, zelo por ela, por meu avô que tá encima duma cama; não pode andar..., e assim eu vou. Que, minha mãe quando [eu] era pequeno, minha avô quando eu era pequeno, quando era assim... nova. Se ela fosse uma mulher nova ela fazia o quê?- Não. deixa levar! Mas não. Ela foi lá, sendo honesta, me pegou, e me botou na casa dela, me criou, desde... Hoje minha tia, ela saia pra esse negócio de prostituição, trazia negócio pra mim do bom e do melhor, leite.

A narrativa de Caixa, carregada de emoção na voz, mostra como ele, ainda menino, foi construindo as relações com aqueles que lhe acolheram no seio da família consangüínea, baseado nas narrativas dos demais do grupo, criando a certeza sobre qual pessoa merece ser chamado de pai/mãe. Desde muito cedo, tomou conhecimento que fora “dado a outro grupo”, o que era considerado na família uma traição, já que “não se dá um filho a um estranho” quando se está em sã consciência.

Para Caixa, parece claro que foi por generosidade que seus avós o salvaram de tornar- se um filho de desconhecidos. Também parece claro que pessoas novas não o adotariam, e sim os mais velhos, o que parece indicar que são os com mais idade e (honestos, conforme o “minino”), que são capazes de acolher uma criança como se deve. Por outro lado, seu discurso também revela a construção de uma moral em que a dádiva e a dívida estão fortemente presentes. Se ele recebeu dos avós os devidos cuidados para crescer, deve agora retribuir,

zelando pelos avós doentes, uma responsabilidade que assume (desde os nove anos) indo para o sinal dançar breakdance e levando recursos para a família.

Caixa continua contando como se sente em relação ao grupo em que vive, como os considera e como, por essa consideração, prefere chamar cada um deles:

Caixa - É! eu mesmo sô criado pela minha avó, porque foi ela que me criou. Agora eu não chamo a minha de mãe de mãe, não. Até eu gosto dela porque ela batalha pra me dá de comer, agora minha avó, eu acho, eu prefiro assim. Ela [a progenitora] me dá de come, me dá isso, mas não me dá amor como minha avó me dá. Não me dá carinho como minha vó me dá. Aí eu, eu chamo minha mã... [pausa] minha avó de minha mãe, porque ela foi como uma mãe pra mim, e minha mãe foi como um estranho, meu. Aí, hoje eu me sinto revoltado! Eu num, num digo: tu é isso, tu é aquilo, tu é aquilo... eu apenas fico na minha... ela bota de comer pra mim, eu pego, como, chego pra minha avó, abraço ela, faço isso, faço aquilo.... tenho que zelar por ela, porque quando eu era pequeno foi ela que fez aos contrário do que eu tô fazendo por ela. Rita - Foi ela que te acolheu como filho?

Caixa – Foooi. Chamo ela de mãe a minha avó... minha mãe, eu chamo ela de... pelo nome dela mesmo!

O depoimento de Caixa revela como se constrói tanto a relação de parentesco quanto como se estabelece uma espécie de estranhamento dentro do próprio grupo consangüíneo. Vemos aí a importância do sangue, mas também da comensalidade, da partilha do amor, numa dinâmicas de dar, receber e retribuir nos termos Maussianos (Mauss, [1950], 1974), mostrando a obrigatoriedade da troca quando diz que faz tudo para ela porque ela (a avó que o acolheu) fez tudo por ele. Ainda que sua genitora o sustente, trabalhando para botar comida em casa, parece que, para o menino, conseguir os suplementos para sustentar uma criança ou gerar um filho, não são suficientes para que seja considerado ter parentesco. Depois de gerar e parir uma criança, há uma série de requisitos que transforma um progenitor em parente, ou em alguém digno de ser chamado de mãe/pai.

Narrativas de outros filhos adotados por avós trazem essa mesma questão: o genitor não só não é considerado como pai/mãe, quanto pode transformar-se num estranho, ou se tornar o principal inimigo nos primeiros anos da vida de uma criança. Uma jovem de 19 anos, por exemplo, conta que ela e seu primo/irmão foram criados desde muito pequenos pela avó. Frisa que sua genitora, a quem chama pelo nome, por muito tempo foi como um inimiga que teve dentro de casa. Ainda agora a jovem afirma que essa sempre foi um contra-exemplo do que se deve ser na vida:

Eu e minha mãe, a gente não se dá muito, é muito arenga. Hoje ainda a gente tá tentando, mas é como assim uma irmã mais velha pra mim. Ela quer que eu obedeça ela, mas eu sô mais parecida com a minha avó, que é a minha mãe. Eu e meu primo fomo criado como irmão. Mainha criava nós dois, e tia e Dida [a genitora] iam trabalha pra dar o comer pra gente.

Ainda falando da genitora, diz:

Ela é fraca, não sabe dizer não, e todo mundo engana ela. Oxi, não considero ela minha mãe, não. Nós duas era só arenga [briga] a vida inteira. Agora que a gente começou a se entender melhor, mas ela sempre ia contra mim, e claro que eu contra ela. A pessoa que eu considero minha mãe é a minha avó. Ela sim me criô.

Essa mesma jovem narra que faz poucos anos que soube quem era o seu pai. Tem vontade de conhecê-lo, mas, ao mesmo tempo, teme ser rejeitada, porque sua mãe sequer disse ao pai da sua existência. Por muitos anos, a própria genitora negou-lhe o conhecimento do pai, o que para a adolescente era um fator também de conflito com essa, pois, segundo a própria jovem, se ela teve coragem de dormir com ele, que tenha coragem de assumir.

Um exemplo bastante interessante dessa relação de parentesco é a facilidade com que os parentes da mãe, tão logo percebem que o pai não quer assumir o ato da procriação, que “gerou” o novo ser – ou seja, que não assume que a criança é seu parente também, e escolhe assim não se associar com a nova família – é então praticamente descartado da história da criança. Um irmão, ou o pai da mãe da criança, ou a mãe da criança109, assumiriam a mesma, “colocando-a no seu nome”, ou seja, a família da mãe retém a criança como sua, adotando-a legalmente, impedindo por completo que o outro progenitor a reclame algum dia. Assim, o papel do pai é rapidamente substituído por um parente da mãe, transformando-se também aqui um parente duplo. A figura do progenitor é praticamente anulada nesse caso e, junto com essa, toda sua família. Essa regra não é verdadeira quando o mesmo quer se agregar de verdade, ou seja, quando decide assumir a família ou o filho, assim que saiba da sua existência.

Podemos ver que no caso de Caixa, por exemplo, que o fato de que o pai não o assume não é a questão central, mas o fato de que a mãe não quer assumi-lo, coloca-se como o problema. Uma mãe que o entrega a estranhos é tratada como uma estranha. Ela rejeita o sangue, rejeita o parente, e não merece ser chamada de mãe. No caso de uma menina que nascera durante o período da pesquisa, o tio materno disse que assim que soube que o pai de sangue não quis assumir que o filho era dele, deixou claro que o filho não vai ser dele mesmo. Tão logo a menina nasceu, registrou-a no seu nome, passando essa a ser formalmente sua filha (filha do irmão da mãe). Não parecer haver qualquer preocupação com aspectos considerados incestuosos, já que mais que tudo tratava-se da formalização da paternidade. Garantiu assim

109 Tal prática não é entendida como incesto, já que se trata de questões legais que não remetem a outra coisa senão a garantir um nome familiar à criança.

que o “cara” nunca possa assumir a menina como sua filhaperante a lei. É ele mesmo quem me conta:

Quando a L nasceu, eu peguei e registrei loguinho ela no meu nome, que é pro cara nem vir quere dizer depois que a filha é dele. Não quis assumir o que fez, agora que se dane. Eu que não vô deixar ele vir querer ser o pai dela depois que vê a menina.

Há aqui um jogo curioso de tornar estranho como parente, e tornar parente como estranho. Se Caixa fosse adotado por um estranho, estes seriam agora seus próximos, mas a mãe dele, por ter dado o filho a estranhos, passa a ter o status de estranha para o menino. Associando-se a um grupo de estranhos, e rejeitando cuidar do filho, a mãe transforma-se numa dentre esses, sem sê-lo por completo: ela é “como uma estranha”. Pode ocupar um lugar de desconforto permanente perante a posição que ocupa, ou pode agregar-se como uma irmã mais velha, uma meia-mãe/meia-irmã.

Uma das questões levantadas por Caixa, no início deste texto, era o modo como tios tornam-se irmãos, irmãos tornam-se sobrinhos, avós tornam-se pais, pais tornam-se irmãos e assim por diante. Também sua fala expressa um pouco o modo como essa dupla parentalidade pode ser confusa na definição de papéis, hierarquias, troca de afetos, e responsabilidades. Além de revelar claramente que o parentesco é, mais que tudo um lugar que se conquista, parece que também nos revela que essa relação, sendo dupla, não é simples e nem está longe de tensões no dia-a-dia, sendo necessário pensar parentesco como um campo de negociações.

Um dos erros maiores que os meninos confessavam que se podia cometer era “bater nos filhos dos outros”. Era uma espécie de pecado nas relações entre vizinhos. O filho dos outros, cabe aos outros educarem. Por outro lado, ouvi várias narrativas sobre os castigos que sofreram de seus pais, e essas narrativas implicavam em risos, piadas, e algumas vezes, quando extremos, implicavam em narrativas de tristeza. Todavia, era interessante como, especialmente os adultos, afirmavam que era uma honra seus pais os educaram bem. Um filho educado não é

mimado, diziam vários dos pais e, às vezes, as próprias crianças. Assim, uma pessoa parece

aceitar ser castigada ou educada, apenas por quem considera ter esse direito: por seus próprios pais. Creio que aqui está uma das grandes tensões na relação entre os filhos e os genitores: eles não os aceitam e não os vêem como pais, e por isso não os obedecem. Há entre eles um certo

status de igualdade, e não mais de hierarquia, como com a figura do pai/mãe.

É essa relação de autoridade que parece levar avós a registrarem os netos como filhos seus. Um senhor me disse uma vez, se vai ser criado por mim, ele vai ter o meu nome, vai ser

educação dele – educo ao meu modo. Resolvem-se assim dúvidas sobre autoridades, muito

embora em quase todos os casos os genitores devam contribuir na alimentação da criança. Também é comum, nesse caso, que apenas os homens sejam os que dão o nome aos filhos dos filhos, quando o pai biológico não os registra. A criança precisa de um nome, isso todos concordam; ela também precisa, contudo, de muitas outras coisas para crescer como gente, e quem lhes dá essas coisas merece ser considerado pai/mãe da mesma.

Para que se considere alguém parente, é preciso partilhar e ter como recíproco uma série de bens, alguns citados por Caixa: o amor, o afeto, o viver, e a consideração. A comida, fundamental para “criar” alguém, tem, no entanto, que vir associada ao afeto, já que a progenitora “dá o comer”, mas parece que somente isso não dá o direto de ser considerada a mãe; o parentesco exige a permanência do dar, que, no caso de Caixa, não se centra somente na substância (a comida) em si, mas deve ser conjugada com a própria intenção que acompanha o dar: o mana110. Segundo Sarti (1996), esta rede, que se estende também na vizinhança, é, assim, reafirmada pela “moral da reciprocidade”, pautada pelas obrigações de dar, receber e retribuir.

A comensalidade pode criar parentalidade, como vemos no caso em que as crianças passam mais e mais tempo com uma família, sendo alimentadas por essa, e passa a ser considerada parente. Não é, entretanto, apenas o morar junto, o comer juntos, que cria parentalidade. Uma criança pode ser criada por alguém sem tornar-se parente, pois o que importa, em última instância, é a “consideração” pela pessoa que o colocará no status de parente; esta consideração deverá ser recíproca, para que ela se torne um laço duradouro, permanente. Há forte diferença entre aquele que bota comida em casa e aquele que alimenta. A mãe considerada é aquela que alimenta, que faz o comer, e que dá carinho, afeto.

Neste sentido, vemos uma grande diferença entre criar ou gerar. Criar implica em alimentar o corpo, mas também alimentar o ser como um todo, dando-lhe aquilo de que precisa para ser uma pessoa: carinho, afeto, consideração. Gerar é apenas “butá no mundo”, um vínculo que pode significar pouco, caso o criador não reconheça a criatura. Mãe é uma capacidade de qualquer mulher, desde que se dedique a isso. Não é privilégio das que geram

“minino”.

110 Para Mauss & Hubert, (1971), "[...] A noção de mana como a de sagrado não é mais que, em última instância, uma espécie de categoria do pensamento coletivo que fundamenta seus juízos, que impõe uma classificação das coisas, separando umas e unindo outras, estabelecendo linhas de influência ou limites ao isolamento". (Mauss e Hubert,1971:33)

Se por um lado o parentesco pode ser analisado como uma troca em que não somente o dar e receber estarão em vigor, mas sim o modo com que se dá entra em jogo, poderíamos dizer que seria a própria “consideração”111 que faz a relação.

Todavia, se ainda parece ser possível o duplo parentesco, o que pareceu demasiado a uma da mulheres que criava seu filho é que a ela caiba ainda mais um laço de parentesco. Ao conversarmos sobre sua condição de mãe/avó, o duplo parentesco é levantado como possível entre ela e o neto:

Eu que criou o menino desde que era bebezinho. Ele é filho do meu filho mais moço, mas é como se fosse meu, porque eu que cuido.

Reclama, contudo, dizendo que a nora propôs que ela fosse também madrinha do menino. Achou demasiado o acúmulo de tantos vínculos com o menino:

E agora, eles estão querendo batizá o menino, porque ele ainda não tem madrinha. Agora, veja só Rita. A mãe dele quer me convidar pra ser a madrinha. Eu disse a ela que não, mas ela insiste, dizendo que se não der a mim, não vai dar a mais ninguém. Nós tamos num tira-teima. O menino tá grande já e eu não quero não ser a madrinha dele. Porque veja só: eu já sou a mãe, sou a avó, e ainda vou ser a madrinha... é muita coisa, não é não?!! Oxi, muita coisa com um minino só. Ela que escolha outra pessoa pra batizá, não é mesmo?!

O ato de batizar alguém que se cria como filho, sendo sua mãe, avó e madrinha, pareceu superar as expectativas de vínculos possíveis entre duas pessoas. Além de quebrar uma rede importante de relações no grupo, empobrece as referências importantes para o menino. Esse aspecto sim, quebraria um forte sustentáculo na vida da criança. Romperia a rede de apoio fundamental nas famílias de classe popular, que é o apadrinhamento.