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A criança no ser: (Des) Encontros entre corpo, idade, experiência e responsabilidade 116

2.1 “Fazer Minino”

3 A criança no ser: (Des) Encontros entre corpo, idade, experiência e responsabilidade 116

Criança? Criança em termos do quê, assim, Rita? Lúcia (40), moradora de Santo Amaro "Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando.” Guimarães Rosa

Em campo, as indagações sobre fases da vida eram recebidas com olhares pensativos, mas quase nunca sem respostas. De fato, paravam para pensar e para indagar-se sobre sua própria experiência e a experiência de filhos, pais, avós, e vizinhos, e buscavam falar sobre diferenças, semelhanças entre diferentes biografias e sobre o que pensavam ser a fase que viviam; ou seja, o vivido era também pensado (Peirano, 2001).

Aprendi, logo nas primeiras entrevistas, que, para falar de “mininos”, é preciso ter algum parâmetro, já que criança não é somente uma fase da vida, mas um estado do ser, o que pode ser tanto visto como uma boa característica em algumas situações, quanto servir de um tipo de insulto em outras. Lúcia me ensinou logo que, para falar sobre criança, é preciso saber em quais termos se fala. Criança em termos do quê? foi resposta dela no momento que perguntar questões sobre crianças. Foi esta pergunta que me deu uma direção do olhar analítico necessário naquele contexto, fazendo eu mesma pensar: crianças em termos do quê mesmo? Procurei, assim, em cada nova conversa e ou observação, encontrar o caminho para entrar em questões como essas com mais eficácia no campo, acatando a importância apontada por Briggs ([1986],1999:xiii), em Learning How to Ask “[...]adopted many features of the dialect, learned

some basics skills, became acquainted with the residents, and gained a sense of their

116 Parte deste tópico foi apresentado e publicado como Artigo na 26ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia, Goiânia, 2006 – GT: “Por uma Antropologia da Infância”, Coordenado por Benedito Rodrigues dos Santos (UCG) e Ângela Nunes (PINEB), sob o titulo A criança no ser: (Des) Encontros entre corpo, idade, experiência e responsabilidade em Comunidades periféricas de Recife.

background and presents concerns”117. Para o autor, fazemos uma série de erros quando estamos em campo, por não conhecermos o sistema de comunicação do grupo, ou os skills dos nativos. É preciso, portanto, tornar-se comunicativamente competente. Assim, perguntas que me faziam, foram sempre apropriadas para aprender sobre o grupo, tanto quanto o que faziam, e as respostas que me davam, mesmo quando a

resposta era o silêncio.

Muito embora considere que a classificação por grupos de idade seja um dado importante para reconhecer, sendo ela êmica, nesta pesquisa pareceu não muito funcional definir exatamente quais os grupos que existem. Assim, é preciso deixar claro que o foco nesse

capítulo será dado ao modo como enfatizam os períodos da vida, mais que tudo em termos de experiência, responsabilidade, sentimentos, relacionados com condições econômicas, relações de parentesco etc.. Darei especial atenção ao modo como entendem e vivem essa fase da vida e quais os significados atribuídos a ela.

Como já citado na introdução desse trabalho “Pirráia”118 ou “minino” são os termos usuais para se referirem a quem é ainda considerado criança, termos que se assemelham à expressão “criança”, mas parece se distinguirem desse. Apesar de haver utilizado o termo criança para iniciar conversas e perguntas ao grupo, depois de algum tempo foi ficando claro que “criança” é um termo mais genérico, que usam em determinadas ocasiões, mais especialmente quando falam com pessoas fora do grupo. “Pirráia” é um termo êmico, mais afetivo, usado para os próximos, e remete à uma série de aspectos diferenciados do “ser criança”. É um termo de chamamento. “Minino” parece se assemelhar ao termo “pirraia”, mas notei ser menos ligado ao afeto. Usa-se normalmente quando se quer falar genericamente, proferir xingamentos, ou quando se quer chamar alguém do grupo que não se recorda o nome.

117Para Briggs (1986: 07) "As variações nos dados recebidos vão desde a omissão da intenção do entrevistado, ou a falsificação do material, até sutis diferenças nos significados pragmáticos ou indexicais.” Assim, palavras com o mesmo conteúdo semântico podem ser ditas com um efeito totalmente distinto (como com humor, ironia, equívoco), em função das normas especiais aplicadas na interpretação de uma emissão ou de conjuntos metacomunicativos nativos, derivados de diferenças sociais dos objetivos interacionais dos participantes de uma conversação.

118Segundo o Minidicionário de Pernambuquês, elaborado por Bertrando Bernardino (2002), pirráia é o mesmo que pirralho. O termo se refere, segundo o Novo Dicionário Aurélio (1986) a: 1) menino pequeno; criança, guri; 2) Indivíduo de baixa estatura. Entre os performers, têm um significado particular, além de menino pequeno.

Ninha: uma pirráia tocando no Eco da Periferia

Também para exclamações do tipo: Eita minino porreta, ou oxi, que minino mais pirangueiro. Esta diferenciação nos termos parece vir da capacidade que têm de cruzar vários mundos ao mesmo tempo, lidando com diferentes universos de fala. Foi preciso aprender a usá-los e perceber em qual contexto seriam apropriados.

Mas o que suas experiências e suas falas sobre infância expressam? Quais as coisas que são mais freqüentes em suas conversas? Quais seus temas?

Um rap produzido por duas garotas para o CD Ato Periférico119 teve como tema:

Criança, o que é ser criança? No rap elas mesmas respondem, e a reposta se vincula mais com

a política nacional da criança, do que com o que elas entendem e vivenciam no cotidiano. É apenas mais um elemento dessa vida sem esperança, sofrida e desesperadora? Será que é isso que merecemos? – não, pois nós somos o futuro desse mundo obscuro, que nos interrompe de vê aos montes os nossos direitos. Direitos de viver, de sonhar, de crescer e estudar. Por isso que estamos aqui hoje fazendo um ato periférico para dizer que nunca vamos nos calar, nos calar, nos calar....

Quando a compositora fez a música, estávamos muito próximas, pois além de ser ela mesma dançarina desde os seis anos de idade, é mãe de duas das crianças nas quais prestei especial atenção. Ela sempre apontava como eram importantes os direitos das crianças, mas também salientava o que ela mesma entende sobre o que é ser criança quando está interagindo com pessoas fora do seu bairro. Chamaram a atenção dois aspectos na letra da música: o primeiro era que ela mesma tinha me dito que desde os cinco anos de idade deixou de ser criança, já que trabalhava para se sustentar, e na letra da música ela se coloca como criança. O segundo tema foi a relação da letra com as políticas públicas globalizadas sobre a infância – a infância como direito. Havia nessa letra uma forte reflexividade do que está em pauta nas políticas públicas mundiais, bastante globalizadas especialmente por instituições como UNICEF120, ONU etc., e que chegam a essas pelos discursos das políticas públicas e pelo trabalho de ONGs que atuam no bairro, como era o caso de Rosas Urbanas e Pé no Chão. Então, criança, na letra do rap, não era alguém, mas um elemento dessa vida sem esperança,

119Durante o trabalho de campo, um projeto de produção do CD com raps produzidos por crianças e adolescentes estava em pleno desenvolvimento, junto a oficina de DJ oferecida por DJ Big. Participei do processo de composição, acompanhando o processo criativo dos garotos e filmando partes das oficinas.

120 A definição da Unicef, por exemplo, está associada ao abandono que crianças pobres sofrem no mundo inteiro.“Milhões de crianças caminham pela vida em situação de pobreza, abandono, sem acesso à educação, desnutridas, discriminadas, negligenciadas e vulneráveis. Para elas, a vida é uma luta diária pela sobrevivência. Vivendo em centros urbanos ou em povoados rurais remotos, correm o risco de perder sua infancia1– sem acesso a serviços essenciais, como hospitais e escolas, sem a proteção da família e da comunidade, freqüentemente expostas à exploração e aos abusos. Para essas crianças, a infância como o tempo de crescer, aprender, brincar e sentir segurança, não tem, na realidade, nenhum significado” (Relatório 2006 da UNICEF).

sofrida e desesperadora. Tal concepção parece baseada especialmente nos direitos universais,

como aponta Caldeira (2002), e, nesse caso, defendendo uma infância universalista, sem esquecer das especifidades locais.

Além dessa reflexividade, era possível observar no discurso deles, como propõe Minks (2006:2), níveis de sobreposição (overlappings) de intertextualidade, que são constituídas de diferentes discursos em diferentes meios, do contato com diferentes atores sociais com quem interagem nas suas vidas cotidianas. Usando a definição de intertextualidade feita por Richard Bauman e Charles Briggs (1990), Amanda Minks (2006) propõe que intertextualidade não é um propriedade formal de textos fixados, mas um processo comunicativo criando relação entre

corpus de discursos.

No campo, quando falavam de criança, apontavam para aspectos da sociedade, da vida comunitária, do que entendem do discurso vigente estatal (pelos agentes sociais estatais e pelas políticas públicas em relação ao que se espera e se quer para as crianças) ou não governamental, dos meios de comunicação, especialmente rádio e televisão, do modo como vêem a si mesmas, dentro do próprio grupo, de como entendem a si mesmas dentro de suas experiências de vida. Suas respostas não eram repetições de idéias prontas, mas overlappings de mundos e discursos distintos, incluindo sua própria experiência de vida. Este capítulo pretende analisar como os “pirráias” usam a performance para elaborar este overlapping, para mediar entre a definição mais tradicional ou comunitária de “ser minino”, e idéias mais globalizantes da infância e seus direitos. Veremos, a seguir, alguns aspectos que mostram diferentes sentidos, e como a performance parece surgir como um campo onde essas concepções se friccionam e, ao mesmo tempo, as expõe.

3.1 (Des) Encontros entre idade, tamanho, responsabilidade,