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Ato 2 : Atos e falas na conquista do filho (dos outros)

2.1 “Fazer Minino”

2.5 Casos vividos narrados

2.5.2 Ato 2 : Atos e falas na conquista do filho (dos outros)

Se por um lado as crianças citadas anteriormente narram a não-construção da relação de maternidade/paternidade com os genitores, dadas as circunstâncias do desenrolar da história do grupo, por outro, como já nos alerta Caixa, é o modo como os que não tinham a obrigação de criá-los constróem esse vínculo que lhes confere o direito de serem chamados de pai/mãe.

Para Caixa, os parentes mais velhos mostraram-se mais dispostos a criá-lo. Observei em campo que eram justamente as pessoas acima de 35 anos (idade em que começam a

tornarem-se avós) que investem numa maternidade/paternidade de crianças recém-nascidas, especialmente quando se refere a filhos de parentes, ou de vizinhos. Mesmo tendo criado vários filhos, parece comum continuarem a exercer a maternidade/paternidade cuidando/criando os filhos dos filhos, ou filhos de parentes próximos, mas também de vizinhos ou pessoas próximas. Veremos que os motivos podem ser variados, e parece bastante comum acontecer quando a criança é um primogênito, filho de “mulher nova”, solteira, ou de “casal novo”. O interessante aqui, entretanto, é que o enfoque comum não é dado no “abandono da criança pela mãe”, como no primeiro caso citado, mas na dinâmica por meio da qual a criança é disputada por um ou mais possíveis pais.

Ao contrário do que se pode observar em trabalhos que focam na desestruturação da família de classes populares ou no abandono da criança (Violante, 1983; Guirardo, 1986; Marin, 1991)112, aqui o que parece mais evidente é que a família, especialmente os membros mais velhos do grupo, fazem uma espécie de investimento em ter filhos de filhos, filhos de parentes e de vizinhos, criando-os próximos e algumas vezes como seus próprios filhos. Para tanto, é preciso conquistar, gradativamente, o lugar de mãe/pai: ter a “consideração” da criança, que permite status até mais alto do que aquele conferido aos genitores. Sendo o papel de mãe/pai de muito esforço, é também fonte de forte prestígio. Ofertar uma criança, vê-la desejada pelos demais, é aumentar esse prestígio. Conquistar o lugar de mãe de uma criança que não nasceu do seu ventre, ser mãe de consideração, oferece a essa ainda mais prestígio, pois ela não tinha a obrigação de sê-lo.

Por diversas ocasiões pude participar de situações em que, notadamente, havia um investimento em atrair a criança para o grupo doméstico (no caso de não morarem juntos), ou ainda de serem chamados de pais por esses. Essa conquista vem associada a uma ambigüidade, na qual o ofertar e o conquistar fazem parte de um jogo familiar que envolve muitos fatores, entre eles econômicos, afetivos, de poder e autoridade, de conflitos, de troca, e ainda de prestígio.

O evento a seguir ajuda-nos a entender a dinâmica da conquista das crianças como consideração".

112 Segundo Violante (1983:44), "As famílias são em geral, desorganizadas, principalmente pela ausência do pai - sobretudo por falecimento ou alcoolismo, abandono, prisão, uso de tóxico; ou pela ausência da mãe - por abandono, falecimento, prostituição, psicose, prisão; ou ambos - pelas mesmas razões ou combinações entre elas". Goldani (1982) nos alerta que o fato que tem alimentado o mito da desorganização familiar entre os pobres é a variedade de arranjos domésticos dos grupos populares nos quais sobressai a presença de famílias monoparentais, sobretudo mulher com filhos.

filhos, mostrando a tensão entre ofertar e conquistar a maternidade/paternidade, considerar e ser considerado, expondo uma jocosidade à ambigüidade que se instaura nessa conquista. São casos particulares, mas que representam outras histórias encontradas no campo. Quase final de novembro de 2006 (26/11) e todos aguardavam os atores do grupo Pé no Chão, que voltariam de turnê na França. Vários familiares estavam no aeroporto Guararapes, esperando ansiosos a chegada dos dançarinos que tinham viajado para uma temporada no exterior. Assim que cheguei ao aeroporto, alguns dos familiares me receberam com calorosos cumprimentos. A mãe de um dos atores veio em minha direção assim que me viu, e logo em seguida Vilma acenou ao longe, chegando minutos depois com seu bebê de dois meses no colo. Trouxe a menina e colocando-a no meu colo, disse, sorrindo: pega aí tua filha. Ri do comentário, e topei o jogo. Disse que ia pegar minha filha. Algumas pessoas se aproximaram perguntando se a menina era minha, em tom jocoso. Respondi, nesse caso, que se fosse minha certamente iria ser muito mais branquinha, dada a diferença de cor de pele da mãe e a minha, e a do pai e do meu namorado. Tentei associar a maternidade aos aspectos biológicos, para observar qual reação surgiria. Nenhum comentário surgiu.

Depois de Valda brincar com a possibilidade de sua filha ser minha, comentou, agora um pouco apreensiva:

Oxi, Tia Zenaide não larga a menina; nem deixa no meu colo. Só me deu ela porque eu disse que era pra mostrar pra tu. [Acenei com a cabeça, mostrando curiosidade e perguntei o por quê]: – Sei não. Mas nem deixa e menina comigo... oxi...

Brinquei comentando que talvez a tia quisesse a menina para ela, e Valda riu, acenando afirmativamente com a cabeça. Mais uns minutos com o bebê no colo, e Dita, uma outra adolescente, e seu filho de nove meses se aproximaram. Entreguei a menina a Valda, e fui cumprimentar outras pessoas. Depois de algumas voltas na verdadeira multidão de familiares dos atores, encontrei Zenaide, que agora tinha novamente a filha de Valda no colo. Ao me aproximar dela, mostrou-me a menina e disse: minha filha, ó. Ri, e entrei no jogo – linda sua

filha. Valda estava muito próximo e olhava, rindo, mas ao mesmo tempo aproximava-se de nós

de vez em quando, na tentativa frustrada de tirar a menina da tia. Parecia um pouco tensa pelo fato de que a ajuda da tia em segurar a menina inviabilizava-a agora de circular com sua filha. Olhava apreensiva quando a tia se afirmava como mãe à sua filha e aos demais.

Ao mesmo tempo que tal dinâmica auxiliaria a jovem Valda a criar sua filha, já que teria assim onde deixar a menina sem precisar dispor de um recurso financeiro para tal, parecia que ter um filho em meio a esse grupo exigia saber partilhar a maternidade com algumas das

mulheres. Ainda assim, Valda parecia preocupada com a dimensão que esse aspecto poderia tomar naquele momento. Zenaide, pegando minha mão, pediu que eu tocasse seu seio, dizendo – toca aqui e vê como já tá duro de leite?! Dizia em tom sério, mas era óbvia sua intenção de brincar, quiçá com seu próprio desejo. Quando fui eu a dizer que a menina era sua filha à alguém que chegou perto, ela afirmou que não poderia ter uma filha com a idade que tem – já

não poderia113. No entanto, era evidente que queria que a menina a chamasse de mãe, pois repetia várias vezes: olha a mainha; dorme aqui no colo da mainha, puxando a menina para o seu colo. Valda tinha acesso algumas vezes à criança, mas a grande parte do tempo que estivemos lá, era no colo de Zenaide que a menina repousava. Em alguns momentos, senti Vilma relaxada, conversando abertamente com outras pessoas, aproveitando o fato de que não tinha que estar com o bebê no colo; em outros momentos, a vi rondando a tia, parecendo querer ter a menina novamente consigo. Zenaide me disse que quando ela está só, em casa, no fim de semana, vai pegar a menina para ficar com ela. Aqui não parecia querer dizer que ia pedir à sobrinha a licença para ter a menina consigo, mas que ia buscar a menina para estar com ela enquanto estava desocupada em casa. Claro que deve ter o consentimento da sobrinha para isso, mas não pude deixar de notar a tensão existente entre as duas, cada qual querendo manter a menina junto de si.

Uma situação parecida presenciei com a genitora de Valda, que agora, cuidando da menina quase diariamente para a filha estudar, apresentava a filha de sua filha como sua própria filha. Várias vezes a vi na calçada, com a menina, apresentando-a a pessoas que passavam como sua filha. Um dia me ofereceu a menina e, quando aceitei, disse claramente: eu

nunca que ia deixar tu levar a minha filhinha. Aqui parece fundamental lembrar que Valda

fora criada como filha de sua avó e que sua mãe era como “inimiga” para ela. Agora, com a oportunidade de cuidar da filha de sua filha como sua própria filha, cuidar da menina é também aqui um modo de reatar relações com a própria filha, ou quiçá, conquistar pela primeira vez a posição de mãe114. Também parece importante lembrar que a própria Valda, tendo sido traída pelo namorado, passou a gradativamente conquistar o filho nascido dessa traição, disputando com a mãe da criança. Contou-me que, numa festa de aniversário, o menino se agarrou em suas pernas e a chamou de mãe na presença da genitora, o que gerou grande confusão. Comentou

113 Num outro evento, Zenaide confessou que já entrava entrando na menopausa – “as regras não vinham mais”. Normalmente não era comum encontrar mulheres com mais de 37 anos grávidas, como parece ser uma tendência em outros grupos, como entre intelectuais, que adiam a maternidade para depois dos trinta anos de idade.

comigo que

Ela [a genitora] tem que ficar ligada mesmo, porque vai perder o lugar de mãe prá mim mesmo [risos]. Porque eu quem dou amor pro minino. Ela só quer fazer festa por aí.

E assim realmente aconteceu. Nos últimos meses que estive em campo, Valda se separou do pai do menino, e foi com ela, agora sua mãe, que o menino ficou.

O investimento deve ser constante. Numa entrevista com Zenaide (37), mãe de duas das dançarinas do grupo, ela contou como sua mãe fazia quando chegava em sua casa:

Mainha vinha aqui na casa, e dizia prás menina [as duas filhas de Zenaide]: “bença prá mainha”. Ela era danada. Batia aqui todo dia, e pedia a bençá das menina. Eu as vezes dizia a ela: “bora pra lá que a mãe aqui sô eu...” mas elas foram acostumando assim – ela a mainha e eu a Zenaide, e de vez em quando eu a mainha.

Conversando com as duas garotas, uma de dez e outra de doze anos, a mais velha das meninas disse:

D - Eu chamo a minha avó de mainha. R - E por quê?

D - Sei lá. Porque ela cuido da gente. Assim: ela vinha aqui e dizia: bençá pra mainha. E ai a gente foi acostumando assim.

R - E como tu chamas a Zenaide?

D - Às vezes de mainha, às vezes de Zenaide

R - E tu não te confunde com as duas? Quando estão as duas, como tu chama elas? D - Elas sabem quando é uma e quando é a outra pela modo como eu chamo.

Na fala de Zenaide, vemos que parecia impossível proibir ou pedir à mãe que não pedisse benção às suas filhas como sua mainha. Tanto parece uma prática impregnada na família, como veremos a seguir, quanto parece que o lugar central dos avós, sua importância na sobrevivência do grupo, não podem ser superados por um simples esforço de tentar impedir a mãe de conquistar o status de mãe. Aqui, poderíamos dizer que há uma relação de poder, mas penso que ela se torna insignificante quando vemos a dinâmica do grupo. Não é o poder da avó que impõe o chamamento, mas a conquista diária, o esforço repetitivo que, em última instância, cria o hábito, e criando o hábito, pode produzir a relação como tal. Visivelmente, não era o poder que constrói a prática de chamar, mas a prática de chamar é que construía o poder da avó.

Claro que, no caso em questão, é importante destacar a variedade de significados que tal dito pode ter – chamar a avó de mainha pode significar:

1 considerar/assumir a mesma como mãe/pai, renegando a gestação e o parto como instauradores da maternidade, como nos dois casos que iniciam a

segunda parte desse capítulo;

2 ou pode significar, como parece ser no caso citado agora, uma expansão do campo semântico, no qual o chamamento não implicaria necessariamente em escolha e sim numa possibilidade sempre presente, mas ainda não efetivada, como acontecera com o primeiro filho de Zenaide, que de fato adotara a avó como mãe.

O modo como as filhas de Zenaide chamam a avó de mãe, no entanto, parece significativamente diferente do caso do seu irmão mais velho. Meses antes dessa conversa com Zenaide, sua sobrinha disse que tanto o filho mais velho de Zenaide, falecido há alguns anos, quanto ela própria tinham sido criados pela avó, e que consideravam essa a mãe deles. Muito embora Zenaide negasse que “dera” o filho para a mãe, a sobrinha disse que o menino considerava a avó sua mãe, e que mesmo quando a mãe tinha sua casa própria, era na casa da avó que ele queria ficar porque essa o “criô e deu o comer”.

As frases –“ela é minha filha”, “tua filha”, “não é minha filha”, “é filha da minha

sobrinha”, “minha filhinha”, “leva a menina pra ti”, “não vou deixar tu levar a minha filhinha”– abertas ao significado, parecem prometer algo e, prometendo, criar possibilidades

de realizá-lo. A fala e os atos, como vimos, funcionavam nos casos referidos dentro de um jogo dúbio, ambíguo. Se por um lado a mãe “oferece” sua filha às demais mulheres fazendo com que as mesmas desejem, essa parece, ao mesmo tempo, temer que a possibilidade se concretize. Por outro lado, se as mulheres investem para conquistar o lugar de mãe para as crianças recém-nascidas, afirmarem insistentemente que a criança é sua filha/o, também negam tal possibilidade tão logo pudesse se tornar uma verdade para os presentes. A ambigüidade do jogo (play) se torna evidente, e pode fugir do controle cada vez que se sai dela. Certamente não se pode deixar de olhar essa jocosa oferta/conquista como um vínculo entre os adultos, mas também não se pode negar que esse jogo abre possibilidades ao evento de se concretizar, especialmente tendo em vista os inúmeros casos em que uma criança chama e considera “mainha” mulheres próximas da família. Embora se considere que esse é um modo de brincar com a fluidez dos papéis, e sirva para firmar vínculos entre os adultos, como certamente o faz, a criança, nesse caso, passa a ser, ao mesmo tempo, um fim e um meio relacional.

2.5.3 Ato 3 - Amor de mãe, amor de filho – resignações dos