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Capítulo 1 Raízes político-institucionais do PI (1962-2002)

1.1 Partido Democrata Cristão

1.1.3 Advento do PDC

Pérez Antón (1987, p. 19-20) argumenta que um fator decisivo para o desenlace da mudança de União Cívica para PDC foi o impacto da revolução cubana de 1959 sobre a Juventude Democrata Cristã (JDC), então uma das organizações mais ativas da União Cívica. Esta corrente passou a demandar modificações no programa do partido, com vistas a contemplar a exigência de reformas sociais efetivas, o que, obviamente, encontrava resistência nos antigos militantes.

As polêmicas internas alcançaram grau crescente de contestação e, em 1961, a JDC foi afastada da União Cívica, em uma tentativa da direção do partido, formada por lideranças que exerciam o poder há muitos anos, de manter o controle e evitar a alteração programática.

No mesmo período, havia outro setor interno, o Movimento Social Cristão – liderado por Juan Pablo Terra e nucleado em torno do movimento fundado pelo Padre Lebret (ILHA LÓPEZ, 2016, p. 17) –, que apresentava reivindicações semelhantes, embora demandadas de modo menos radical. Ainda assim, ele proclama em seu Manifesto, datado de 1961:

[...] la necesidad de lograr la inmediata y radical superación de estructuras capitalistas, que nacidas de un materialismo ateo y anticristiano, someten a

financiaria o desenvolvimento industrial nacional e de uma pretensa substituição de importações” (COELHO, 2002, p. 68, nota 65).

24 Ferreira (2011, p. 76-77), por exemplo, afirma que a linguagem cepalina se encontrava difusa no debate político, de modo a ser possível encontrar artigo de Vivian Trías (1922-1980), então líder do PS, datado de 1962, em que há muitos pontos em comum com a CEPAL. No Uruguai, a principal experiência do gênero foi a CIDE (Comissão de Investimento e Desenvolvimento Econômico), criada em 1960. Mais detalhes, ver: Garcé (2002).

los trabajadores a la injusticia y mantienen a inmensas masas de hombres y pueblos enteros en la miseria moral y material” (MOVIMENTO SOCIAL CRISTÃO, 1961 apud ILHA LÓPEZ, 2016, p. 20-21).

Em solidariedade à JDC, este grupo também deixou os quadros da União Cívica (PÉREZ ANTÓN, 1987, p. 19-20).

É neste contexto de cisão interna, com sua direção histórica isolada e com o programa contestado principalmente pelos militantes mais jovens que, em 25 de fevereiro de 1962, a União Cívica passou a se denominar Partido Democrata Cristão (PDC). Nessa oportunidade recebeu a adesão do Movimento Democrata Cristão, uma organização extrapartidária, integrada por militantes provenientes dos partidos tradicionais e por outros sem militância prévia (ZUBILLAGA, 1985, p. 73-74).

Bottinelli (1993, p. 121) pondera que, do ponto de vista formal, a troca de denominação implicava a constituição de um novo partido, pois não havia a previsão legal de mudança de lema25 já registrado, sendo exigida a tramitação de novo registro na Corte Eleitoral. O autor tem razão, pois, no início dos anos 1980, sem que o PDC deixasse de existir, foi (re)criada a União Cívica, sob a liderança de quadros que haviam militado na entidade homônima.

O líder da mudança foi Américo Plá Rodriguez (1919-2008)26 (ILHA LÓPEZ, 2014, p. 20; 2016, p. 13). Poucos anos antes, em um livro em que defendia os princípios da democracia-cristã, apresentou as características que a distingue dos demais partidos: ser autenticamente democrática; possuir inspiração cristã; buscar a justiça social, com objetivos próprios; e procurar a cooperação internacional (PLÁ RODRIGUEZ, 1960, p. 20).

Em um primeiro momento, a mudança de nome buscava aproveitar o prestigio da democracia-cristã europeia e se orientava pelo reformismo de alguns desses partidos, especialmente o italiano, que protagonizava a “abertura à esquerda”, bem como o sucesso que PDCs latino-americanos vinham alcançando, caso do chileno e

25 Conforme a legislação uruguaia, o que já foi comentado na Introdução, lema é a denominação oficial com a qual um partido ou uma aliança de partidos concorre em uma eleição, constituindo “patrimônio” essencial de uma instituição partidária. E sublema é o equivalente para as frações partidárias (URUGUAY. Ley no 7.812, art. 9º).

26 Advogado trabalhista de prestígio internacional, professor da Faculdade de Direito da Udelar, elegeu-se deputado em 1962 pelo PDC e foi suplente de senador pela FA em 1971. Militava há muito tempo na União Cívica, mas não estava vinculado às lideranças conservadoras. Detalhes sobre sua concepção da democracia-cristã, ver: Ilha López (2016, p. 13-17).

do COPEI venezuelano27 (PÉREZ ANTÓN, 1987, p. 22). Ainda conforme a mesma fonte (1987, p. 20), “no es un mero cambio de nombre, es otra cosa y sobre todo quiere ser una transformación radical, drástica”.

No entanto, na primeira experiência nas urnas – a eleição de 1962 –, a mudança implicou perda de votos em relação ao desempenho obtido no pleito anterior, o de 1958. Embora a representação parlamentar tenha permanecido a mesma (três deputados e um senador), ele caiu de 3,74% dos votos válidos para 3,05%. O PDC perdeu o posto de terceiro partido mais votado que a União Cívica havia assegurado em 1958, tendo sido ultrapassado pela coligação liderada pelo PCU (URUGUAY. CORTE ELECTORAL, 2017p; 2017q).

Na avaliação de Solari (1991, p. 166), realizada logo após o pleito, em um texto clássico, chamado “Réquiem para la izquierda”:

aparentemente el Partido Demócrata Cristiano no ha ofrecido una alternativa real ni aún al electorado limitado que por su propia naturaleza tiende a dirigirse. Se esforzó en definir una política colocada un poco más a la izquierda que la política tradicional de la Unión Cívica, pero, en este esfuerzo, en lugar de obtener electores los perdió. […] a su izquierda, porque una parte de la Unión Cívica exigía ir mucho más hacia la izquierda todavía y no estuvo de ningún modo conforme con la solución del Partido Demócrata Cristiano y se abstuvo o voto por otros partidos. Los perdió a su derecha, porque una parte del electorado de la Unión Cívica, eminentemente conservador, probablemente temió esa apertura hacia la izquierda, por mínima que ella haya sido.

O relatório do IEPAL, publicado em 1965, sintetiza a diferença entre os projetos políticos do PDC em relação ao da União Cívica: de núcleo de elite, de origem burguesa e culta, que podia ocasionalmente servir de árbitro entre as divisões dos dois partidos tradicionais, ele parecia estar se transformando em um modesto partido mais em contato com o real, sendo composto por elementos jovens, universitários e populares (IEPAL, 1965, p. 72).

O diagnóstico encontra respaldo nos dizeres do Movimento Social Cristão, em 1960 – antes do surgimento do PDC, portanto –, ao demandar que: “la acción del Partido se oriente decididamente hacia la conquista del poder [...]. Será superado así el estilo de una actuación que se limita a la obtención de una representación

27 COPEI havia participado da ação que levara à queda do ditador Marcos Pérez Jimenez (1914- 2001), em 1958, e elegeria, no final dos anos 1960, o Presidente Rafael Caldera (1916-2009). Já o PDC chileno vinha em ascensão política e alcançaria a presidência em 1964, por meio de Eduardo Frei Montalva (1911-1982), proponente da “revolução em liberdade”, que influenciaria os debates do PDC uruguaio em sua nova orientação (MAINWARING; SCULLY, 2010; ILHA LÓPEZ, 2016).

parlamentaria con valor de testimonio únicamente” (MOVIMENTO SOCIAL CRISTÃO, 1960 apud ILHA LÓPEZ, 2016, p. 111).

Como afirma Ilha Pérez (2016, p. 23), o esvaziamento do poder das antigas lideranças da União Cívica e a rápida substituição foram possíveis porque a militância se tornou protagonista, substituindo os adeptos dos tempos da estrutura vertical, que não participavam efetivamente do partido e deixavam às autoridades formais a tomada das decisões sobre o rumo da legenda. A ideia dos novos militantes era transformar o velho partido de quadros em um partido de massas, no sentido atribuído por Duverger (1987), que trabalharia com mobilização permanente dos filiados e forte presença no mundo sindical, estudantil e cultural.

Apesar do desempenho ruim em 1962, o fato é que, naquele período, a mudança institucional ainda estava em processo. As antigas lideranças haviam cedido um pouco, a começar por adotar um novo lema, mas persistiam na diretoria, enquanto os militantes mais jovens continuavam a pressionar por uma renovação mais intensa. Por isso, é uma época chamada de fundacional e de conflito interno por Ilha López (2016).

Como parte desse processo, lideranças históricas – como Juan Vicente Chiarino (1901-1989), que foi eleito deputado em 1946, senador em 1950 e em 1954; e Horácio Terra Arocena (1894-1985), constituinte em 1933, deputado em 1946 e em 1955, pai de Juan Pablo Terra – romperam com o nascente PDC em 1964 e criaram o Movimento Cívico Cristão, que funcionaria como uma espécie de “velha União Cívica”28.

Essas lideranças históricas foram substituídas por militantes recentes, o que se deu em tal intensidade que alguns dos novos dirigentes do PDC sequer haviam atuado na União Cívica, que existia há até dois anos. A reforçar, o Movimento Social Cristão e diversos membros da JDC ingressaram no PDC, ou seja, voltaram a atuar em um partido de inspiração católica.

Desse modo, em 1964, o PDC ainda procurava se despir da tradição conservadora que caracterizara por tanto tempo a União Cívica e se via forçado a se apresentar aos cidadãos. Ele o fez ao se dizer defensor de mudanças sociais e

28 No ano seguinte, Venâncio Flores, então único senador do PDC, também deixou o partido e passou a se vincular ao Movimento Cívico Cristão, partido que se apresentou às urnas em 1966, mas não alcançou representação (PÉREZ ANTÓN, 1987, p. 28). No pleito de 1971, o grupo utilizou a legenda União Radical Cristã, novamente sem eleger bancada. No pós-ditadura, resgatou o lema União Cívica, atuante ainda hoje, o que será comentado na seção 1.3.2.

econômicas, sem necessariamente ser marxista ou adepto da revolução, como afirma um opúsculo, denominado “¿Qué es la Democracia Cristiana?”:

El PDC es todo lo contrario a un partido conservador. Tiene profundas discrepancias con el orden económico y social existente. Se opone al capitalismo, al que considera un régimen caduco cuyas estructuras crujen cada vez más. Considera injusta la primacía del capital sobre el trabajo y la ausencia de participación de los trabajadores en la dirección de los beneficios de las empresas […]. También se opone el PDC al marxismo, evolucionista o violento. Discrepa con su lucha de clases que lleva inevitablemente al odio, con el cual no se puede construir ningún orden nuevo verdaderamente durable y humano (PDC, 1964 apud ILHA LÓPEZ, 2016, p. 27).

Do ponto de vista programático, o PDC demarca novas perspectivas, ao defender que:

la reforma económica y social comienza a verse menos como una cuestión de planeamiento y más en términos de confrontación entre sectores beneficiados por el estado de cosas existente y sectores a los que beneficiaría un cambio en ese estado de cosas. De esta manera se insinúa un concepto que va a ser asumido un poco más adelante por el partido: el concepto de revolución económico-social (PÉREZ ANTÓN, 1987, p. 26).

A nova linha política do PDC, aprovada na Convenção Nacional, realizada em 27 e 28 de junho de 1964, introduziu a noção de “revolução em liberdade”, inspirada no seu congênere chileno, liderado por Eduardo Frei Montalva29.

Defensor da democracia representativa, pensada como exercício da política com liberdade e respeito à pessoa humana, e de seus procedimentos tradicionais (eleições, parlamento etc.), para o PDC esta revolução implicava rápidas e profundas modificações sociais e econômicas, realizadas sem violência, a partir do próprio Estado.

Assim, a primeira etapa do processo revolucionário exigia a tomada de poder por meio das urnas, onde se encaixa a possibilidade de formação de uma frente de partidos progressistas, como a que será proposta por Terra em 1968. A seguir, vinha a etapa propriamente de transformação, realizada por meio de um Estado popular, voltado aos interesses do povo (ILHA LÓPEZ, 2016, p. 57).

Nesse diapasão, o PDC propunha o “socialismo comunitário” ou “autogestionário”, assim denominado especialmente por não estar vinculado ao

29 A influência das reflexões, dos resultados e das ambiguidades da democracia-cristã chilena no PDC uruguaio é analisada por Alonso (2017), especialmente nos capítulos 3 e 4.

Estado (e à experiência soviética). Ele afirma que as raízes dessa proposta figuram nas primeiras comunidades cristãs, no socialismo não marxista ou utópico, bem como na filosofia de Emmanuel Mounier (1905-1950) e de Erich Fromm (1900- 1980), na qual prevalece a ideia de conviver compartilhando e de colocar em comum os direitos sobre muitas coisas, substituindo a noção de propriedade pela de fraternidade.

Segundo Cabral (2006, p. 59), o PDC adotou um posicionamento crescentemente mais esquerdista ao longo da década de 1960, de modo a propor, em 1970, uma “ruptura frontal com o capitalismo; as grandes desigualdades – concentração da propriedade dos capitalistas em detrimento das massas – a condução autocrática oligárquica da economia, a sociedade inteiramente classista e inteiramente dependente”30.

Já em 1965, a JDC reafirmava o compromisso com uma revolução pacífica, promovida por meio das instituições democráticas. Mas, ao mesmo tempo, considerava a possibilidade de uso de meios pacíficos ilegais e, finalmente, da violência, caso o regime travasse a perspectiva de transformação via poder conquistado na urna e o uso dos meios legais (ILHA LÓPEZ, 2016, p. 153-154).

Pode-se dizer que, paulatinamente, a posição do PDC sofreu inflexões. Ao surgir em 1962, ele defendia um caminho próprio, próximo ao terceirismo, a partir do qual rejeitava o liberalismo, mas também o marxismo. Logo, qualquer aliança com PCU, PS ou com as coligações que estes formassem, estava descartada. Em 1965, as diferenças já não eram tão radicais e a partipação em eventos com legendas marxistas se tornam possíveis, conforme a pauta em questão (ALONSO, 2017, p. 167). No ano seguinte, Plá Rodriguez, até então o principal nome da legenda, não conseguiu se eleger senador e perdeu espaço no partido, o qual passou a ser ocupado por Juan Pablo Terra, que vinha despontando como uma liderança influente no PDC e alcançou um posto institucional de destaque, já que se elegeu deputado. Terra tinha uma orientação mais à esquerda do que Plá Rodriguez e a sua liderança foi chave para aumentar a aproximação com outros setores de esquerda (ALONSO, 2017, p. 169).

A este cenário podem ser acrescentadas as ambiguidades que a experiência de ser governo apresentava ao PDC chileno, importante referência ao equivalente

30 Propostas programáticas do PDC, como o plano de governo de 1966 e o programa de princípios de 1970, são analisadas e reproduzidas por Failache (2014) e por Ilha López (2016).

do Uruguai. Na fase final de seu mandato, entre 1967 e 1970, a presidência de Eduardo Frei deixou de cumprir ou negligenciou algumas das propostas da democracia-cristã, assumiu um tom cada vez mais comedido e paulatino na aplicação do projeto “revolução em liberdade”, e adotou ações repressivas contra mobilizações sociais e políticas. Como resultado, a ala esquerda do PDC rompeu com o partido, organizou-se como Movimento de Ação Popular Unitária (MAPU) e participou da criação da Unidade Popular, ao lado de comunistas e socialistas, o que “implicó [...] el desplazamiento hacia el campo socialista de sectores cristianos, lo que rompió con la idea del divorcio irreconciliable entre cristianismo y socialismo marxista” (ALONSO, 2017, p. 182).

Essas questões repercutiram no PDC uruguaio. Este, apesar de politicamente comprometido com o governo Frei e as decisões do grupo preponderante do PDC chileno – como a de não compor com os marxistas, ter candidatura própria e ocupar o centro do espectro político –, estava mais próximo em termos programáticos e estratégicos aos setores que ambicionavam aproximar a democracia-cristã do socialismo e substituir o capitalismo (ALONSO, 2017, p. 180-197).

Nesse contexto, em 23 de junho de 1968, o deputado Juan Pablo Terra, em meio a uma escalada de autoritarismo do governo que levou ao Golpe de 1973, fez um chamamento por rádio e televisão à união das forças progressistas. Este se tornou o mais direto embrião da formação da Frente Ampla, ocorrida três anos depois31. O PDC reiterou esse compromisso e o convite aos demais em diversas oportunidades, com destaque a um, emitido pela Juventude do partido, em setembro de 1970, chamado “Frente Ampla para unir o povo” (ILHA LÓPEZ, 2014, p. 13-14).

A participação do PDC na FA e seus passos posteriores – como a adesão à coligação Novo Espaço em 1989 e o retorno à FA em 1994, onde se encontra até hoje – serão acompanhados na sequência do texto.

31 Ilha López (2014) destaca o papel do PDC na criação da FA. Para a análise da recepção inicialmente negativa que o chamamento de Terra mereceu dos grupos de esquerda, assim como dos desdobramentos que mudaram esta perspectiva e levaram à fundação da FA, ver: Ferreira (2011); Alonso (2017).