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Capítulo 1 Raízes político-institucionais do PI (1962-2002)

1.6 Das eleições de 1999 à vitória da FA em 2004

1.6.3 Vitória da FA nas eleições de 2004

Antes de passar à análise mais detalhada das peculiaridades, das características e dos impasses que envolvem o PI, é relevante indicar o contexto em que ele estreou nas urnas e que foi antecipado pelas movimentações ocorridas logo após o pleito de 1999.

Como já foi destacado, o acordo eleitoral entre EP-FA e NE foi fechado para o pleito de 2004, agregando a denominação Nova Maioria àquela anteriormente utilizada. Essa aliança alcançou a vitória já no primeiro turno, elegeu Tabaré Vázquez para Presidente, Nin Novoa para Vice, bem como obteve a maioria absoluta das cadeiras na Câmara e no Senado, o que não ocorria há mais de quatro décadas e, em teoria, permitiria ao grupo governar sem a necessidade de promover acordo com os demais partidos.

Para Buquet (2005a, p. 11, 26), apesar de essa eleição ter gerado mudanças de magnitude – como ser a primeira vez em que as legendas tradicionais não conquistaram a presidência e, desde 1966, a primeira oportunidade em que um competidor obteve maioria parlamentar –, na realidade ela foi o ponto de chegada de um processo gradual e persistente de crescimento eleitoral da FA. Logo, fechou um largo ciclo político.

Tabela 7 – Votos válidos nas eleições presidenciais e representação parlamentar por partido e por setor partidário (Uruguai, 2004)

Partido Pres./Senado (%)1 Câmara (N) Senado (N)2 Colorado 10,6 10 3 Foro Batllismo - 18 6 Batllismo Lista 15 - 15 5 Nacional 35,1 36 11 Herrerismo - 7 3 Aliança Nacional - 19 6 Correntada Wilsonista - 8 2 Desafio Nacional - 2 - EP-FA-NM3 51,7 52 17 Assembleia Uruguai (17,6) 8 3 PCU (6,1) 1 1 Partido Socialista (14,8) 11 2 Vertente Artiguista (8,8) 4 2 MPP[209] (29,2) 20 6 Aliança Progressista (8,0) 3 (1+1) Novo Espaço (7,7) 3 1

Liga Federal Frente-amplista[210] (0,2) 1 -

Congresso Frente-amplista[211] - 1 -

Outros (7,6) - -

Independente 1,9 1 -

Outros4 0,7 - -

Total 99 31

Fonte: FERNÁNDEZ (2004, p. 190); ABOAL (2005, p. 250); CHASQUETTI (2005, p. 196); YAFFÉ (2005a, p. 156); ALTMAN (2010, p. 536); BOTTINELLI; GIMENEZ; MARIUS (2014)

1 - O número entre parênteses indica % de votos para o Senado que o setor obteve no lema EP-FA-NM.

2 – Inclui o Vice-presidente Nin Novoa, do setor Aliança Progressista (FA), que tem assento no Senado. A informação está discriminada pela soma.

3 – Um deputado eleito em outubro pelo departamento de Salto (Fonticiella), do PDC, tornou-se Intendente em maio de 2005, sendo substituído por suplente do PS (Alba Cocco). A tabela registra a mudança (RÓMBOLI, 01 jul. 2017; EX DIPUTADA..., 11 marzo. 2012).

4 – Partido Intransigente, 0,39%; União Cívica, 0,20%; Partido Liberal, 0,07%; Partido dos Trabalhadores, 0,02%.

209 Como pondera Garcé (2011b, p. 131), os tupamaros sempre concorreram aliados a outros grupos. Quando aderiram à FA, compuseram MPP, que passou a ser a denominação que os identifica, apesar de não ser exclusivamente formado pelo MLN-T e de ambas terem existido durante algum tempo como estruturas paralelas (LABROUSSE, 2009, p. 267-269). Em 2004, agregou parceiros menores, como cisões do PN (agrupamento de Jorge Saravia [1958-]), e do PC (Grupo dos Cravos Vermelhos), e deu origem ao Espaço 609, denominação pela qual concorreu neste pleito.

210 Sua origem remonta ao Cabildo 1813, setor departamental de Maldonado, criado em 1997, liderado pelo deputado Darío Pérez (1957-) e que, em 1999, elegeu dois deputados por meio da União Frente-amplista (EN LOS 18 AÑOS..., 24 mayo 2015). Foi criada em dezembro de 2000 como uma coligação de 12 setores departamentais (Cabildo 2000, de Maldonado, a denominação então adotada pelo Cabildo 1813; Fraternidade Frente-amplista Floridense, de Florida; Câmbio 2000, de Colonia; Marcha Frente-amplista de Lavalleja, Corrente Progressista Independente, de Rivera; Esquerda Unida, de Durazno, entre outros). Constituiu-se na primeira fração da FA originária do interior e com atuação prioritária fora da capital, defendendo os princípios de descentralização, autonomia departamental e federalismo. Ela foi incorporada como tal pela FA em 2002. Porém, obedecendo a seus princípios, os setores departamentais que a formam podem aliar-se a frações nacionais, o que ocorreu, por exemplo, com a Fraternidade Frente-amplista Floridense em 2004, que concorreu no sublema da Aliança Progressista (e o deputado eleito está contabilizado para a AP, não para a Liga) (DELUCA POMBO, 2007, p. 31-35, 48).

211 É um grupo de atuação no departamento de Canelones, criado em 2001, por Víctor Semproni (1937-2016), chamado de “rebelde” porque em várias oportunidades não acatou a orientação partidária. Foi graças ao não voto dele, em 2011, por exemplo, que o projeto de reinterpretação da “ley de caducidad” não foi aprovado (MOREIRA, 2011; DI GIORGI, 2013). Iniciou a militância no MLN- T e teve passagem por IDI (1984), VA (1989) e AU (1994) até criar este grupo. Em seguida, a instituição se vinculou ao Grupo dos Cravos Vermelhos e, por este meio, compôs o Espaço 609 nesta eleição (FALLECIÓ..., 21 mayo 2016).

No 1º ano do governo frente-amplista, os diversos grupos reunidos em torno do EP e da NM solicitaram a incorporação formal à FA, o que foi por aceito, em novembro, sem muitos empecilhos (EN HISTÓRICO..., 20 nov. 2005)212. Desse modo, eles passaram a integrar oficialmente a Frente Ampla, na condição de frações ou setores internos213, o que implicou o encerramento de suas trajetórias como organizações políticas autônomas e a extinção do Encontro Progressista e da Nova Maioria214.

Lanzaro (2008b, p. 44) anota que a FA chegou ao poder como um partido estabelecido, com mais de 20 anos de existência, após ter disputado – e perdido – várias eleições presidenciais, exercido representação parlamentar como oposição por longo período, bem como acumulado experiência de governo na capital Montevidéu.

Yaffé (2005b, p. 52-53) reputa três razões para que a FA tivesse chegado à presidência. A primeira, como foi abordado nas páginas precedentes, foi a concretização de uma política de alianças que lhe permitiu ampliar as fronteiras da esquerda e formar, em 1994, o Encontro Progressista, e, em 2002, a Nova Maioria.

A segunda se refere à produção de uma moderação ideológica e programática, que possibilitou que ela se aproximasse do eleitorado de centro, sem abandonar ou perder o de esquerda, e sim passasse a abranger o espectro de centro-esquerda, a ter maior amplitude ideológica e, também, eleitoral. Este processo também já foi abordado nas seções anteriores, mas mais informações podem ser acrescidas.

A tendência de moderação ideológica foi confirmada pelo estudo de Lorenzoni e Pérez (2013). Eles se servem de uma interpretação que procurou quantificar os conteúdos constantes nos programas apresentados pela FA nas eleições de 1971 a 2009. Conforme a metodologia utilizada pelos autores, baseada no Comparative

212 Nessa oportunidade, oito grupos tiveram seus pedidos de ingresso aprovados pela Plenária Nacional da FA: Corrente 78, PDC, Grupo dos Cravos Vermelhos, Batllismo Progressista (todos eles membros do EP); Novo Espaço; Partido pela Seguridade Social, Compromisso Progressista Independente, Grupo País (EN HISTÓRICO..., 20 nov. 2005).

213 Com ironia, Caetano (2007, p. 98) anota que foi uma satisfação o término do EP-FA-NM, ao menos para os analistas, que puderam passar a utilizar apenas uma denominação (FA) para se referir a esse conjunto de organizações. Gregory (2009, p. 191, nota 1) sempre utilizou FA por considerar que, apesar de oficial, a outra denominação era inconveniente e a sigla, pouco amistosa. 214 Como parte da FA, NE foi um dos fundadores da Frente Líber Seregni (FLS), ao lado de Assembleia Uruguai, Aliança Progressista e outros grupos menores (LANZAN..., 31 agosto 2009). FLS surgiu em apoio à pré-candidatura presidencial de Astori em 2009 (que não foi bem-sucedida), organizou-se como um setor eleitoral e, depois, parlamentar, tendo se tornado o segundo maior em número de parlamentares, atrás apenas do MPP. É reputada como a ala mais moderada da FA.

Manifesto Project, a FA sempre ocupou a posição de esquerda da escala – que varia de -100% (o sinal negativo indica “esquerda”) a +100% (o sinal positivo indica “direita”). Ela partiu de -45% de frases classificadas como de conteúdo esquerdista em 1971 e, paulatinamente, tornou-se menos esquerdista: em 2004, quando alcançou o governo nacional, estava em -18,5%.

O estudo vai até 2009, ocasião em que a FA se posicionou em -12,5%, o ponto menos à esquerda da escala em toda a série histórica. E a corroborar o que foi apreciado sobre a crise ocorrida em 1989, quando a FA não alterou seu programa e ocorreu a saída de PGP-PDC, e sobre as modificações sofridas em 1994, verifica-se que praticamente não houve variação no conteúdo esquerdista entre 1984 e 1989 (passou de -35,7% a -34,5%) e, sim, moderação significativa entre 1989 e 1994 (de -34,5% para -25,6%).

A partir desses resultados, Lorenzoni e Pérez (2013, p. 83) afirmam que os programas da FA perderam conteúdo de esquerda de maneira gradual, porém sistemática. Mas alertam que isto não está ligado a um aumento de conteúdos de direita, e sim ao acréscimo daqueles que podem ser considerados neutros em termos ideológicos. Igualmente, enfatizam que “si se observa toda la serie [1971- 2009], se destaca la disminución de propuestas de izquierda en el ámbito económico y la relativa estabilidad de posiciones de izquierda en el plano de las políticas sociales” (LORENZONI; PÉREZ, 2013, p. 98).

A interpretação de Moreira (2009, p. 136-138) sobre a corrida ao centro da FA é divergente. Para ela, esta afirmação tende a dar a ideia de que a FA se aproximou dos partidos tradicionais, quando isto não ocorreu. Ao inverso, historicamente, as diferenças entre eles se agudizaram.

O argumento é de que a FA, que não possui nenhum setor que poderia ser classificado como de direita, empurrou os partidos tradicionais para a direita do espectro ideológico, fez com que eles abandonassem parte do seu eleitorado – o que é comprovado pela progressiva saída de setores esquerdistas do PN e do PC, antes tão característicos dessas legendas –, de modo que eles não possuem mais uma fração ou movimento de esquerda (MOREIRA, 2000, p. 99; 2004, p. 21, 37).

Sobre esta questão, González (1993, p. 112) expõe que o lento encaminhamento para a direita dos partidos tradicionais começa nos anos 1960, antes mesmo da fundação da FA, o que pode ser atestado pelas correntes de

esquerda que deles se afastam e vão participar, junto a outras forças políticas, da criação da FA.

Há convergência entre esses comentários e a interpretação de Demasi (2006), apresentada na subseção 1.3.1, que sublinha a importância da participação dessas cisões dos partidos tradicionais para fortalecer a FA, o quanto elas tornaram PN e PC menos diversificados ideologicamente e os impediu de manter uma parte do eleitorado fiel, justamente aquela correspondente à sua ala esquerda.

O entendimento de Moreira (2009) também tem por base o fato de a moderação da FA a ter tornado mais dispersa ideologicamente do que os competidores. Com dados de 2001-2005, a autora indica que a FA ocupa largo espectro de centro-esquerda – que vai de 2,5 a 4,8 na escala de 10 pontos, em 2001; e de 3,6 a 5,2, em 2005 –, enquanto os partidos tradicionais se tornaram claramente de direita e perderam a variação ideológica que anteriormente apresentavam por meio de suas diferentes frações.

De modo convergente, González (1993) demonstrou que, historicamente, os partidos tradicionais contavam com setores bastante diversificados do ponto de vista ideológico, o que os fazia cobrir uma grande parte da escala esquerda-direita. Também esta característica a FA tomou dessas legendas, embora, ao contrário delas, ocupe exclusivamente o centro-esquerda, sem apresentar setores posicionados à direita da escala ideológica. Nesse aspecto, portanto, a FA nunca foi como os partidos tradicionais.

Na mesma perspectiva, Lanzaro (2004, p. 60) argumenta que blancos e colorados passaram por um processo de convergência, tornando-se um polo político e uma “família ideológica”, com uma proximidade cada vez maior e uma relativa indiferenciação. Os dados apresentados por Delbono (2010, p. 43) confirmam esta apreciação: desde 1999 e até 2003, a distância ideológica entre os dois partidos, medida pela escala de esquerda-direita de 10 pontos, ficou abaixo de 5% (0,05) e a sobreposição ideológica, acima de 85% (0,85)215.

215 Os dois parâmetros são indicados por González (1993, p. 147) como aqueles que configuram uma família política ou ideológica. A distância foi calculada conforme o modelo de Sani e Sartori (1980): no caso específico, subtrai do valor correspondente à localização do partido mais à direita da escala (mais alto) o daquele posicionado mais à esquerda (mais baixo) e divide o produto por nove (a quantidade de pontos da escala). O resultado corresponde à distância, que vai variar de 0 a 1. A sobreposição, seguindo a mesma fonte, reduz a escala a cinco segmentos (1-2, 3-4, 5-6, 7-8, 9-10), faz o mesmo cálculo precedente, transforma o valor em percentagem e divide por 200, sendo o produto subtraído de 1. O resultado também vai variar a 0 a 1. Esclarece-se que, na versão original, distância e sobreposição servem de parâmetro para identificar o grau de polarização de um sistema

A pesquisa de López (2015), com dados de 2013, também identificou que a maior distância ideológica entre as frações intrapartidárias se encontrava na FA. Já os dados trazidos por Canzani (2005, p. 78) mostram que a amenização programática da FA fez com que ela atraísse progressivamente mais o eleitor que se autoidentifica como de “centro”. Este contribuiu com 18% da votação da FA em 1994, contingente que passou a 27% em 1999 e chegou a 34% em 2004. Desse modo, ainda que programaticamente não tenha se tornado centrista, ela passou a ampliar o contingente de votos conquistados junto a esse eleitorado.

Há uma investigação de Moraes e Luján (2016) que corrobora o entendimento de Moreira (2009) de que a FA não se tornou centrista e menos esquerdista, e sim que ela demarcou as diferenças em relação aos partidos tradicionais e afirmou-se como a opção de esquerda contra as alternativas de direita, o que deixou o centro da escala vazio.

Os autores levam em conta o caráter centrista do eleitorado uruguaio, que desde a década de 1990 está posicionado em torno dessa área da escala ideológica, conforme atestado por pesquisas do Latinobarómetro e do Lapop. Ao mesmo tempo, observam que não há candidaturas relevantes de centro.

Se valessem os pressupostos do modelo de proximidade, como o de Downs, esse eleitorado de centro escolheria o candidato mais contíguo ao seu próprio posicionamento e haveria uma luta entre os concorrentes pelo centro. Porém, ela não encontra respaldo nas informações sobre o posicionamento dos partidos, pois, por mais que FA e os partidos tradicionais tenham se aproximado do centro, continuam claramente alocados à esquerda e à direita do espectro. Os autores se servem de pesquisa do Instituto de Ciência Política de 2009 e de 2004, no qual FA está no ponto 3 e 4, e os partidos tradicionais, em 6 a 8, o que lhes permite dizer: há um eleitorado moderado e um centro vazio de candidatos relevantes.

A explicação para o aparente paradoxo de um eleitorado que tem escolhido candidatos fora de sua proximidade reside no modelo direcional, adotado pelos autores. Ele afirma que o eleitor se dispõe a escolher fora de sua ordem de preferência, desde que a opção esteja localizada dentro de uma região de

partidário, e não para verificar se dois ou mais partidos pertencem à mesma família ideológica. A assunção de Sani e Sartori (1980) é que, quanto maior a distância e menor a sobreposição ideológica, mais polarizado é o sistema, o que traz mais riscos para a sua estabilidade.

aceitabilidade. E isto só é possível porque há opções claramente de esquerda e de direita (ainda que não extremadas) nas disputas do país.

Consequentemente, nessa visão, a vitória da FA (e a manutenção do êxito nas eleições subsequentes) não a aproxima do centro. Ela continua a ser uma opção de esquerda – verificável pelo posicionamento na escala, mais do que pelo juízo do pesquisador –, mas fizeram com que o eleitor do centro votasse na FA – como indicado por Canzani (2005). E isto exigiu desse eleitorado de centro um deslocamento e o abandono de sua posição preferencial. Enfim, não foi a FA quem se aproximou do eleitor de centro (ou não o foi tão somente, já que ela se expandiu ao longo do setor centro-esquerda da escala), e sim, e principalmente, o contrário.

Para reforçar o argumento, os autores comentam a situação do PI, em uma questão a ser abordada no capítulo 3. Se o voto por proximidade explicasse o caso uruguaio, o PI deveria ter uma votação muito maior e ter candidato presidencial viável, o que não se verifica:

solo el PI se ubica en valores centrales en 2009 y 2014, entre el 5 y el 6 de la escala, pero su desempeño electoral nunca superó el 3% de los votos. La posición centrista del PI no respalda el argumento del modelo de proximidad, dada su posición y la moderación del electorado, su desempeño electoral debería haber sido mucho mejor en ambas elecciones (MORAES; LUJÁN, 2016, p. 81).

A terceira motivação para o êxito da FA é o exercício de uma oposição sem pausa, porém flexível, aos governos dos partidos tradicionais, em particular frente às reformas liberais que eles procuravam implantar. Assim,

el posicionamiento opositor ejercicio le permitió captar y canalizar políticamente el descontento de esa parte creciente de la ciudadanía que, disconforme con los resultados de sugestión o abiertamente perjudicaba por ella, fue distanciándose de los partidos tradicionales, gobernantes coaligados en distintos grados de compromiso durante la mayor parte del período (YAFFÉ, 2005, p. 72).

Sobre esta questão, Moreira (2004, p. 19-20) alerta que a FA era a única legenda que podia se apresentar ao eleitor como força oposicionista, pois sempre foi a minoria excluída no processo decisório nacional – inclusive após 1999, quando era a maior bancada do parlamento –, dado que, de modo exclusivo ou por meio do modelo de coparticipação, os partidos tradicionais tinham a maioria necessária para governar e a FA sequer ocupava os cargos nas diretorias dos entes públicos

previstos na Constituição. Queirolo (2006), então, argumenta que a FA venceu o pleito de 2004 porque se tornou a única opção não governista viável para o eleitor, isto é, todas as demais alternativas já tinham sido testadas e haviam falhado.

Em perspectiva semelhante, Yaffé (2005a, p. 49-51) lembra que a reforma do Estado realizada pelos partidos tradicionais – especialmente nos governos Lacalle (1990-1995), Sanguinetti (1995-2000) e Batlle (2001-2005), ocasiões em que governaram, de uma forma ou de outra, “associados” –, privou estes mesmos partidos dos recursos públicos que durante décadas havia assegurado a eles a continuidade política, tais como: cargos, empregos, créditos, obras, tratamentos fiscais e tributários.

Igualmente, as reformas incrementaram o mal-estar dos cidadãos em relação aos partidos tradicionais, pois atingiram pilares da cultura política uruguaia (como estatismo e igualdade) e não obtiveram resultados econômicos, tendo gerado uma ampla base social de prejudicados por essas reformas. Na síntese de Lanzaro (2004, p. 17), os partidos tradicionais procuraram realizar reformas estruturais e, em função disso, enfrentaram uma reconversão em seu estatuto histórico de partidos de Estado, aproximando-se de um perfil de “cartel-parties”, no sentido firmado por Katz e Mair (1995), e perdendo a condição de “partidos keynesianos”.

Em consonância, Gadea (2015) explica o êxito eleitoral da FA por meio da capacidade que ela teve de aproximar-se da “matriz institucional” do país, que está centrada no papel do Estado como provedor e organizador da vida coletiva, da busca de igualdade social e política, o que implica reconhecer direitos sociais, intervir fortemente na economia, vincular as relações sociais e a cidadania à lei. Por esta razão, considera que as demais explicações, como a da moderação programática, não alcançam a efetiva complexidade da questão, pois a resposta reside em elementos simbólicos e discursivos, ligados à cultura política e ao imaginário político e social (batllista e coloroado) do que é ou deve ser o Uruguai, ao qual a FA se vinculou, soube ressignificar e fortalecer.

Certamente, não são discursos ou iniciativas políticas concretas que permitem dizer que, em certo sentido, a Frente Ampla é a continuidade do Partido Colorado [batllismo] em situações históricas diferentes. É também o lugar que ela passou a assumir no repertório eleitoral e político do país, tomando como próprio um espaço discursivo (antes ocupado pelo

tradicional Partido Colorado) que situa a figura do Estado no centro das atenções, interesses e perspectivas de futuro (GADEA, 2015, p. 10)216.

Alguns dos dirigentes de forças esquerdistas entrevistados por Serna (2004, p. 188) chamam a atenção para este aspecto do novo perfil ideológico-programático da FA, tachando-o de “batllismo modernizado”. Astori, em declaração fornecida a Tagliaferro (2009 p. 75), às vésperas das prévias de 2009, exalta que “el Frente Amplio es el batllismo del Uruguay en este momento”. Essa linha interpretativa também é destacada por Lanzaro (2003, 2004), que vê a FA como defensora da linha batllista tradicional e de valores muito arraigados na cultura política uruguaia (estatismo, igualdade e políticas distributivistas).

Como foi indicado na subseção 1.3.3, ao tratar da “tradicionalização” da FA, a construção da identidade frente-amplista implicou aproximá-la do batllismo, assim como do artiguismo. Arocena (2017, p. 292) vai mais longe e, em razão dos tempos de bonança que vivenciou, chama o ciclo de governo da FA, iniciado em 2004 e que se estenderá por pelo menos 15 anos, de “terceiro batllismo”, dando sequência ao período de Batlle, do início do século, e ao neobatllismo, dos anos 1950. Essa expressão também foi referida por Moreira (2011, p. 13).

A mesma perspectiva permite a Luna (2004a, p. 143) afirmar que, enquanto a partir dos anos 1980, blancos e colorados se voltaram a uma postura reformista, de direita, vinculada ao Consenso de Washington, a esquerda passou a ter um posicionamento conservador, dado que queria preservar os elementos fundamentais da tradição política batllista, tão caros aos uruguaios e tão fortemente estatistas217.

216 Ressalva-se que o autor não vê como positiva esta situação. Ele expõe que a matriz institucional a que a FA dá continuidade limita a autonomia do social nos marcos da autoridade estatal e institucionaliza a sociedade e seus sujeitos a partir das narrativas do Estado. Logo, na condição de governo, a FA “se alinha na tarefa por redirecionar, disciplinarmente, a sociedade que se mobiliza contra as regras do jogo político”, pois incapaz de aceitar a ideia da autonomia (GADEA, 2015, p. 20). Em outra passagem, afirma: “todo conflito social que se direciona contra determinada posição ou