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Capítulo 1 Raízes político-institucionais do PI (1962-2002)

1.5.4 Frente Ampla e a formação do EP

Como foi indicado anteriormente, o EP é uma organização formada por grupos políticos associados eleitoralmente à FA, mas que não pertencem à entidade e, por isso, não estavam submetidos às instâncias internas frente-amplistas. Para compreender as razões que motivaram a formação de uma entidade com tais características, é preciso se reportar à “vida doméstica” da FA e às disputas que estavam em andamento naquela oportunidade.

A criação do EP fez parte da estratégia política de renovação da instituição, a qual incluía: moderação ideológica, firme compromisso com a democracia formal e ampliação das alianças partidárias, de modo a incorporar forças que não estavam mais ou nunca estiveram associadas à FA. Todos esses objetivos eram muito semelhantes aos que PGP e PDC haviam demandado antes do rompimento.

A renovação encontra sua motivação em pelo menos três fatores principais: a) o resultado da eleição presidencial de 1989 e a ruptura sofrida naquela oportunidade, que tornou clara a necessidade de unificar a esquerda para alcançar a vitória; b) a implosão do socialismo real, que punha em dúvida grande parte do ideário até então defendido, notadamente por PS e por PCU, sendo que este era, na oportunidade, a maior fração da FA; c) a experiência de governo, inaugurada em 1990, na intendência de Montevidéu, o que exigiu enfrentar uma série de desafios administrativos, discutir com diferentes setores da sociedade e desenvolver políticas públicas, enfim, a experiência concreta de gestão, o que testava ou punha em xeque vários princípios teóricos (GARCÉ; YAFFÉ, 2014, p. 74).

Este não foi um processo simples e tampouco automático. As polêmicas dos anos 1980 eram uma antecipação desta necessidade e das dificuldades que a FA tinha para realizá-las. Da mesma forma, a elaboração de uma engenharia político- eleitoral como o EP é um testemunho da persistência desses obstáculos.

Como anota Yaffé (2005a, p. 170), entre 1991 e 1994, a FA se viu sacudida por uma nova e intensa disputa interna entre duas posições, que foram identificadas por atores externos como os “radicais” e os “moderados” – e que parecia a reedição da polêmica entre as “duas esquerdas” da década anterior. De um lado, os que não desejavam mudar/atenuar as bases programáticas e/ou queriam que as alterações fossem sutis e paulatinas; de outro, os que ambicionavam mudanças mais intensas e rápidas.

O embate confluía para ter uma resolução momentânea, e parcial, por ocasião da definição do próximo candidato a Presidente da República, já que Seregni estava decidido a não concorrer. Um dos pretendentes era Tabaré Vázquéz, o astro ascendente, símbolo dos “moderados” e que tinha a seu favor a bem- sucedida experiência de governo desenvolvida em Montevidéu. O oponente era Danilo Astori, que apresentava proximidade com as opiniões dos “radicais”, como PCU e MPP.

Sobre este confronto, Mieres (1996, p. 44) lembra que Vázquez era um candidato com maior potencial frente aos cidadãos comum e ao público externo. Carismático e não organicamente identificado com a FA (embora a antiga filiação ao PS), sua imagem ultrapassava os limites do partido e indicava renovação. Já Astori, que na época não estava vinculado a nenhuma fração – apenas em 1994 criaria o próprio setor, a Assembleia Uruguai –, representava como nenhum outro (a exceção seria Seregni, que, aliás, considerava-o seu sucessor) a FA histórica e, como tal, era reconhecido pelos eleitores cativos e pelos militantes.

Vázquez venceu a disputa interna e se tornou candidato presidencial, embora a AU tenha sido o setor da FA mais votado na eleição de 1994 (Tabela 5).

No que tange à política de alianças, a decisão tomada no II Congresso Ordinário, em 1991, foi a de defender uma nova estratégia, capaz de construir um governo de maioria ao (re)incluir o NE e acordar com setores esquerdistas dos blancos e dos colorados descontentes com a condução daqueles partidos.

Quem reivindicava esta posição e conseguiu aprová-la na FA eram os “moderados”, que a consideravam imprescindível para alcançar a vitória nas eleições presidenciais. Nesse ponto, eles concordavam com o que PGP e PDC haviam reivindicado à FA, sem sucesso, pouco tempo antes. Porém, isto não autoriza a identificá-los plenamente com PGP e PDC, pois também havia diferenças marcantes entre ambos.

A primeira é que, para distinguir-se dos partidos tradicionais e preservar o seu caráter oposicionista, os “moderados” afirmavam que as alianças da FA não poderiam ocorrer com PN, PC ou com frações deles, apenas com setores que formalmente tivessem rompido com tais legendas, a exemplo do que havia ocorrido em 1971, quando da fundação da própria FA. Daí a estratégia de criação do EP, que seria um espaço político que reuniria esses setores saídos dos partidos tradicionais

e/ou do NE, que poderiam se aliar à FA sem terem a obrigação de a ela pertencerem formalmente.

A segunda é que, na mesma perspectiva, nenhum setor da FA poderia celebrar aliança com outro partido, pois as coligações deveriam englobar o conjunto da FA, não sendo permitidos acordos como o que reuniu PGP e Foro Batllista.

É preciso destacar, contudo, que o modelo organizacional e a correlação de forças interna produziam efeitos e, assim como ocorrera na discussão da década anterior, impuseram limitações à aprovação da nova política de alianças. O II Congresso Ordinário determinou que os acordos eleitorais não implicavam modificar o programa da FA, e sim exigiam que os novos parceiros a ele aderissem (YAFFÉ, 2005a, p. 170). Tal determinação limitava as possibilidades de realização de acertos, pois os tornavam praticamente adesões à FA, já que impunha unilateralmente aos prováveis parceiros o conjunto de ideias que ela propunha.

Este posicionamento se modificou nos anos que antecederam ao pleito de 1994. A FA passou a aceitar a ideia de promover mudanças em seu programa com vistas a permitir a celebração de alianças mais amplas. A desarticulação do PCU – tomado por conflitos internos decorrentes da crise do socialismo real (GARCÉ; DE GIORGI; LANZA, 2012) – e o advento do referendo contra a Lei de Empresa Pública, realizado em 1992159 foram acontecimentos que ajudaram a minar a resistência interna e a aproximar a FA de diferentes setores de oposição ao governo Lacalle, como o Polo Progressista (PP)160 e o NE. Consequentemente, contribuíram para criar um clima favorável à formação de uma frente contrária ao governo e aos partidos tradicionais.

Ainda em 1992, formou-se o Projeto Proposta, uma iniciativa política e acadêmica, patrocinada pela Fundação Friedrich Ebert, ligada à social-democracia alemã, que foi executada por vários centros privados de ensino e de pesquisa do

159 Era ponto-chave na reforma do Estado que a administração Lacalle (PN) pretendia levar adiante e envolvia um amplo programa de privatizações. Aprovada pelo parlamento, ela passou por um referendo em dezembro de 1992, convocado após a mobilização de: sindicatos, movimentos sociais, FA, NE e setores minoritários de blancos e colorados. Na oportunidade, 73% dos votantes se manifestaram contrários. Assim, ela foi parcialmente revogada. Como explica Rilla (2012, p. 115), o governo não logrou abrir ao capital privado a Antel (empresa de telecomunicações), mas foi possível fazê-lo em relação a: Pluna (empresa aérea), administração de serviços portuários, seguros e bancos.

160 Grupo interno do PN, de oposição ao Herrerismo, comandado pelo Presidente Lacalle. Dentre seus líderes estavam: o já citado Nin Nova; Irineu Riet Correa (1945-), Intendente de Rocha; Alberto Zumarán (1940-), senador, que havia sido um dos candidatos a Presidente dos blancos em 1984 e em 1989, em nome do setor liderado por Wilson Ferreira (Pela Pátria).

Uruguai. A intenção era formular diagnósticos e encaminhar propostas sobre quatro grandes temas (economia, sociedade, Estado e inserção externa) que tivessem capacidade de gerar acordos programáticos. E estes acordos, por fim, propiciariam a formação de uma ampla coligação progressista que lançaria uma candidatura presidencial comum em 1994. Engajaram-se na proposta setores da FA (VA e PS) e do NE (PDC e PGP), além do Polo Progressista, os quais foram representados por militantes na condição de especialistas nas áreas pesquisadas161.

Quando o Projeto apresentou publicamente seus resultados – em novembro de 1993 –, não foi bem recebido no âmbito da FA, especialmente por Astori e sua corrente (AU). A argumentação era de que ele tinha a intenção de acabar com a FA e de substituí-la por algum tipo de acordo programático e eleitoral. Como pondera Yaffé (2005a, p. 172-173), a primeira parte da crítica de Astori é injustificada, mas a segunda não, pois o objetivo era realmente criar uma coligação mais ampla do que a FA e que, assim, viabilizasse a conquista da presidência.

No contexto dessas iniciativas e em paralelo a elas, Vázquez liderou pessoalmente entendimentos com PGP, PDC e PP com vistas ao pleito de 1994. No final, a aliança representada pelo EP reuniu menos parceiros do que aqueles contatados, pois o PGP preferiu retornar ao Partido Colorado e parte do PP acabou por prosseguir no Partido Nacional162. De qualquer modo, verifica-se que a proposta original era formar uma aliança ainda mais ampla do que a que foi efetivada163.

Entretanto, conseguir que a FA autorizasse o início das negociações com vistas a formar uma aliança eleitoral com o EP foi um processo muito difícil, como anunciara a reação de Astori ao Projeto Proposta.

A posição favorável tinha maioria no II Congresso Extraordinário, realizado em julho de 1994, mas não os 2/3 necessários para ser validada, conforme determinado pelo estatuto da FA. Para superar o impasse, a alternativa encontrada foi a formação de uma comissão especial, formada por 160 membros, que decidiria a questão, por maioria simples – o que, afinal, foi aprovado com a adesão do PCU164 (YAFFÉ, 2005a, p. 175; GARCÉ; YAFFÉ, 2014, p. 78-79).

161 Um dos coordenadores do Projeto é Pablo Mieres.

162 Riet e Zumarán fizeram esta escolha. Dos líderes, apenas Nin Novoa rompeu com os blancos. 163 O plano de Vázquez era o mais realista para vencer as eleições, pois a FA ficou a menos de 2% do PC, déficit de votos que, certamente, seria superado com um leque um pouco mais amplo de aliados.

164 A questão das alianças dividia vários setores da FA. No âmbito do MPP, por exemplo, o PVP era favorável à proposta de Vázquez – tanto que seu secretário geral, Hugo Cores, foi o autor da

Com a aprovação da sua proposta de política de alianças, Vázquez alcançou a posição privilegiada necessária para cimentar o acordo com vistas à disputa eleitoral de 1994. Na condição de presidente do EP – uma estrutura muito mais simples e flexível do que a FA, composta fundamentalmente pelos líderes dos grupos não frente-amplistas que o constituíam e pelos parlamentares da coligação NE a ele vinculado –, negociava questões político-programáticas com esses parceiros e firmava uma posição comum (YAFFÉ, 2013, p. 18). Na sequência, apresentava-a à FA, na qual era uma liderança influente. Assim se sucediam as rodadas de negociação até formar o consenso necessário no âmbito do EP-FA.

No entanto, as mudanças programáticas na FA passaram pelos mesmos desafios enfrentados pela possibilidade de realizar tal aliança. Foi necessário superar uma série de resistências internas, muitas delas sustentadas em posicionamentos ideológicos e em um modelo organizacional que aumentava os custos para a definição de inovações. Por consequência, elas só se efetivaram após longos e sucessivos embates e exigiram grande dose de habilidade política para empreender as negociações.

As mudanças começaram a acontecer mais nitidamente, mas ainda de modo paulatino, no já referido II Congresso Ordinário da FA, realizado em 1991. Para Yaffé (2004, p. 184), essas mudanças envolveram, de um lado, a moderação de propostas de transformação econômica, com o desaparecimento de três pontos fundamentais do programa original (reforma agrária, nacionalização do comércio exterior e do sistema bancário); e, de outro, a valorização de temas sociais e político-institucionais antes inexistentes ou muito pouco desenvolvidos, como: fortalecimento de políticas sociais, reforma do Estado, aperfeiçoamento e aprofundamento da democracia165.

Yaffé (2004, p. 186) frisa que tais mudanças não implicavam a substituição do fundamento ideológico anterior ou a renúncia ao socialismo, e sim a incorporação de

proposta alternativa da formação da comissão –, e, descontente com o posicionamento contrário da fração, rompeu com ela, em junho de 1994.

165 Ao analisar os programas de 1971, de 1984 e de 1989, Garcé e Yaffé (2014) identificaram a presença de elementos que eles classificaram como de caráter anti-imperialista, nacionalista e popular, estatista e desenvolvimentista. Alguns dos temas, são: reforma agrária e eliminação do latifúndio, estatização ou nacionalização do sistema bancário, rechaço ao FMI e exigência da necessidade de revisão da dívida externa, a defesa de uma democracia verdadeira e mais avançada do que a meramente formal. Todos comporiam uma posição que dificultava a aproximação dos eleitores de centro e havia produzido fissuras com os aliados que deixaram a FA para criar o NE.

novos elementos sobre a base da matriz original. E esta, por sua vez, passou a ser concebida de forma menos dogmática e restritiva, e mais crítica e aberta.

O fato é que, ao chegar às eleições de 1994, as mudanças programáticas haviam avançado, mas o processo ainda estava em andamento. Por isso, e como parte das negociações que viabilizaram o acerto entre EP-FA, foi acordado manter o programa da FA, mas não o apresentar ao eleitor. Ao mesmo tempo, houve a autorização para a FA aderir ao programa do EP, que era mais moderado (GARCÉ; YAFFÉ, 2014, p. 79; YAFFÉ, 2005a, p. 175-176).

Como já foi evidenciado: apesar dessa engenharia política, o acordo FA-EP não atingiu o seu objetivo principal, que era vencer a eleição presidencial de 1994. Apesar disso, o saldo era positivo. Houve um salto inegável em termos de respaldo eleitoral: o patamar de aproximadamente 20% foi finalmente superado, após três disputas (1971, 1984 e 1989), razão pela qual a FA se credenciou como um competidor equivalente aos dois partidos tradicionais, com plena capacidade para superá-los. E, como apresentava uma linha ascendente, a expectativa era de que, na eleição seguinte, a de 1999, a vitória ocorreria, se nada de anormal acontecesse.