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POLÍTICAS PÚBLICAS DE PERMANÊNCIA NA EDUCAÇÃO SUPERIOR BRASILEIRA

2.3 AÇÕES AFIRMATIVAS NA EDUCAÇÃO SUPERIOR

Os programas de ações afirmativas implantados em diversas universidades públicas brasileiras foram resultados de um amplo debate, de lutas de movimentos sociais, de lideranças intelectuais e da sociedade em geral, que perpassaram os cenários locais e globais, principalmente, a partir da década de 1990. Os argumentos centrais para a proposição de ações que modificassem, principalmente, os sistemas de ingressos e definissem estratégias de

permanência de estudantes, apontavam as desigualdades históricas de acesso dos candidatos às universidades, ao considerar indicadores de raça/etnia e classe.

Ao retomar aspectos históricos com relação às desigualdades raciais no Brasil, vê-se que esse debate emerge das décadas de 1970 e 1980, a partir de estudos sociológicos sobre o tema e de sua utilização por parte do movimento negro. Tais estudos fortaleceram as lutas em favor de políticas para a diminuição das desigualdades raciais. Guimarães (2012, p. 16), por exemplo, ao aprofundar na análise sobre os processos de exclusão social que constituíram a sociedade brasileira, evidencia a desigualdade racial e seus efeitos na manutenção da exclusão dos negros. Para o autor, o fim da escravidão transformou a todos em cidadãos formais do Estado brasileiro, o que tornou necessário o enfrentamento da falsa democracia racial disseminada Brasil.

Nesse sentido, ao se referir à importância dos movimentos sociais em favor dos negros, Guimarães (2012, p. 37) salienta que “[...] a afirmação do coletivo racial serve para aprofundar a igualdade entre os cidadãos”. No entendimento do autor, “[...] é nessa ordem de garantia dos direitos individuais e coletivos que medram o reconhecimento da singularidade étnica e o respeito à igualdade”. Tal assertiva tem justificado a importância de se reconhecer os processos de exclusão para que se possam criar estratégias de enfrentamento. É com base nesses fundamentos que são defendidas as noções de que as desigualdades precisam ganhar nome – cor, gênero, raça, orientação sexual – para serem combatidas.

Com relação ao acesso à educação superior pública, é importante reforçar que os movimentos negros levantaram as bandeiras de luta e orquestraram mobilizações para a formulação de políticas de inclusão nessa área (GUIMARÃES, 2003). À época, em 1995, o governo de Fernando Henrique Cardoso18 iniciou publicamente o debate sobre as relações raciais, admitindo que os negros eram discriminados no Brasil. No ano seguinte, em 1996, o autor ratifica a existência de discriminação racial contra negros ao participar de seminário internacional, organizado pelo Ministério da Justiça.

Desse modo, o Movimento Negro, além de fomentar o debate em torno dessas questões, fez importante pressão sobre o governo, para que fossem adotadas medidas nos sistemas de ensino, com vistas à superação do racismo. Verifica-se que, a partir desse período, no Brasil, as universidades públicas, pressionadas por movimentos sociais e sociedade civil organizada,

18 Em 1995, lideranças dos Movimentos Negros, na comemoração do tricentenário da morte de Zumbi, elaboraram

carta de reivindicações pela igualdade racial nas quais práticas de ações afirmativas são mencionadas tendo sido acolhidas por Fernando Henrique Cardoso que criou, então, um Grupo de Trabalho pela Igualdade Racial. (ROSEMBERG, 2010, p. 108).

iniciaram o processo de implantação de políticas de ações afirmativas para o ingresso de parcelas da população historicamente excluídas.

Efetivamente, foi a partir dos anos 2000 que o governo brasileiro empreendeu esforços para a participação na III Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em África do Sul, e cria o Comitê Nacional para participação nesse evento. Esse Comitê mobilizou debates que resultaram na Conferência Nacional Contra o Racismo e a Intolerância, realizada no Rio de Janeiro, em 2001, na qual foi elaborada a Carta que sintetizou as discussões sobre a temática apresentada na África do Sul. Essa Conferência representou um marco na ampliação do debate sobre a discriminação racial no Brasil, pois é a partir desse evento que o governo brasileiro assume a necessidade de desenvolver políticas de ações afirmativas.

Em síntese, Rosemberg (2010) destaca quatro ordens de circunstâncias sociais que conduziram a entrada dessa temática19 na agenda da política educacional no país. A primeira é a própria herança histórica, do passado escravista, associada às condições educacionais contemporâneas que não permitiram a diminuição das desigualdades sociais entre negros e brancos. A segunda diz respeito às mobilizações de jovens egressos de escolas públicas e negros, na década de 1990, em busca de cursos pré-vestibulares, que tinham objetivos complementares de preparação para os exames de seleção para a educação superior. A terceira é a própria luta dos movimentos negros brasileiros por educação, entre os anos 1980 e 2000, que se destacam na mobilização pela Constituição de 1988, na comemoração do Centenário da Abolição neste mesmo ano e, mais recentemente, na III Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em Durban, em 2001. A quarta diz respeito à ação estatal que reverberou as lutas sociais, em um contexto dos chamados novos movimentos sociais, particularmente, das mulheres e dos negros (ROSEMBERG, 2010).

Nesse período, os debates travados nacionalmente e internacionalmente sobre as políticas de ações afirmativas em universidades brasileiras produziram uma polarização das opiniões entre os que se consideravam favoráveis, de um lado, e contrários à implantação dos

19 No caso do Brasil, Santos (2012) lembra que as ações afirmativas já se faziam presentes na história brasileira,

desde meados do século passado. Alguns dispositivos legais ou indicativos foram se estabelecendo como: (1) a Lei dos dois terços para a reserva de trabalhadores nacionais em 1940; (2) a proposta de reserva de vagas para trabalhadores negros, em 1968; (3) a Lei n.º 8.213/91 que estabelece um percentual de contratação de pessoas com necessidades especiais pelas empresas privadas; (4) o estímulo indicado na Constituição Federal atual para a contratação de mulheres nas empresas; (5) a Lei n.º 9.100/96 que estabelece reserva de percentual mínimo para candidatura de mulheres em partidos políticos, dentre outros dispositivos. Nesse particular, pode-se lembrar também do julgamento do Supremo Tribunal Federal, em 2012, sobre a constitucionalidade dos programas de reserva de vagas, nas universidades públicas, para grupos vulneráveis às desigualdades sociais no Brasil.

sistemas de reserva de vagas, de outro. Dentre aqueles que apontavam aspectos favoráveis, destacam-se argumentos que defendiam a reparação das desigualdades históricas, diminuição das injustiças sociais e a valorização da diversidade étnico-racial nos espaços universitários. Já os que expressavam opiniões contrárias argumentavam que haveria a perda da qualidade da educação superior, a desobrigação dos governos com relação à melhoria da educação básica, bem como o argumento que indicava as ações afirmativas como instrumento de acirramento dos conflitos raciais (SANTOS; QUEIROZ, 2006; ROSEMBERG, 2010; SANTOS, 2012).

Na perspectiva de Pimentel (2013), a institucionalização dos sistemas de reserva de vagas colocou em discussão as convencionais concepções sobre a democracia no ambiente universitário e provocou “desconforto” entre dirigentes universitários e ativistas dos movimentos sociais que passaram a contestar “modelos estabelecidos e reivindicar outras perspectivas de atuação na consolidação da democracia no Brasil”. Para o autor, “o debate sobre ações afirmativas deflagrou conflitos e produziu alternativas para a construção de novas dinâmicas de sentido e poder no âmbito da adoção de políticas públicas no cenário nacional” (PIMENTEL, 2013, p. 273).

Apesar dos posicionamentos divergentes e dos conflitos entre gestores universitários, estudantes e docentes, bem como da opinião pública em geral, sobre a legitimidade dessas políticas, em 2011, 104 instituições públicas de ensino superior – universidades estaduais e federais, institutos federais e centros universitários – adotaram políticas particularistas de ingresso nas suas instituições (SANTOS, 2012). Nos programas implementados por IES públicas, destacam-se as estratégias de ingresso de estudantes negros – pretos e pardos –, indígenas e egressos de escolas públicas, por meio de sistemas como: reserva de vagas – mais conhecida como cotas; acréscimo de pontos – bônus; e o acréscimo de vagas para demandas específicas, como é o caso da criação de cursos para povos indígenas ou para populações do campo (CUNHA, M.; SILVA FILHO; CUNHA, E., 2014).

Vale enfatizar que, no jogo das disputas para a institucionalização dos programas de ações afirmativas nas universidades, as tensões que operavam entre as perspectivas de políticas universalistas versus políticas focalizadas estiveram presentes nos debates e nas ações do Estado brasileiro. Tais divergências foram observadas nas formas singulares das IES empreenderem seus sistemas de reserva de vagas. Outrossim, um estudo de Sousa e Portes (2011, p. 526) permite inferir que as universidades, apesar de cederem aos argumentos favoráveis à implantação das ações afirmativas, “[...] preservaram-se ao não adotar uma política fundada exclusivamente no conceito de raça”. Isso se revelou quando a opção pelos modelos

mistos, que envolvia a combinação de critérios sociais20 e raciais, foram predominantes nos sistemas implementados nas IES. Sobre esse aspecto, vê-se que das 59 instituições de ensino superior analisadas no referido estudo, 89% implantaram sistemas de reserva com base em critérios sociorraciais ou puramente sociais, os quais enfrentavam menores resistências nos meios acadêmicos e científicos, no período que antecedeu a determinação do sistema de reserva de vagas em todo o país (SOUSA; PORTES, 2011).

É nesse contexto de debates sobre a instituição de políticas de ações afirmativas que se discute a necessidade de mecanismos de flexibilização do acesso estarem articulados a outras estratégias de ação afirmativa como é o caso das propostas de apoio à permanência de estudantes em cursos de graduação. De maneira geral, a literatura que aborda a permanência na educação superior (ZAGO, 2006; SILVA, PINEZI; ZIMERMAN, 2012; PEIXOTO; BRAGA, 2012; DOEBBER; GRISA, 2011) defende que a simples adoção do sistema de reserva de vagas é insuficiente para a diversificação da base social do ensino superior. Desse modo, as políticas de permanência são concebidas na perspectiva da ação afirmativa e são consideradas estratégias de intervenção do Estado que devem estar associadas aos mecanismos de flexibilização do acesso.

Um dos fatores que têm sido considerados como justificativa para a inserção de políticas de permanência são as altas taxas de evasão e retenção21 que se apresentaram ao longo dos anos na educação superior brasileira. Além disso, questões relacionadas às necessidades materiais, os limites impostos pelo mundo do trabalho e a convivência no ambiente universitário têm sido apontados como desafios a serem superados com atividades ou serviços de apoio aos estudantes. Zago (2006), por exemplo, ao desenvolver um estudo sobre acesso e permanência de jovens de camadas populares na educação superior, infere que o tempo investido no trabalho como forma de sobrevivência impõe, em vários casos, limites acadêmicos aos estudantes, em função da restrita participação desses jovens na vida acadêmica. A autora mostra ainda como a “sobrevivência material” se associa a outros custos pessoais e, dentre eles, identifica o que

20 Os critérios sociais a que se referem os autores excluem o critério étnico-racial – negros e indígenas – e se

traduziram nas experiências das universidades em indicadores como a origem da escola pública ou renda per

capta inferior a um salário mínimo e meio. Já os critérios sociorraciais normalmente combinavam indicadores

como origem de escolas públicas e/ou renda com indicadores étnico-raciais que focalizavam as populações negras e indígenas. Nesse sentido, foram poucas as instituições de educação superior que institucionalizaram sistemas de reserva de vagas voltados apenas para as populações negras e indígenas dissociados de outros critérios.

21 Apesar de a meta do PNE/2014 para taxa de conclusão ter sido definida em 90%, os dados do Censo da Educação

Superior, nos anos 2011, 2013, 2015 têm revelado uma média em torno de 40% de estudantes que ao ingressarem na graduação em instituições públicas concluem seus cursos. Já a taxa de evasão, que é calculada com base nos alunos desistentes em relação ao total de alunos matriculados, em 2013, atingiu um índice de 17,8% nas instituições públicas.

chama de “mal-estar discente” emergido das disparidades socioeconômicas no ambiente universitário, principalmente em cursos considerados de alto prestígio (ZAGO, 2006). Esses dados demonstram o quanto há necessidade de aprimoramento das práticas de políticas públicas de permanência como estratégias de enfrentamento das desigualdades sociorraciais para a efetivação de uma educação superior mais diversa e mais justa.

Com base nesta discussão sobre os desdobramentos da instituição das ações afirmativas na educação superior, vê-se que essas políticas somaram esforços para o debate sobre a permanência de estudantes em universidades públicas. Conforme mencionado, a ampliação do número de estudantes matriculados na educação superior em situação de vulnerabilidade socioeconômica – como consequência do processo de expansão da educação superior e da implantação de mecanismos de reserva de vagas – alimentou o debate sobre a permanência, temática historicamente abordada em perspectivas de políticas universalistas voltadas à assistência estudantil.

2.4 PERMANÊNCIA DE ESTUDANTES NA PERSPECTIVA DAS AÇÕES