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Em 160 anos, Portugal foi atravessado por numerosas mudanças que, quase sempre, tiveram impactos nos territórios rurais e nas atividades agrícolas.3Como muitos investigadores têm realizado estudos que ana-

lisam diversas dimensões desses impactos, é possível identificar as prin- cipais tendências das políticas públicas e os indicadores económicos nacionais. Se, em meados do século XIX, o liberalismo económico faci-

litava a circulação global de produtos alimentares, a partir de finais desse século iniciou-se um longo período em que prevaleceu a defesa de me- didas protecionistas para a agricultura nacional. Até aos anos 60 do sé- culo XX, as ambições de autossuficiência alimentar andaram a par com

decisões políticas que visavam restringir as importações e maximizar a exploração dos recursos agrícolas do país. As características agro-ecoló- gicas do território aliadas à inovação permitiram alguns ganhos de pro- dutividade, mas raramente as colheitas foram suficientes para alimentar a população crescente do país. Em meados do século XX, a larga maioria

dos habitantes dos países europeus vizinhos (mesmo na Espanha gover- nada pela ditadura franquista) podia obter alimentos diversificados e su- ficientes, mas os portugueses continuavam a ter uma alimentação escassa e sem os nutrientes considerados essenciais pelas organizações interna- Ambiente, Território e Sociedade

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(2012-2015), com a seguinte equipa: Dulce Freire (investigadora principal), Amélia Branco, Conceição A. Martins, Cristina Prata, Daniel Lanero, Pedro Lains, Shawn Park- hurst, Victor Pereira e os bolseiros de investigação Carlos Faísca, Ana Margarida Rodri- gues e Cláudia Viana.

2As informações detalhadas sobre as fontes consultadas, as metodologias usadas e as

bases de dados estão disponíveis em www.ruralportugal.ics.ul.pt.

3É um período marcado por vários regimes políticos: as décadas da Monarquia Cons-

titucional, que a República substituiu em 1910, o autoritarismo da Ditadura Militar (1926- -1932) e do Estado Novo (1933-1974), o período revolucionário (1974-1976) e a consoli- dação da Democracia desde 1976.

cionais.4Todavia, a partir dos anos 60, o aumento das importações e a

disseminação de algumas inovações da revolução verde5foram melho-

rando o consumo alimentar (mais produção de leite, carne, frutas, etc.). Foi nessa década que decorreram as mudanças estruturais na economia e na sociedade portuguesas. Portugal foi o último país agrícola da Europa Ocidental, mas fez uma transição relativamente rápida para uma econo- mia assente em serviços e indústria. Na primeira metade do século XX, o

sector primário contribuía com cerca de 30% para o Produto Interno Bruto, na década de 80 essa percentagem já era 9% e não mais recuperou. A progressiva abertura dos mercados nacionais à diversidade de produtos agrícolas da Europa e do Mundo, acelerada com a integração na Comu- nidade Económica Europeia (1986), ajudou a marginalizar uma agricul- tura apresentada como sinónimo de atraso e pobreza, acentuando a de- pendência alimentar do exterior.

As condições variáveis de aplicação da Política Agrícola Comum, as diversas mudanças que têm afetado os territórios rurais e os desafios que se colocam à produção sustentável de bens alimentares, têm renovado o interesse pela agricultura portuguesa. Dois aspetos principais continuam a suscitar debate e a carecer de esclarecimento. Um prende-se com a ava- liação do contributo da agricultura para o crescimento económico do país. O segundo remete para a capacidade produtiva do território, no presente e nas próximas décadas. Ainda que estas sejam questões antigas, colocadas por sucessivas gerações de teóricos e práticos, as respostas perti- nentes não têm sido sempre as mes-

mas, porque se devem adequar aos contextos económicos, políticos e so- ciais específicos de cada época.

No final da primeira década do sé- culo XXI, os membros da equipa inter-

disciplinar que concebeu e executou o projeto antes referido consi deraram que o esclarecimento destas questões

Como alimentar Portugal? Produção agrícola desde 1850

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4Nos anos 50 do século XX, a média per capita podia não chegar às 2000 calorias diárias

(ver Freire 2011).

5Designação introduzida nos anos 1960 para referir as inovações científicas e tecno-

lógicas (mais fertilizantes químicos e fitossanitários; aposta nas variedades vegetais e es- pécies animais mais produtivas, etc.) que transformaram a agricultura mundial depois da II Guerra Mundial. Se até à década de 1980 se salientaram sobretudo os benefícios desta revolução, desde então têm sido, também, evidenciados os impactos negativos e têm-se procurado alternativas sustentáveis.

Quando se procuram soluções sustentáveis para alimentar o planeta, torna-se ainda mais pertinente examinar as expe- riências produtivas que, du- rante séculos, foram testadas nos diversos sistemas agro-eco- lógicos do Mediterrâneo.

carecia de conhecimento histórico mais detalhado sobre as agriculturas regionais. Adotar esta perspetiva permite contribuir para alguns dos de- bates internacionais em curso. Por um lado, estudos recentes têm sa- lientado a necessidade de identificar os fatores históricos que possam explicar as desigualdades das agriculturas regionais europeias. Este é um dos aspetos que está a ser reavaliado para traçar as grandes e as pequenas

divergências que, pelo menos, desde o século XVIIestão a afastar as eco-

nomias da Europa do Norte e do Sul. Por outro lado, uma agricultura assente na intensificação sustentável, o novo paradigma para a agricultura mundial, anunciado pela Food and Agricultural Organisation em 2011, exige que se compreenda como se têm articulado condições agro-eco- lógicas, biodiversidade cultivada e práticas agrícolas para viabilizar as agriculturas locais. Ainda que numerosas publicações forneçam infor- mações relevantes, verificou-se que persistiam lacunas e descontinuida- des nos dados disponíveis, o que dificultava análises detalhadas intra e inter-regionais.

Uma das tarefas da equipa visou construir séries contínuas de dados estatísticos que caracterizassem as agriculturas regionais. Como sabemos que o pensamento estatístico entrou na administração pública portuguesa em meados do século XIX, era expectável encontrar dados consistentes a

partir de então. Os dados anteriores a 1915 estão dispersos por docu- mentação diversa, produzida, por entidades regionais e nacionais, com distintos objetivos. Para recolher estas informações foi necessário procu- rar pequenas folhas ou livrinhos, muitas vezes manuscritos, entre milhares de documentos depositados no Arquivo da Torre do Tombo ou em algum dos arquivos distritais do Continente. A partir de 1915, os dados estão disponibilizados nas publicações do Instituto Nacional de Estatís- tica (INE). Ainda que se procurassem todos os dados suscetíveis de ca- racterizar as atividades agrícolas regionais (produção pecuária, agrícola e florestal; áreas cultivadas; consumo de fatores de produção, etc.), a do- cumentação encontrada apenas forneceu informações sistemáticas sobre produção: quantidades anuais, por distrito, para 22 produtos agrícolas. Contudo, como o INE limitou a recolha a doze produtos (trigo, milho, centeio, cevada, aveia, arroz, vinho, azeite, batata, feijão, grão e fava) só para estes foi possível construir séries para os 160 anos. A fragmentação dos dados e as frequentes mudanças de critérios das entidades que os re- colhem exigiram a normalização das séries (conversão de pesos e medi- das, uniformização das escalas espaciais, interpolação de dados em falta, etc.). Apesar das limitações, reuniram-se pela primeira vez séries desagre- gadas para os produtos economicamente mais relevantes desde 1850, o Ambiente, Território e Sociedade

que coloca Portugal entre os países europeus que dispõem de estatísticas agrícolas regulares para períodos mais recuados.