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Desafios e horizontes da participação cívica nas políticas públicas

O percurso da participação da sociedade civil na construção de políticas públicas tem-se caracterizado por uma grande variedade de processos a vá- rias escalas (Fung 2006; Gaventa e Barret 2010). Se bem que o conceito de participação pareça ser intuitivo, na medida em que remete para a inclusão de novos atores nos processos de tomada de decisão, ele revela na verdade uma grande complexidade. Diversos desafios, mecanismos, compromissos e arenas entre instituições de governo e cidadãos formal ou informalmente organizados tornam a participação um campo de estudo particularmente interessante (Bobbio 2006; Cornwall 2008; Fishkin 2009).

Se por um lado o tipo de cultura po- lítica instituída no contexto em causa exerce um papel crucial na criação de qualquer processo participativo, por outro será preciso captar o significado das necessidades sociais que a popula- ção exprime e reivindica, ou que pre- cisam ainda das «palavras apropriadas»

para serem esgrimidas no confronto com a classe política. Nas últimas duas décadas, foram numerosas as instituições governativas a nível local que apostaram no envolvimento da sociedade civil com fins, prioritariamente, de reaproximação entre a classe política e a sociedade. Não só os municí- pios das cidades têm encarado a crise de credibilidade e legitimidade dos governos dada a proximidade com os seus eleitores, como têm tornado o governo local um dispositivo de estudo único para problematizar o im- pacto das transformações das últimas décadas (Sassen 2002).1

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Se o Orçamento Participativo institui um jogo democrático que se pretende livre, resta entender quem pode tirar mais partido deste tipo de liberdade: os cidadãos ou os grupos auto-organizados?

1Dados recentes confirmam a tendência das últimas décadas no que diz respeito à

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Tendo em conta a natureza contextual dos desafios próprios dos pro- cessos participativos, este contributo coloca-se dentro das coordenadas es- paciotemporais da crise que tem abalado a Europa do Sul desde 2008, com foco no contexto urbano português e nos seus processos participativos. Em Portugal, a promoção desses processos à escala urbana enquadra-se num contexto de «recente» instalação de um regime democrático – o país faz parte da chamada «terceira vaga» da democracia na Europa, tendo o regime ditatorial terminado só em meados dos anos 1970 – e de uma cres- cente desafeição da sociedade para com a vida política e seus representantes (as taxas de abstenção eleitoral são das mais altas dos países europeus).

Após uma primeira fase pioneira nos anos 1990, algumas cidades por- tuguesas iniciaram novos mecanismos de envolvimento dos cidadãos a partir da primeira metade dos anos 2000.2Neste contexto, a cidade de

Lisboa, governada pelo Partido Socialista desde 2007, desempenhou um papel central na experimentação de novos processos participativos (Dias 2013). Dois exemplos particularmente significativos são o primeiro Or- çamento Participativo implementado por uma capital europeia a nível municipal em 2008, e o Programa «BIP-ZIP – Bairros de Intervenção Prioritária e Zonas de Intervenção Prioritária», iniciado em 2011 e no- meado em 2013 como «best participatory practice» pelo Observatório Internacional da Democracia Participativa.3

A partir dos cenários abertos pela e através da participação na Europa do Sul e, mais concretamente, em Portugal, tenho desenvolvido nos úl- timos anos uma investigação híbrida em forma e conteúdo. Por um lado, a minha formação em Psicologia e Sociologia levou a que o meu interesse pela participação se concentrasse nos significados profundos das mudan- ças imaginadas, planeadas, esperadas, e por vezes realizadas e outras frus- tradas, que a participação transporta consigo (Falanga 2013). O meu en- volvimento em experiências no terreno como facilitador e consultor ajudaram-me a tornar a reflexão desenvolvida no âmbito académico mais atenta às formas com que o desenho institucional dos processos pode criar novos cenários. Com o fim de sistematizar as informações que de- correm dos processos participativos, tenho vindo a propor um modelo

reside em cidades, onde se produz cerca de 70% do PIB. Se bem que as cidades ocupem apenas aproximadamente 2% da superfície terrestre, elas tornaram-se, de facto, o centro estratégico da produção e da difusão de capital económico, social e político (UN 2014).

2Em 2014 foi ainda iniciado o Projeto Portugal Participa: Caminhos para a Inovação

Societal à escala nacional para o mapeamento e a promoção dos processos participativos em Portugal: www.portugalparticipa.pt.

3Para mais informações sobre o Orçamento Participativo: www.lisboaparticipa.pt. Para

de análise formado por cinco eixos: I – quem propõe; II – quem parti- cipa; III – como se aborda a participação; IV – como se constroem as políticas públicas; V – quem gere (Falanga 2014). Das combinações entre os eixos abrem-se múltiplas pistas para um conhecimento não apenas mais pormenorizado dos desenhos institucionais, como também crítico para com os cenários abertos através da participação.

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Figura 22.1 – Logotipo do «OP – Orçamento Participativo 2015»

Fonte: www.cm-lisboa.pt.

Figura 22.2 – Um modelo para analisar a participação nas políticas públicas

Fonte: Falanga 2014. Eixo I Quem propõe Eixo II Quem participa Eixo V Quem gere Eixo III Como se aborda a participação Eixo IV Como se constroem as políticas públicas

A aplicação deste modelo aos dois processos participativos de Lisboa – o Orçamento Participativo e o BipZip – visa apresentar de forma su- mária como a partir do enquadramento dos desenhos institucionais se possa encarar uma análise mais crítica dos cenários no contexto.

O Orçamento Participativo de Lisboa nasce de uma proposta lançada pelo executivo do governo municipal (eixo I) direcionada a todos cida- dãos não formalmente organizados (eixo II). Cada cidadão pode propor e, após uma fase de triagem efetuada por uma equipa interna em sinergia com outras unidades administrativas da autarquia (eixo V), votar nos pro- jetos nas assembleias bem como através de dispositivos online e SMS. A votação dos projetos é livre e aberta, e isto permite aos cidadãos auto- mobilizarem-se e organizarem-se para que os seus projetos obtenham o apoio necessário para ganhar o financiamento (eixo III). Por fim, a im- plementação dos projetos é feita pela autarquia sem o envolvimento di- reto dos proponentes e/ou da sociedade (eixo IV).

O Orçamento Participativo de Lisboa abre para um modelo de intera- ção onde o foco no poder do cidadão fundamenta o processo na sua ín- tegra. A liberdade individual garantida pelo Orçamento Participativo pro- porciona margens de manobra novas no que concerne à formação de grupos de interesse na sociedade, levantando, no entanto, interrogações relacionadas com os seus efeitos em termos de justiça social. É evidente como as «campanhas para o voto» organizadas por grupos de cidadãos a favor de determinados projetos podem beneficiar o forta lecimento de in- teresses particulares em detrimento de soluções para necessidades comuns. A carência de supervisão por parte do governo local sobre o impacto des- ses grupos junto à escassa atenção sobre o potencial cívico que existe na auto-organização dos mesmos corre o risco de prejudicar atores sociais mais «fragilizados» no processo. Se o Orçamento Participativo institui um jogo democrático que se pretende livre, resta entender quem pode tirar mais partido deste tipo de liberdade: os cidadãos ou os grupos auto-orga- nizados?

O Programa BipZip nasce também por vontade do executivo munici- pal (eixo I) e visa envolver cidadãos organizados em formas associativas para a criação de parcerias com outras entidades (como, por exemplo, as Juntas de Freguesia) (eixo II). As parcerias propõem projetos de desen- volvimento comunitário, que são avaliados por um júri de peritos exter- nos à autarquia (eixo III). As parcerias são responsáveis pela implemen- tação dos projetos em conjunto com a Câmara (eixo IV). Por fim, o Programa é gerido por uma divisão administrativa que é supervisionada por uma equipa externa de consultores (eixo V).

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