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Comunicação entre políticas públicas do lixo e cidadãos: uma componente a reforçar

Nas políticas públicas dos resíduos urbanos existe um certo alhea- mento em relação ao quotidiano da população e à forma como esta pro- duz e descarta o seu lixo. A lógica dominante de atuação top-down, que tem marcado a implementação da recolha seletiva, cria uma relação de comunicação pouco eficaz e satisfatória para ambos os lados. Desde logo porque impõe um conceito de resíduos. As políticas públicas apresen- tam-se fechadas nos seus quadros de referência sobre o que é lixo, inde- pendentemente dos quadros de referência e das práticas domésticas do público que servem. Observa-se uma certa incapacidade de absorver e incorporar – numa lógica bottom up – a multiplicidade de práticas e de relações já estabelecidas no quotidiano (horários e rotinas, dinâmicas fa- miliares, organização do espaço doméstico, tipo de recipientes utilizados, etc.) em torno do ato de deitar fora o lixo do espaço privado para o es- paço público. Existe uma interação contínua entre o quotidiano da po- pulação através das suas práticas de «deitar fora o lixo» e os sistemas de A (in)comunicação entre políticas públicas do «lixo» e os cidadãos

recolha de lixo implementados, mas sem que exista conhecimento con- creto um sobre o outro.

As políticas públicas podem contribuir de uma forma efetiva para a criação de uma atitude de cooperação entre cidadãos e entidades públicas para fazer face ao desafio coletivo que o excesso de lixo coloca de uma forma sustentada e numa lógica colaborativa, que podemos designar por

side by side.

Numa fase em que a questão da separação do lixo já está de integrada nos quadros conceptuais de uma grande parte da população, a necessi- dade de uma difusão vertical tende a diminuir, surgindo o potencial de uma difusão horizontal. Neste sentido, as entidades do poder local, e também os agentes responsáveis pela recolha, pela sua proximidade à po- pulação, estão numa situação privilegiada para desempenhar um papel efetivo de mediadoras entre as políticas nacionais e os cidadãos. Tal não significa que, neste momento, estas entidades estejam capacitadas a nível de recursos, sobretudo humanos, para desenvolver este trabalho, mas a sua situação confere-lhes, sem dúvida, esse potencial para trabalhar side

by side com a população que servem. Ou seja, desempenhar um papel no

reforço da comunicação e da confiança, fundamental para que a respon- sabilidade partilhada sobre o ativo «lixo coletivo» se torne algo efetivo e presente.

Deste modo, podemos afirmar a relevância da continuidade da inves- tigação nesta temática. Uma das componentes que merecem ser apro- fundadas é a comunicação, através do desenvolvimento de investigação- -ação com o objetivo de ensaiar modelos de participação e envolvimento das populações, bem como do poder local e dos agentes do sector dos resíduos que operam localmente, isto é, criar espaço para que a comuni- cação se estabeleça efetiva e diretamente. A mediação e facilitação podem ser técnicas utilizadas para criar a base de uma relação com valor para todas as partes interessadas (stakeholders) e estabelecer uma plataforma de comunicação que reflita os interesses comuns.

Por seu turno, o papel da contentorização – nas práticas dos agregados, na forma como despejam o lixo, nas suas implicações nos gestos e nos tempos quotidianos, assim como nos cenários das envolventes das resi- dências – pode ser alvo de um estudo específico, ou articulado com o ponto anterior, isto é, em que se equacione a rede infraestrutural em ter- mos de estratégia comunicacional, isto é, como um meio de comunica- ção entre entidades e população. Esta componente material da prática – os ecopontos – merece atenção de acordo com o lugar que ocupa na interação entre políticas, entidades e população. É através do uso que Ambiente, Território e Sociedade

fazem do equipamento disponibilizado que a população «responde» às «propostas» nele implícitas por parte das entidades com responsabilida- des no sector dos resíduos. Trata-se de uma relação de interação mediada de forma muito particular pelo contentor-ecoponto e isso implica um reforço nessa mediação, cujas formas podem variar.

Por fim, o alargamento da recolha porta-a-porta que tem vindo a ser implementada em Lisboa desde 2003, substituindo o ecoponto na via pública, tem desencadeado em certas zonas de edificado sem condições

adaptadas a esse tipo de recolha uma elevada insatisfação e revelado a

fragilidade e incapacidade social dos condóminos de lidarem com a ques- tão de um lixo em transição dentro do espaço interior do prédio. Há um novo conflito do lixo instalado entre vizinhos e com o próprio sistema de recolha, que desmotiva a separação e não promove o bem-estar social. A (in)comunicação entre políticas públicas do «lixo» e os cidadãos

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Figura 9.3 – Monstros no passeio, Massamá

Mais uma vez a comunicação entre os diversos atores envolvidos está no centro da questão.

O lixo não desaparece simplesmente: atravessa as práticas quotidianas, as decisões políticas, as opções económicas e os limites ambientais, cons- tituindo um desafio à criação de um futuro sustentável que implica gerar confiança e concretizar, em tempo útil, políticas públicas capazes de pro- mover responsabilidades e deveres partilhados.

Referências

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