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Domesticando a complexidade e a incerteza Apesar dos desenvolvimentos que vão ocorrendo na busca de abor-

dagens sistémicas que integrem a complexidade como uma característica fulcral e intrínseca às dinâmicas sociais, um/a antropólogo/a da incerteza e complexidade é incapaz de fornecer, a um grupo de investigação em que se integre, a receita mágica para superar este problema. Simples- mente, porque ela ainda não existe.

É provável que o caminho para a encontrar passe por um novo pro- cesso de inspiração reflexiva noutras ciências, focando a atenção nas ver- tentes delas que tomaram como objeto a complexidade. Depois de as ciências de cariz sociológico terem utilizado como modelo práticas dis- ciplinares externas como a física newtoniana, várias vertentes da biologia, a linguística ou a cibernética, parece-me ser altura de explorar as poten- cialidades das teorias do caos determinístico, com origem na climatologia e que tiveram o seu maior desenvolvimento no quadro da física (Lorenz 1993; Grebogi e Yorke 1997).

Ao fazê-lo de uma forma que não se limite à metáfora e que integre os particularismos dos fenómenos sociais, seremos confrontados com princípios que subvertem quer os nossos hábitos de trabalho e análise, quer a nossa própria visão das dinâmicas sociais.

Assumiríamos, por exemplo, um pouco à imagem do que Lévi-Strauss (2008) postulou para os mitos, que o foco da análise não devem ser as variáveis mas as interações que mantêm entre si, podendo, em função desse quadro geral, pequenas mudanças ser irrelevantes ou, pelo contrá- rio, provocar ruturas e recomposições do sistema. Assumiríamos também que não existem variáveis determinantes ou secundárias a priori, podendo uma que é fulcral num determinado momento e quadro de relações tor- Para que nos servem antropólogos da incerteza e da complexidade?

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Um antropólogo terá a incó- moda tendência para questio- nar o que é que um determi- nado «indicador», por evidente que possa parecer aos seus co- legas, realmente indica.

nar-se quase irrelevante noutros – e vice-versa. Assumiríamos ainda, na sequência disso, que conjugações particulares de condições gerais (in- cluindo fatores frequentemente secundarizados, como a agência, a voli- ção, os modelos de controlo social ou a memória e interpretação do pas- sado) são componentes cruciais da análise causal, esvaziando de pertinência heurística muitas das dicotomias hierarquizadas com que nos habituámos a raciocinar: fatores necessários e suficientes, variáveis inde- pendentes e dependentes, infraestrutura e superestrutura, constrangimen- tos sociais e agência individual, estrutura e conjuntura, deliberação e ca- sualidade.

Contudo, se existe um longo caminho a percorrer até que princípios como estes sejam conjugados num quadro teórico coerente e operacio- nalizável, isso não quer dizer que nos resguardemos numa atitude de bu-

siness as usual.

Por um lado, porque as tentativas de analisar fenómenos a partir desses princípios inovadores se têm revelado adequadas e, quando versam casos já estudados de outras formas, fornecem uma mais-valia de sentido e compreensão (Ward 1995; Lindenfeld 1999; Mosko e Damon 2005). Por outro, porque ao atentarmos num fenómeno complexo e de mudança com que estejamos familiarizados, verificaremos que a sua dinâmica e/ou racionalidade corresponde a uma lógica de caos determinístico (Granjo 2007). Por outro, ainda, porque o paradoxo que identifiquei constitui um problema grave e que não desaparece por o ignorarmos. Por fim, e numa perspetiva pragmática, porque existem diversas formas de benefi- ciar das inovações conceptuais que a teoria do caos determinístico pode induzir, sem a aplicar em sentido estrito.

Antes de mais, a simples assunção de que, para analisar adequada- mente um fenómeno complexo, é necessário identificar de forma exaus- tiva os fatores que estão nele envolvidos e o tipo de relações que mantêm entre si, conduz a quadros surpreendentemente pormenorizados, tor- nando as abordagens subsequentes muito mais completas e adequadas. É disso exemplo a figura 3.2, representativa dos fatores, interações e in- fluências que foram pertinentes nos motins de Maputo, ocorridos em Setembro de 2010.

Para além disso, perante um ponto de partida desta natureza, abre-se a possibilidade de diferentes níveis de abrangência e aprofundamento da pesquisa subsequente, de entre os quais a equipa de investigação poderá escolher, em função das condições de que dispõe e dos instrumentos analíticos que está disposta a utilizar (Granjo 2013). No entanto, passam a ser para ela evidentes quer as opções que lhe são possíveis (incluindo Ambiente, Território e Sociedade

Para que nos servem antropólogos da incerteza e da complexidade?

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Fonte: Elaboração própria.

algumas que não seriam concebíveis de outra forma), quer os eventuais custos científicos de excluir da análise parte dos fatores e relações que foram identificados.

A par do seu próprio trabalho de pesquisa e das suas contribuições correntes para que os fenómenos complexos sejam, tanto quanto possí- vel, concebidos e abordados como tal pela equipa em que se insere, diria que é esta a principal mais-valia que, atualmente, um/a antropólogo/a da incerteza e complexidade pode trazer a um grupo de investigação multidisciplinar.

Referências

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Gluckman, Max. 1987. «Análise de uma situação social na Zululândia moderna». In An- tropologia das Sociedades Complexas – Métodos, org. Bela Feldman-Bianco. São Paulo: Global, 227-344.

Granjo, Paulo. 2007. «Determination and chaos, according to Mozambican divination». Etnográfica, XI (1): 9-30.

Granjo, Paulo. 2013. «Terreno, teorias e complexidade: como não descobrir só o que se espera descobrir». In O que É Investigar?, Paulo Granjo et al. Maputo: Escolar Editora, 25-49.

Grebogi, Celso, e James Yorke, eds. 1997. The Impact of Chaos on Science and Society. Tó- quio/Nova Iorque United Nations University Press.

Leach, Edmund. 1974. Repensando a Antropologia. São Paulo: Perspectiva. Lévi-Strauss, Claude. 2008. Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosac Naify.

Lindenfeld, David. 1999. «Causality, chaos theory, and the end of the Weimar Republic». History and Theory, 38 (3): 281-299.

Lorenz, Edward. 1993. The Essence of Chaos. Washington: University of Washington Press. Mosko, Mark, e Fred Damon. 2005. On the Order of Chaos: Social Anthropology and the

Science of Chaos. Oxford: Berghahn.

Ward, Margaret. 1995. «Butterflies and bifurcations: Can chaos theory contribute to our understanding of family systems?». Journal of Marriage and the Family, 57: 629-638. Waldrop, Mitchell. 1992. Complexity: the Emerging Science at the Edge of Order and Chaos.

Nova Iorque: Simon & Schuster.

Ambiente, Território e Sociedade

Parte II