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CAPÍTULO 3 AS ATIVIDADES DE SUBSISTÊNCIA DOS ARAWETÉ

3.2. As atividades de subsistência

3.2.1 Agricultura

O consumo de milho sempre foi mais importante que o de mandioca para os Araweté (VIVEIROS DE CASTRO, 1986). Atualmente, tanto o consumo de milho quanto o de mandioca ocorrem o ano todo, sendo o de milho ainda superior em quantidade.

A maioria das famílias planta dois roçados novos a cada ano, sendo um principalmente de milho e outro de mandioca. Em ambos os roçados são plantados outros itens, embora o milho e a mandioca predominem. Algumas famílias cultivam um único roçado por ano, no qual plantam milho, mandioca e todos os outros produtos e há poucas famílias que abrem três roçados ao ano. Sogro e genro ou pai e filho podem compartilhar um dos dois roçados, usualmente o de milho. Geralmente o homem faz seu roçado de milho junto com o sogro até

86 Dados e informações levantados em observações de campo e entrevistas realizadas na TI Araweté/Igarapé

Ipixuna. Entrevistas semi-estruturadas com: Tiñarai-do Araweté (26/01/05), Aranami Kuni-no Araweté

(26/01/05), Kuni Awy-do Araweté (26/01/05, 21/11/05 e 26/11/05), Moikato-hi Araweté (02/02/05), Moikato-ro Araweté (02/02/05), Irawy Araweté (03/02/05), Tuãe Nuãe Araweté (04/02/05), Tomo-ro Araweté (27/10/05), Tatua-ro Araweté (28/10/05), Irawy-do Araweté (02/11/05), Ytanopi-do Araweté (14/11/05), Arajo-ro Araweté (16/11/05), Ñorodma-ro Araweté (16/11/05), Moiwerã Araweté (18/11/05), Añaño-ro Araweté (19/11/05), Karomirã Araweté (20/11/05), Awyñoo-ro Araweté (24/11/05) e Kokoi Araweté (26/11/05). Entrevistas informais com: Awyñoo Araweté (14/02/05), Añaño-ro Araweté (08/07/05, 27/10/05, 15/11/05 e 22/11/05), Aranami Kuni-no Araweté (29/07/05 e 18/11/05), Madakupé Araweté (26/10/05), Jurui-no Araweté (14/11/05 e 21/11/05), Ñuruawy Araweté (14/11/05), Madapi-do Araweté (20/11/05), Pidy-no Araweté (20/11/05), Awatire Araweté (25/11/05), Heweie-hi Araweté (25/11/05), Mikurai-ro Araweté (25/11/05), Irawy-do Araweté (TI Araweté/Igarapé Ipixuna, 14/11/05), Ñorodma-ro Araweté (23/11/05).

que sua primeira filha se case, quando então passa a compartilhar o roçado de milho com seu genro.

Os Araweté reconhecem três tipos principais de solo, de acordo com sua própria classificação. Os solos, em ordem de preferência, são: (i) preto, que dizem ser o melhor para o plantio do milho; (ii) vermelho, bom para o plantio de mandioca e o segundo melhor para o plantio do milho e (iii) arenoso, que pode ser usado para o plantio de milho ou de mandioca. Alguns Araweté dizem ser mais fácil colher a mandioca no solo arenoso do que no vermelho, do que discordam outros que argumentam que a mandioca não se fixa bem no solo arenoso e pode ser arrancada pelo vento.

Apesar de ser esta a ordem de preferência, ao se observar o tipo de solo dos roçados amostrados, nota-se que, na prática, a situação é diferente. Nenhum dos roçados foi aberto em área de terra preta, 53% dos roçados se encontra em solo arenoso (representando uma área total de 140.706 m2) e o restante em solo vermelho (ocupando 104.218 m2). A área total ocupada por todos os roçados amostrados (n=40) foi de aproximadamente 244.924 m2.

Os roçados de milho são mais numerosos e possuem maior área do que os de mandioca. De todos os roçados amostrados, cerca de metade (55%, n=22) eram principalmente de milho e uma quantidade ligeiramente menor dos roçados (45%, n=18) era de mandioca. Em termos de área ocupada, a diferença entre os tipos de roçados aumenta consideravelmente. Os roçados de milho ocupam o equivalente a 87% da área amostrada (213.556 m2) enquanto os roçados de mandioca somam apenas 13% da área (31.368 m2).

Os tipos de solo parecem não diferir, na prática, segundo o tipo de roçado (i.e. mandioca ou milho). Pouco mais da metade (55%; n=12) dos roçados de milho estão localizados em solo arenoso e o restante em solo vermelho. No caso dos roçados de mandioca, metade dos roçados (n=9) está localizada em cada um destes dois tipos de solo. Já quanto ao

tamanho dos roçados e a distância até a aldeia há diferença razoável entre os roçados de milho e mandioca, sendo os primeiros em média maiores e mais distantes (Tabela 3.3).

Tabela 3.3 - Área dos roçados de milho e mandioca e distância à aldeia

Tipo de roçado

N Área (m2) Distância à aldeia (km)

Média DP Mín.

(± erro) (± erro) Máx. Média DP

Milho 22 9.707,08 3.195,72 5.461,69 (± 101,44) 18.295,06 (± 62,15) 2,46 2,16

Mandioca 18 1.742,67 566,37 (± 0,64) 854,88 (± 10,81) 2.736,63 0,46 0,41

Todos 40 6.123,10 4.662,71 854,88 (± 0,64) 18.295,06 (± 62,15) 1,56 1,90

Em relação às unidades domésticas, a área total cultivada por cada uma varia de 2.259 m2 (0,23 ha) a 19.301 m2 (1,93 ha) (m=10.205 m2;dp=4.554 m2). A área cultivada per capita (i.e. o produto da divisão da área de cultivo da unidade doméstica pelo número de habitantes desta) varia entre 753 m2 (0,08 ha) e 3.010 m2 (0,30 ha) (m=1.670 m2;dp=547 m2).

A diferença de área cultivada pelas unidades domésticas é explicada por três informantes Araweté como sendo devida ao número de famílias nucleares dependentes do roçado. Segundo eles, roçados pertencentes a famílias extensas são maiores do que os de famílias nucleares, “para que não falte alimento para todos”. Segundo outros informantes, uma mesma unidade doméstica pode apresentar variação anual no tamanho de seus roçados, em decorrência de fatores como (i) o verão curto – chove mais do que o normal -, que faz com que eles broquem uma área menor porque o roçado não queimará direito; (ii) a presença de formigas, que faz com que o roçado seja menor porque não se usa a área ocupada por elas; (iii) a presença de pássaros que se alimentam do milho, o que exige maior área plantada para compensar as perdas e (iv) o número de pessoas que ajudaram na abertura, pois quanto menos

pessoas, menor será a área do roçado. Na maioria das vezes os Araweté dizem ter feito seus roçados maiores ou menores que o ano anterior, mas não sabem explicar o motivo ou então dizem que “é para não faltar alimento” ou, ao contrário, que “sobrou muito” no ano anterior.

Quando solicitado para comparar o tamanho dos roçados de hoje com antigamente, um informante disse que atualmente eles são maiores, pois o facão facilita a broca, que antes era feita apenas com as mãos.

Abertura dos roçados

A abertura de um roçado consiste em três fases: a broca, a derrubada e a queima, todas realizadas exclusivamente por homens. Para a broca é utilizado o facão e para a derrubada, o machado e, quando disponível, a motoserra. Existe apenas uma motoserra na aldeia, pertencente a um dos líderes oficiais, e esta é utilizada pelo proprietário e por seus parentes e amigos próximos.

A abertura dos roçados novos somente se inicia após o término da estação das chuvas e da coleta de sementes de mogno, em momento indicado pelos homens mais idosos da aldeia. Apesar disso, nem todas as famílias iniciam a abertura de seus roçados ao mesmo tempo, podendo ocorrer intervalos de vários dias, dependendo das outras atividades nas quais a família esteja envolvida, como colheita do seu milho ou a abertura do roçado comunitário.

Primeiramente, cada homem escolhe onde abrirá o seu roçado, considerando o tipo de solo e a vegetação, bem como a ausência de formigas e pedras. A seguir, o homem marca os limites da área escolhida, derrubando trechos da mata e deixando algumas árvores grandes nas bordas como referência. Após isso, informa a algum líder ou idoso influente sobre qual o local de sua escolha, garantindo assim que outra pessoa não o utilize.

Os primeiros roçados a serem abertos são os de milho, entre julho e agosto, depois de encerrada a colheita do milho no roçado do ano anterior. Em geral, os roçados de milho são abertos em áreas de floresta em estádio avançado de regeneração, que ficam relativamente distantes da aldeia, mas preferivelmente, em localidades próximas ao roçado do ano anterior. No caso desses roçados, tanto a broca quanto a derrubada são realizadas em pequenos mutirões, formados por parentes e amigos que, alternadamente, abrem o roçado de cada um de seus membros. As esposas acompanham os maridos para preparar a alimentação. Assim que concluem a broca dos roçados de milho de todos os integrantes do mutirão, o grupo retorna ao primeiro roçado brocado, para derrubá-lo. Todos os roçados são então derrubados seguindo a ordem em que foram brocados. A abertura de um roçado de milho demora cerca de três a dez dias, dependendo do seu tamanho e do número de homens envolvidos.

Os roçados de mandioca são abertos entre os meses de outubro e novembro. Os homens escolhem a área onde farão seus roçados de acordo com o tipo de solo e a proximidade da aldeia, pois a mandioca é muito pesada para ser carregada por longas distâncias. Sendo assim, os roçados de mandioca são abertos majoritariamente em áreas de capoeira. Na maioria dos casos é apenas o homem adulto proprietário do roçado que realiza a broca e a derrubada, mas há situações em que parentes ajudam. Todo o processo de abertura demora de um a oito dias. É interessante ressaltar que os roçados de mandioca dos líderes oficiais são abertos com ajuda de todas as pessoas que “seguem” sua liderança, as quais geralmente moram próximas a eles, como exemplifica um habitante da aldeia, Iwãpajo-ro Araweté. Ao ser questionado se iria ajudar na abertura do roçado de mandioca do líder Añaño-ro, ele respondeu: “Não, eu não mora perto dele. Se fosse a roça do Kuni Nady-no nóis ia” (TI Araweté/Igarapé Ipixuna, 28/10/05) 87.

Os roçados, tanto de milho como de mandioca, são queimados no final da seca, em outubro ou novembro. Nessa época, os roçados de milho já secaram por cerca de dois meses e os de mandioca por duas a três semanas. A decisão de quando os roçados serão queimados não é coletiva, embora alguns homens conversem e decidam atear fogo a seus roçados em um mesmo dia. Geralmente são os homens idosos os primeiros a queimarem seus roçados. O proprietário do roçado coloca fogo no roçado de milho (Figura 3.1) e, no mesmo dia ou no dia seguinte, no de mandioca. Cada roçado queima por cerca de meio dia e nem sempre é queimado completamente. Neste caso, alguns homens ateiam fogo uma segunda vez.

Após terem sido queimados, os roçados de mandioca são limpos, isto é, todos os galhos e troncos mal queimados são retirados e empilhados na borda do roçado, deixando a área razoavelmente livre. Essa madeira retirada do roçado é empilhada na borda deste para futuramente ser utilizada como lenha, de acordo com a necessidade da família proprietária do roçado. Já os roçados de milho não são limpos em nenhum momento e, portanto, os troncos mal queimados permanecem espalhados pelo roçado.

Além da área dedicada ao roçado propriamente dito, o caminho aberto até ele também pertence ao proprietário. Caso outra família deseje abrir seu roçado neste caminho, ela deve solicitar a autorização do proprietário original.

Plantio

Pouco tempo após os roçados terem sido queimados, o plantio pode ser iniciado, sendo que a época de plantio varia de um vegetal para outro, de acordo com as chuvas. A variedade de itens plantados difere de família a família, mas é sempre maior nos roçados de milho. Segundo os informantes Araweté, isso ocorre porque os roçados de mandioca estão próximos à aldeia e, portanto, são sujeitos à visita indesejada de terceiros. Algumas famílias plantam

apenas mandioca em seus roçados de mandioca, pois dizem que ela ocupa todo o espaço (“entope muito”, dizem eles). De todos os roçados de mandioca, metade (n=9) contém apenas mandioca ou, no máximo, mais um cultivo (geralmente abacaxi ou cará). Nos roçados de milho são plantadas, no mínimo, quatro espécies e metade dos roçados possui entre seis e oito espécies. Os vegetais que os Araweté costumam plantar em seus roçados são: milho e pipoca (variedade de milho), mandioca e macaxeira, batata-doce, cará, mamão, banana, cana-de- açúcar, abacaxi, goiaba (Psidium guajava L.), manga (Mangifera spp), algodão, urucum, tabaco (Nicotiana tabacum L.), curauá e tiririca-preta88 (Cardiospermum halicacabum L.). À exceção do milho e da pipoca, que são plantados em esquema de mutirão, os vegetais são plantados pelo casal proprietário do roçado, algumas vezes com a ajuda de seus filhos mais velhos ou genro(s). Os filhos pequenos costumam permanecer na aldeia devido ao sol forte a que estariam sujeitos no roçado. O principal instrumento utilizado para o plantio é a enxada, embora alguns tenham informado que também utilizam o pau-de-cavar89.

Tanto nos roçados de milho quanto nos de mandioca, os primeiros itens a serem plantados, logo depois de queimados os roçados, são a mandioca e a macaxeira, sendo os homens responsáveis por cavar os buracos e as mulheres por inserir a maniva90. A seguir, as mulheres plantam o algodão e logo nas primeiras chuvas, o casal planta a batata-doce e o cará, seguidos do mamão, da banana e dos outros vegetais. Só depois, quando as chuvas estiverem mais freqüentes, é que o milho e a pipoca são plantados, o que geralmente ocorre em dezembro91.

Nos roçados de mandioca, esta e a macaxeira são plantadas por toda a área do roçado, em densidade (número de pés por unidade de área) muito maior do que nos roçados de milho.

88 As sementes são utilizadas pelos Araweté para confecção de colares. 89 Instrumento tradicional (ver VIVEIROS DE CASTRO, 1986). 90 Pedaço do caule do pé de mandioca que é plantado.

91 Segundo o chefe de posto Nivaldo Porfírio Rodrigues Gomes (entrevista informal, TI Araweté/Igarapé

Ipixuna, 20/01/05) os roçados abertos em 2004 foram plantados somente em janeiro de 2005, devido ao atraso nas chuvas.

Quando plantam cará e batata, estes são plantados em baixa densidade, dispersos pelo roçado, embora alguns enfatizem que não se deve plantar batata-doce nos roçados de mandioca porque a batata produz muitas folhas e cobre todo o solo. Já os frutos e a cana-de-açúcar são plantados nas bordas do roçado. A única exceção é o mamão, cujos poucos pés plantados ficam espalhados pelo roçado.

Nos roçados de milho, a maior parte da área é plantada com milho e pipoca. A mandioca e a macaxeira são plantadas espalhadas pelo roçado, de forma bem esparsa e o cará e a batata são plantados entremeados ao milho, mas apenas em parte do roçado. Já os frutos são plantados em áreas específicas do roçado, delimitadas para cada espécie (Figura 3.2). Estes bolsões onde estão os frutos geralmente se encontram em pontos de fácil acesso.

Assim como acontece com as outras fases dos roçados, são os homens idosos que indicam quando é hora de plantar o milho que, segundo eles, coincide com a época do fruto chamado golosa grande e com o amadurecimento da castanha-do-Brasil. No dia anterior ao plantio do milho e da pipoca, os proprietários deixam os grãos de molho em água para que amoleçam. Estes são plantados em esquema de mutirão: o casal proprietário do roçado oferece alimento aos companheiros que o ajudarão a plantar, geralmente os mesmos indivíduos que participaram do mutirão para abertura do roçado. Os homens cavam os buracos e as mulheres jogam o milho dentro. Demora menos de um dia para plantar o milho em cada roçado e, se o grupo for rápido ao plantio, é possível plantar até três roçados (i.e. de três pessoas do grupo) em um único dia.

Alguns vegetais são plantados também nos quintais das casas e pertencem à família que os plantou. Destacam-se o abacaxi, o urucum, o mamão, a banana, a cana-de-açúcar, o curauá, a goiaba e a cuia (Crescentia cujete L.).

Colheita

O milho-verde é colhido a partir de março e o milho maduro somente entre junho e julho. Apenas o casal proprietário do roçado é responsável pela colheita de seu milho e da pipoca (nesta seqüência temporal), empregando cerca de cinco dias na tarefa. Depois de colhido todo o milho, o casal organiza mutirões para colocar o milho/pipoca em paneiros (cestos de palha), amarrá-los e colocá-los sobre o jirau92 construído no próprio roçado. Esses vegetais permanecem no jirau o resto do ano e, sempre que necessário, a família retorna para buscar mais milho ou pipoca. Sempre sobra no jirau bastante milho, que não será usado nem para consumo nem para plantio do roçado do ano seguinte.

A mandioca é colhida ao longo do ano, no roçado do ano anterior, de acordo com a necessidade de consumo de farinha. O restante da mandioca é deixado no roçado para ser colhido quando necessário. A farinha de mandioca é torrada em uma das cinco casas de farinha comunitárias existentes na Aldeia Ipixuna.

Tanto os roçados de milho quanto os de mandioca são cultivados por apenas um ano, sendo então abandonados para regeneração. Os Araweté dizem que a mandioca ficaria muito fina se fosse plantada por duas vezes seguidas no mesmo roçado. Os roçados dos dois ou três últimos anos, onde não há mais milho, continuam sendo usados pelos proprietários para colheita de frutos e, algumas vezes, de mandioca e macaxeira. Esses roçados antigos ainda pertencem aos proprietários e, terceiros, precisam de autorização para colher seus produtos.

92 Estrado de varas que serve de supporte para objetos, no caso, os paneiros contendo milho, pipoca e cará. Os

Foto: Rica Pereira

Figura 3.1. Homem colocando fogo em seu roçado

Foto: Rica Pereira

Roçado comunitário de arroz

Além dos roçados familiares, anualmente é aberto um roçado comunitário com cerca de 4,8 ha93, no qual é plantado apenas arroz. Este roçado, incentivado pela FUNAI, é aberto às margens do Igarapé Ipixuna, chegando até o limite da água. Após verificar a predação por aves de parte do arroz plantado, o chefe de posto solicitou à FUNAI que forneça agrotóxicos94 para o roçado de arroz. Mesmo com as perdas por herbivoria, em 2005 todas as famílias Araweté que se envolveram com o roçado puderam colher volume suficiente de arroz para consumo próprio por muitas semanas.