• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 – EFEITOS INDIRETOS DA PARTICIPAÇÃO NO MERCADO NO

1.5 As transformações no uso de recursos pelos povos indígenas

1.5.2. Efeitos na caça

A caça é considerada uma das atividades causadoras de grandes impactos nas florestas tropicais quando ocorre super exploração (SIRÉN; CARDENAS; MACHOA, 2006), que causa efeitos diretos nas populações dos animais caçados. A redução da população de uma espécie animal produz alterações negativas no ecossistema (OLMOS; BERNARDO; GALETTI, 2004), uma vez que prejudica as funções ecológicas que essa população desempenha, como por exemplo, a dispersão de sementes e a herbivoria (WINTERHALDER; LU, 1997).

A maior parte da fauna amazônica é composta por invertebrados, porém seu consumo é mais relevante apenas em alguns povos indígenas habitantes dos rios de águas negras (MORAN, 1993) ou do Juruena, outro rio considerado pobre em nutrientes (ver Enawenê Nawê: SILVA, 1988). Para esses povos, o consumo de invertebrados chega a ser mais importante que a caça24, sendo, no entanto, menos relevante que a pesca (MORAN, 1993; SILVA, 1988). À exceção dessas sociedades, a maioria dos grupos indígenas tem na caça uma

atividade complementar, porém mais importante para obtenção de alimento que a pesca (SCHRÖDER, 2003). Nos grupos Tupi ela é usualmente a segunda atividade de subsistência de maior importância (depois da agricultura), sendo essencialmente masculina (LARAIA, 1986).

A caça ocorre o ano todo, porém é ainda mais importante na estação chuvosa (BEHRENS, 1981; HAMMOND; DOLMAN; WATKINSON, 1995), quando o alto nível dos rios dificulta a pesca (BEHRENS, 1981). Em geral, os homens preferem caçar sozinhos (MORAN, 1993) e as caçadas coletivas são restritas a situações especiais (ver Tsimane´: REYES-GARCÍA, 2001; Katukina: MARTINS, 2006; Kayapó: TURNER, 1967). Há, contudo, exceções, como os Wapishana (Guiana), povo no qual um homem raramente caça sozinho (HENFREY, 2002).

Os instrumentos empregados para a caça são bastante variados e, atualmente, a espingarda é um dos mais utilizados por alguns povos indígenas (ver Ye´kwana: HAMES, 1979; vários: JEROZOLIMSKY; PERES, 2003; Kaapor: LARAIA, 1986; Marubo: MELATTI; MELATTI, 1975; Kayapó: TURNER, 1967). Novamente, há exceções e os Wapishana são uma delas, já que caçam principalmente com arcos e flechas (HENFREY, 2002).

Os animais preferencialmente caçados variam entre os povos indígenas de acordo com diversos fatores, como os tabus alimentares (MILTON, 1997), a disponibilidade de animais (JEROZOLIMSKY; PERES, 2003; MARTINS, 2006) e o contato com a sociedade envolvente (MILTON, 1997). O contato com a sociedade envolvente pode, por exemplo, interferir nos tabus alimentares de um povo que pode, com o tempo, passar a consumir espécies antes restringidas (MILTON, 1997).

Efeitos associados a fatores não específicos

Historicamente, tem sido observada a redução da atividade de caça em alguns grupos indígenas (LADEIRA, 1982; LEEUWENBERG, 2006; MARTINS; MENEZES, 1994; MÜLLER, 1997; SCHRÖDER, 2003; SCHWARTZMAN, 2006; TURNER, 1967). Diversos vetores são apontados como as causas, mas essa redução é provavelmente resultado de uma combinação deles. Os principais fatores apontados na literatura são: (i) a limitação do território (LADEIRA, 1982); (ii) a sedentarização (MÜLLER, 1997; SCHWARTZMAN, 2006; SCHRÖDER, 2003; SMITH, 2001); (iii) a restrição da mobilidade25 em situação de crescimento populacional (LADEIRA, 1982; LEEUWENBERG, 2006; SMITH, 2001); (iv) a concorrência com caçadores externos (MARTINS, 2006; SCHRÖDER, 2003); (v) a proximidade com estradas (MARTINS; MENEZES, 1994; MARTINS, 2006) e (vi) a redução das populações de animais caçados (BERTHO, 2005; LADEIRA, 1982; MARTINS; MENEZES, 1994; MARTINS, 2006; SMITH, 2001), o que, obviamente, pode ser decorrente de todos os outros vetores citados.

A relação entre a sedentarização e a atividade de caça pode ser direta, por pressão nas populações de animais caçados, ou indireta, por meio de alteração na atividade de caça e da conseqüente dependência dos povos a fontes exógenas de proteína (SCHRÖDER, 2003). Essa relação indireta dá-se da seguinte forma: quando cresce o consumo de proteína comprada fora da aldeia, pode ocorrer a redução da atividade de caça. A obtenção de proteína exógena pode depender, contudo, do preço de mercado desses alimentos. Apaza et al. (2002), por exemplo, notaram que o aumento no acesso dos povos indígenas à carne de gado e a redução nos preços dessa carne poderia levar à diminuição da caça de animais silvestres pelos povos indígenas.

Essa tendência de redução da atividade de caça não é sempre contínua. Em alguns casos, o que se verificou foi que, ao longo do tempo, ocorreu uma retomada da atividade. Um exemplo são os Guajajara. Conforme a pressão de caçadores externos foi reduzida na TI desse grupo, a disponibilidade de caça aumentou e, conseqüentemente, cresceu também a exploração por parte dos Guajajara, apesar de ainda em patamares abaixo daqueles pré- tranformações (SCHRÖDER, 2003).

Efeitos específicos da participação na economia de mercado

Especificamente em relação ao aumento da participação de povos indígenas no mercado, os efeitos provocados na atividade de caça podem ser diversos, podendo acarretar em aumento ou redução desta atividade. O aumento do consumo de carne de caça pode ocorrer por um maior tempo disponível para a atividade de caça (DEMMER et al., 2002; GODOY, 2001) ou pela aquisição de novas tecnologias (DEMMER; OVERMAN, 2001; GODOY, 2001; SANTOS et al., 1997; SHEPARD et al., 2004; SIRÉN; CARDENAS; MACHOA, 2006; WILKIE; GODOY, 2001), que aumentam a produtividade de caçar (GODOY, 2001; WILKIE; GODOY, 2001).

Já a redução no consumo de caça pode ocorrer pela diminuição do tempo disponível para esta atividade (BEHRENS, 1992; HENRICH, 1997; MORSELLO, 2002; SIRÉN; CARDENAS; MACHOA, 2006) ou pela substituição dessa forma de proteína por produtos adquiridos no mercado ou por animais domésticos (DEMMER et al., 2002; GODOY, 2001).

A maior disponibilidade de tempo para a atividade de caça pode acontecer, no caso de unidades domésticas pouco envolvidas com o mercado, quando há um aumento na

produtividade agrícola, que diminui a demanda de tempo empregado na agricultura (DEMMER et al., 2002).

O aumento da participação no mercado pode permitir a aquisição de novas tecnologias de caça (SIRÉN; CARDENAS; MACHOA, 2006) que, muitas vezes, substituem rapidamente os instrumentos tradicionais (ARHEM, 1996). A adoção dessas tecnologias, como arma de fogo e munição, aumenta a produtividade da caça (HAMES, 1979), mas isto nem sempre significa um aumento do consumo de carne de caça (JEROZOLIMSKY; PERES, 2003). Para Godoy (2001), a incorporação de novas tecnologias acarreta no aumento do consumo de carne de caça, já para Hames (1979), esta relação não necessariamente existe, pois pode ocorrer redução do tempo alocado na atividade de caça. Outro efeito da incorporação de tecnologias é a alteração no padrão da atividade de caça (JEROZOLIMSKY; PERES, 2003), que pode ocorrer também devido a um maior envolvimento com o mercado. Demmer e Overman (2001) apontam um maior consumo de animais de pequeno porte em grupos indígenas mais envolvidos com o mercado, contudo, não comentam se esse aumento deve-se à redução da disponibilidade de animais de grande porte no ambiente. Segundo esses autores, isso pode ser fruto da menor disponibilidade de tempo que pessoas envolvidas com o mercado possuem para a atividade de caça. Já Godoy, Brokaw e Wilkie (1995) verificaram que o aumento da renda não interfere no número de espécies caçadas.

Nem sempre a participação no mercado leva à incorporação de novas tecnologias. Quando as pessoas envolvem-se em atividades que geram renda por meio de emprego regular, essa renda não é utilizada para compra de instrumentos de caça, pois as pessoas possuem menos tempo para se dedicar a essa atividade (SIRÉN; CARDENAS; MACHOA, 2006). Resultado similar é apresentado por Godoy (2001), que verificou que aumento em empregos ou em salários regulares pode reduzir o consumo de produtos silvestres, incluindo a carne de caça. Outra situação em que pode ocorrer redução da caça é quando há menor tempo

disponível para essa atividade, pois mais tempo está sendo empregado na comercialização de artesanato produzido a partir de PFNMs (SHEPARD et al., 2004).

Uma maior participação no mercado pode levar à redução da atividade de caça quando essa fonte de proteína é substituída por animais domésticos ou de alimentos industrializados (GODOY, 2001). Para Demmer et al. (2002) essa substituição ocorre apenas acima de certo patamar de renda. Ou seja, para esses autores, inicialmente o aumento na renda leva a um incremento da atividade de caça. A partir de certo limiar de renda ocorre, no entanto, a diminuição na caça, por substituição deste tipo de carne por outras fontes de proteína. Já Wilkie e Godoy (2001) verificaram que o maior acesso à carne de animais domésticos não acarreta em redução do consumo de carne de caça.

Definindo a hipótese em relação à caça

A maior parte dos trabalhos aponta uma diminuição da atividade de caça, que pode ocorrer pela redução do tempo empregado nesta devido ao maior esforço dedicado a outras atividades (como a agricultura ou as atividades de mercado), pelo aumento da produtividade (obtido com a adoção de novas tecnologias) ou por uma substituição da carne de caça por alimentos exógenos. Sendo assim, a hipótese do presente estudo é que o aumento da participação das unidades domésticas na economia de mercado, por meio da comercialização de PFNMs, acarreta na redução do tempo (esforço) empregado na atividade de caça.