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Um mercado específico: a comercialização de produtos florestais não madeireiros

CAPÍTULO 1 – EFEITOS INDIRETOS DA PARTICIPAÇÃO NO MERCADO NO

1.3 A participação de povos indígenas na economia de mercado

1.3.3 Um mercado específico: a comercialização de produtos florestais não madeireiros

Mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo depende dos produtos florestais não madeireiros para sua sobrevivência, seja como alimento ou como produto comercializado (MARSHALL; SCHRECKENBERG; NEWTON, 2006). O conceito de PFNM é extremamente amplo e envolve, para alguns autores, todos os produtos florestais excetuando- se os madeireiros (NEUMANN; HIRSCH, 2000). Nesse estudo, porém, serão considerados apenas os obtidos por meio da atividade de coleta, ou seja, excluindo os produtos da caça ou da pesca.

O interesse estrangeiro por PFNMs tropicais, principalmente plantas economicamente úteis é muito antigo, embora tenha crescido novamente a partir dos anos 1980, devido aos potenciais benefícios que sua comercialização poderia trazer para a conservação florestal. Entre os fatores motivadores desse interesse na comercialização de PFNMs estavam a percepção de que melhores resultados de conservação ambiental poderiam ser atingidos em cooperação com comunidades locais e o crescente reconhecimento dos direitos dessas comunidades às suas terras e aos recursos presentes nessas. O que se assumia era que as comunidades locais tenderiam a conservar os recursos naturais se recebessem benefícios por meio de atividades menos impactantes que mantivessem a floresta em pé (NEUMANN; HIRSCH, 2000). Essa percepção ecoou no Brasil e, conforme argumenta Becker (2006), especialmente no contexto amazônico, onde conciliar o uso do patrimônio natural com a

inclusão social, ou seja, valorizar economicamente a floresta em pé, passou a ser considerada a melhor opção para enfrentar as commodities que desmatam a floresta, como madeira e soja.

Essa lógica em que ambiente e habitantes de áreas naturais ganham passou a ser a mola propulsora para o estabelecimento de grande número de iniciativas de comercialização de PFNMs (MORSELLO, 2006a). Na Amazônia, projetos desse tipo vêm sendo incentivados tanto na escala internacional, envolvendo diversos países (ver, por ex. BOLSA AMAZÔNIA, 2006) quanto nacional, estimulados pelos governos federal e locais (PROBEM/AMAZÔNIA, 2006; TONI; KAIMOWITZ, 2003a) e por ONGs socioambientalistas (por ex. Instituto Socioambiental, Imaflora, Amigos da Terra) (MORSELLO, 2006a).

Em relação aos povos indígenas, mesmo os que possuem expressiva inserção na economia de mercado, vêm cada vez mais participando da comercialização de PFNMs (GODOY et al., 2005b). No caso dos indígenas na Amazônia, a maioria das iniciativas possui apoio de agentes externos, algumas envolvem a comercialização com uma única empresa, em outras os produtos são comercializados diretamente nos centros urbanos mais próximos e, em várias, são comercializados com intermediários, como os regatões12 locais.

A ampla variedade de iniciativas pode ser notada nos poucos exemplos selecionados13: (i) o projeto Arte Baniwa de comercialização de cestarias indígenas com a empresa Tok &

Stock e que tem apoio da Organização Indígena da Bacia do Içana (Oibi), da Federação das

Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e do Instituto Socioambiental (ISA); (ii) o projeto Fortaleza Slow Food de comercialização de guaraná dos índios Sateré-Mawé, com apoio da Fundação Slow Food para a Biodiversidade (SANTILLI, 2006); (iii) o Projeto Kayapó, apoiado pela Conservação Internacional (CI), pelo Instituto Raoni e pela Associação Floresta Protegida, que produz e comercializa óleo de castanha-do-Brasil e óleo de copaíba

12 Regatão é um barco que percorre as regiões mais distantes levando produtos manufaturados que são trocados

por produtos da floresta (PEQUENO, 2006, p. 486).

13 Outros exemplos estão disponíveis em Schröder (2003) e na página da ONG Amigos da Terra

(ZIMMERMAN; JEROZOLIMSKY; ZEIDEMAN, 2006); (iv) a comercialização de castanha-do-Brasil pelos Xikrin, com apoio da Funai (GIANNINI, 2001); (v) o óleo de castanha-do-Brasil certificado pelo Forest Stewardship Council (FSC) e pelo Instituto Biodinâmico (IBD) produzido pelos Kayapó (TI Baú) (MORAES, 2006); (vi) a comercialização de látex de seringueira pelos Apiaká (WENZEL, 1999); (vii) o projeto que pretende comercializar sementes de mogno coletadas pelos Panará (SCHWARTZMAN, 2006); (viii) as plantas medicinais comercializadas pelos Apurinã (RODRIGUES et al, 2006); (ix) a comercialização de cipó-titica por alguns grupos indígenas do Alto Rio Negro com os regatões locais (ANDRADE, 2006); (x) os diversos PFNMs (por ex., castanha-do-Brasil, copaíba e açaí) comercializados pelos Tenharim no centro urbano mais próximo (PEGGION, 2006a); (xi) a castanha-do-Brasil comercializada pelos Mura com os regatões locais (PEQUENO, 2006) ou pelos Paumari, com os patrões locais (BONILLA, 2006).

Todas as formas de participação dos povos indígenas na economia de mercado, inclusive a comercialização de PFNMs, podem produzir transformações nessas sociedades, sejam elas sociais, culturais, econômicas ou na relação delas com o ambiente natural. Esses efeitos vêm sendo estudados com recortes distintos por diferentes autores. Há os que analisam os efeitos sociais, culturais ou econômicos para os povos indígenas (por ex., MORSELLO, 2002, 2004; SCHRÖDER, 2003), os que estudam a relação das sociedades indígenas com o dinheiro e com os bens industrializados (por ex., GORDON, 2003) e outros, ainda, verificam os efeitos na saúde ou bem-estar indígena (por ex. GODOY; CÁRDENAS, 2000; GODOY et al., 2005b).

Outros autores estudam os efeitos que a participação de povos indígenas no mercado provoca na conservação ambiental (por ex., APAZA et al., 2002, 2003; DEMMER; OVERMAN, 2001; GODOY, 2001; GODOY et al., 2005b; GODOY; WILKIE; FRANKS, 1997; LIMA; POZZOBON, 2005; MORSELLO, 2002; VADEZ et al., 2005).

Especificamente em relação à participação na comercialização de PFNMs, alguns verificam os efeitos diretos, produzidos nas populações de recursos naturais explorados (por ex., MARSHALL; SCHRECKENBERG; NEWTON, 2006; NAKAZONO; BRUNA; MESQUITA, 2004; PERES et al., 2003; para revisão ver NEUMANN; HIRSCH, 2000; TICKTIN, 2004) e poucos focam nos efeitos indiretos, por meio de alterações nas práticas de subsistência (por ex. MORSELLO, 2002; FIGUEIREDO, 2005).

O presente estudo foca nos efeitos indiretos que a participação dos povos indígenas no mercado de PFNMs pode provocar nas atividades de subsistência (i.e. agricultura, caça, pesca e coleta de produtos florestais). Antes de aprofundar especificamente nesses efeitos, é importante contextualizar, mesmo que de forma sucinta, os outros vetores que historicamente têm provocado transformações em todas as esferas dos modos de vida indígenas.

1.4 Vetores de transformações no uso de recursos naturais pelos povos