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“Ahistória da Igreja deve ser propriamente chamada a história da verdade.” Pensamentos

No documento BADIOU_Alain. O Ser e o Evento (páginas 173-181)

Lacan costumava dizer que, ainda que nenhuma religião fosse verdadeira, o cristianismo não deixava de ser aquela que tocava mais de perto a questão da verdade, Podemos entender esta afirmação de muitas maneiras. Minha própria escuta é a seguinte: no cristianismo, e somente nele, se diz que a essência da verdade supõe o ultra-um eventural e que remeter-se a ela não envolve a contemplação — ou o conhecimento imóvel — , mas a intervenção. Pois, no cerne do cristianismo, há esse evento, situado e exemplar, que é a morte do filho de Deus na cruz. E, ao mesmo tempo, a crença não se refere centralmente ao ser-um de Deus, a seu poder infinito; ela tem por núcleo interveniente o sentido a constituir dessa morte, e a organização da fidelidade a esse sentido, Como diz Pascal: “Fora de Jesus Cristo, não sabemos o que é nossa vida, nem nossa morte, nem Deus, nem nós mesmos.”

Todos os parâmetros da doutrina do evento estão, assim, dispostos no cris­ tianismo, no interior, contudo, dos restos de uma ontologia da presença, a cujo respeito mostrei, em particular (meditação 13), que ela diminuía o conceito do infinito.

a. O múltiplo eventural se produz nesse sítio especial que é, para Deus, a vida humana, convocada em sua borda, sob a pressão de seu vazio, isto é, no símbolo da morte, e da morte sofredora, supliciada, cruel. ACraz é a figura desse múltiplo insensato.

b. Nomeado progressivamente pelos apóstolos — corpo coletivo da intervenção

— de “morte de Deus”, esse evento pertence a si mesmo, pois sua eventuralidade verdadeira não é que houve morte, ou suplício, mas que se tratava de Deus, Todos os episódios concretos do evento (a flagelação, os espinhos, a via-crúcis, etc,) só são o ultra-um do evento à medida que o Deus encarnado os suporta, Ahipótese interveniente de que este é realmente o caso se interpõe entre a nulidade comum desses detalhes, ela mesma na borda do vazio (da morte), e a unicidade gloriosa do evento,

c. A essência última do ultra-um eventural é o Dois, sob a forma particularmente impressionante de uma cisão do Um divino, o Pai e o Filho, que destrói, na verdade, duradouramente, toda reunião da transcendência divina na simplicidade de uma Pre­ sença.

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d. A metaestrutura da situação, especialmente o poder público romano, registra esse Dois sob a forma da justaposição heteróclita de um sítio (a província palestina e seus fenômenos religiosos) e de um singleto sem alcance (a execução de um agitador), apresentando, ao mesmo tempo, que é convocado aqui um vazio, que embaraçará duradouramente o Estado. Desse embaraço, ou dessa convicção latente de que há loucura aí, são testemunhas, no nível do relato, a distância conservada por Pilatos (como esses judeus se safam com suas histórias obscuras) e, mais tarde, no nível do documento, as instruções solicitadas por Plínio, o Jovem, a Trajano com relação ao tratamento a reservar aos cristãos, claramente designados como uma exceção subjetiva incômoda,

e. A intervenção se apóia na circulação, nos meios judaicos, de um outro evento, a falta original de Adão, que a morte do Cristo vem comutar. A conexão entre o pecado original e a redenção funda realmente o tempo cristão como tempo do exílio e da salvação, Há uma historicidade essencial do cristianismo, ligada à intervenção dos apóstolos como lançamento em circulação do evento da morte de Deus, ela mesma escorada na promessa de um Messias, a qual organizava a fidelidade ao exílio inicial. O cristianismo é de ponta a ponta estruturado pela recorrência eventural, e se prepara, ademais, para o acaso divino do terceiro evento, o Juízo Final, quando se consumará a destruição da situação terrestre, e o estabelecimento de um novo regime de existência,

f Esse tempo periodizado organiza uma diagonal de situação, em que a religação, ao acaso do evento, das conseqüências regradas que ele acarreta permanece discemível pelo efeito de uma fidelidade institucional Entre os judeus, os profetas slo os agentes especiais do discernível. Eles interpretam sem trégua, na trama densa dos múltiplos apresentados, o que é do domínio das conseqüências da falta, o que torna legível a promessa, e o que não passa da marcha do mundo. Entre os cristãos, a Igreja, primeira instituição da história humana a pretender a universalidade, organiza a fidelidade ao evento-Cristo, e designa expressamente os que a apóiam nessa tarefa como “os fiéis”.

O gênio particular de Pascal foi se ter proposto a renovar e manter o núcleo eventural da convicção cristã nas condições absolutamente modernas, e inauditas, criadas pelo advento do sujeito da ciência. Pascal percebeu muito bem que, ao fim e ao cabo, essas condições iriam arruinar o edifício demonstrativo, ou racional, com o qual os Doutores medievais tinham edificado a crença. Ele iluminou esse paradoxo de que, no momento mesmo em que a ciência legiferava enfim, demonstrativamente, sobre a natureza, o Deus cristão só podia permanecer no centro da experiência subjetiva se pertencesse a uma lógica completamente diversa, se fossem abandonadas as “provas da existência de Deus”, e se fosse restituída a pura força eventural da fé. Ter-se-ia podido acreditar, de fato, que, com o advento de uma matemática do infinito e de uma mecânica racional, a questão que se impunha aos cristãos era ou renovar as provas, alimentando-as com a expansão científica (coisa que tentarão fazer no século XVIII pessoas como padre Pluche, com sua apologética das maravilhas da natureza, tradição que persevera até Teilhard de Chardin), ou separar completamente os gêneros, e estabelecer que a esfera religiosa está fora do alcance, ou é indiferente, em relação ao desenvolvimento do pensamento científico (sob sua forma forte, esta é a doutrina de Kant, com a radical separação das faculdades, e sob sua forma fraca, é o “suplemento de alma”). Pascal é dialético ao não se contentar com nenhuma dessas duas vias. A primeira lhe parece — com razão — conduzir apenas a um Deus abstrato, uma espécie de ultramecânico, o

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Deus de Descartes (“inútil e incerto”), que se tornará o Deus-relojoeiro de Voltaire, inteiramente compatível com a execração do cristianismo. A segunda não satisfaz sua própria vontade, contemporânea do elã matemático, de uma doutrina unificada e total, em que a distinção firme das ordens (razão e caridade não estão de fato no mesmo plano, e por aí Pascal, apesar de tudo, antecipa Kant) não deve entravar a unidade existencial do cristão e a mobilização de todas as suas capacidades no único querer religioso, pois “o Deus dos cristãos [...] é um Deus que preenche a alma e o coração dos que ele possui [...]; que os toma incapazes de outro fim senão ele mesmo”. Assim, a questão pascaliana não é a do conhecimento do Deus contemporâneo da nova etapa da racionalidade. O que ele pergunta é: o que é, hoje, um sujeito cristão? E é por isso que Pascal recentra toda sua apologética num ponto muito preciso: o que pode fazer um ateu, um libertino, passar da incredulidade ao cristianismo? Não é exagero dizer que a modernidade, até hoje desconcertante, de Pascal se prende a que ele prefere de longe um ímpio resoluto (“ateísmo: prova de força da alma”) a um crente morno ou a um deísta cartesiano. E por que, senão porque o niilista libertino lhe parece muito mais significativo e moderno do que os amantes de contemporizações, que se acomodam tanto à autoridade social da religião quanto às rupturas do discurso racional? Para Pascal o cristianismo decide sua existência, nas novas condições do pensamento, não por sua capacidade flexível de manutenção institucional no seio de uma cidade transtornada, mas por seu poder de captação subjetiva sobre esses representantes típicos do novo mundo que são os materialistas sibaritas e desesperados. É a eles que Pascal se dirige com ternura e sutileza, não exibindo, em contrapartida, para com os cristãos honestos, mais do que um terrível desprezo sectário, a cujo serviço põe — nas Provinciais, por exemplo — um estilo violento e ardiloso, um gosto imoderado pelo sarcasmo, e não pouca má-fé. Aliás, o que singulariza a prosa de Pascal, a ponto de arrancá-la de seu tempo e de aproximá-la, por sua límpida rapidez, do Rimbaud de Uma temporada no inferno, é uma espécie de urgência em que o trabalho do texto (Pascal reescreve dez vezes a mesma passagem) é consagrado a um interlocutor definido e empedernido, na angústia de não fazer tudo o que é preciso para convencê-lo. Assim, o estilo de Pascal é o ápice do estilo interveniente. Esse imenso escritor transcendeu seu tempo pela vocação militante, tempo em que, no entanto, se afirma que, ao contrário, ela nos mergulha a ponto de nos fazer caducar de um dia para outro.

O paradoxo a partir do qual se pode apreender o que considero o próprio cerne da provocação pascaliana é o seguinte: por que esse cientista aberto, esse espírito moderno, faz absoluta questão de justificar o cristianismo por sua parte evidentemente mais fraca para o dispositivo racional pós-galileano, ou seja, a doutrina dos milagres? Não há alguma coisa de propriamente louco em escolher como.locutor privilegiado o libertino niilista, formado na atomística de Gassendi, leitor das diatribes de Lucrécio contra o sobrenatural, e em tentar convencê-lo precisamente por um apelo ensandecido à historicidade dos milagres?

Pascal se aferra, contudo, à idéia de que “toda crença se assenta nos milagres”; apóia-se em santo Agostinho, declarando que ele não seria cristão sem os milagres; estabelece como axioma que “sem os milagres, não teríamos pecado não crendo em Jesus Cristo”. Mais ainda: enquanto exalta o Deus cristão como Deus de consolação, Pascal excomunga aqueles que, contentando-se com essa ocupação da alma por Deus,

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só prestam aos milagres uma atenção puramente formal. Esses, diz ele, “desonram seus [do Cristo] milagres”. E, assim, “os que se recusam a crer nos milagres hoje, por uma pretensa contradição quimérica, não têm desculpa”. E este grito: “Que ódio tenho dos que se passam por descrentes em milagres!”

Digamos sem mais delongas que o milagre — como o acaso de Mallarmé — é o emblema do evento puro como recurso da verdade. Sua função de excesso sobre a prova pontua, factualiza, aquilo em que se origina a possibilidade de se crer em verdade, e que Deus não seja rebaixado a esse puro objeto de saber com que se contenta o deísta. O milagre é o símbolo de uma interrupção da lei em que se anuncia a capacidade interveniente.

A doutrina de Pascal sobre esse ponto é muito complexa, pois articula, a partir do evento-Cristo, tanto sua recorrência quanto seu acaso. A dialética central é a da profecia e do milagre,

Uma vez que a morte do Cristo só se deixa interpretar como encarnação de Deus em face do pecado original, do qual é a comutação, é preciso legitimar seu sentido pela exploração da diagonal da fidelidade que une o primeiro evento (a queda, origem de nossa desgraça) ao segundo (a redenção, como evocação humilhada e cruel de nossa grandeza), As profecias, como disse, organizam esse vínculo. Pascal elabora a propósito delas uma teoria da interpretação. 0 entre-dois eventural que elas designam é neces­ sariamente o lugar de um equívoco, o que Pascal chama de a obrigação das figuras. Por um lado, se o Cristo é o evento que só pode ser nomeado por uma intervenção fundada num fiel discernimento dos efeitos do pecado, é preciso que esse evento seja predito, “predição” designando aqui a capacidade interpretativa, ela própria transmitida ao longo dos séculos pelos profetas judeus. Por outro lado, para que o Cristo seja um evento, é preciso que até a regra de fidelidade, que autoriza a intervenção doadora de sentido, seja surpreendida pelo paradoxo do múltiplo. A única saída é que o sentido da profecia seja simultaneamente obscuro no tempo de sua enunciação e retroativamente claro a partir do momento em que o evento-Cristo, interpretado pela intervenção crente, estabelece sua verdade, A fidelidade, que prepara a intervenção fundadora dos apóstolos, é amplamente enigmática, ou dupla: “Toda a questão é saber se elas [as profecias] têm dois sentidos,” Q sentido material, ou grosseiro, produz clareza imediata e obscuridade essencial, Q sentido propriamente profético, iluminado pela interpretação interveniente do Cristo e dos apóstolos, produz clareza essencial & figura imediata: “Cifra de duplo sentido; um claro e no qual 6 dito que o sentido está oculto.” Pascal inventa a leitura sintoma!■ As profecias são continuamente obscuras em face de seu sentido espiritual, o qual só se confirma a partir do Cristo, mas elas o slo desigualmente: certas passagens só slo interpretáveis a partir da hipótese cristã, e fora dessa hipótese não funcionam —■ no regime do sentido grosseiro — senão de maneira incoerente e extravagante; “Esse sentido [o verdadeiro, o espiritual cristão] está encoberto por outro numa infinidade de lugares, § patente em alguns, raramente *»- mas de tal modo que os lugares em que está oculto são equívocos, e não podem convir aos dois; ao passo que, nos lugares em que está patente, são unívocos e só podem convir ao sentido espiritual.” Assim, na trama textual profética do Antigo Testamento, o evento-Cristo recorta raros sintomas unívo­ cos, a partir dos quais se ilumina, por associações sucessivas, a coerência geral de um

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dos dois sentidos da obscuridade profética, em detrimento do que esses “figurativos” pareciam carregar de evidência grosseira.

Essa coerência, que funda no futuro do presente composto a fidelidade judaica no entre-dois do pecado original e da redenção, não permite, contudo, reconhecer aquilo que, aquém de sua função de verdade, constitui o ser mesmo do evento-Cristo, isto é, a eventuralidade do evento, o múltiplo que, no sítio da vida e da morte, se pertence a si mesmo. Sem dúvida, o Cristo é predito, mas o “Ele-foi-predito” só se demonstra pela intervenção que decide que esse homem supliciado, Jesus, é mesmo o Messias-Deus. Mal essa decisão interveniente é tomada, tudo fica claro e a verdade circula em toda a extensão da situação, sob o emblema que a nomeia, e que é a Cruz. No entanto, para apreendê-la, o duplo sentido figurativo das profecias não pode bastar. É preciso se fiar no evento de que extraímos, no cerne de seu vazio — a escandalosa morte do Cristo, que contradiz todas as figuras da glória do Messias —, o nome provocador. E o que sustenta essa confiança não poderia ser a clareza espalhada sobre o duplo sentido do texto judaico, que, ao contrário, depende dela. É, portanto, apenas o milagre que atesta, pela crença que se lhe atribui, que nos rendamos ao acaso consumado do evento, e não à necessidade da predição. Mas é preciso ainda que o próprio milagre não seja a tal ponto fulminante, e dirigido a todos; que se curvar a ele não passe de uma evidência necessária. Pascal está atento em resguardar o caráter vulnerável do evento, sua quase-obscuridade, de que depende que o sujeito cristão seja aquele que decide a partir do indecidível (“Impossível que Deus seja, impossível que ele não seja”), não aquele que é esmagado pela força seja de uma demonstração (“O Deus dos cristãos não consiste num Deus simplesmente autor das verdades geométricas”), seja de uma ocorrência prodigiosa, a qual está reservada para o terceiro evento, o último dia, quando Deus aparecerá “com tal estrondo de trovões e tal transtorno da natureza, que os mortos ressuscitarão e os mais cegos verão”. Os milagres que indicam que o evento-Cristo teve lugar são destinados, por sua moderação, àqueles cuja fidelidade judaica se exerce além de si mesma, pois Deus, “querendo aparecer a descoberto para aqueles que o procuram de todo o coração, e oculto aos que dele fogem de todo o coração [...] tempera seu conhecimento”.

A intervenção é, portanto, uma operação subjetiva exatamente calibrada. 1. Quanto à sua possibilidade, ela depende da recorrência eventural, da diagonal de fidelidade que os profetas judeus organizam: o sítio do Cristo é necessariamente a Palestina; somente ali é possível encontrar as testemunhas, os investigadores, os intervenientes de que depende que o múltiplo paradoxal seja nomeado “encarnação e morte de Deus”.

2. Ela nunca é, no entanto, necessária. Pois o evento não é capaz de confirmar a profecia; ele está em descontinuidade com a fiel diagonal que reflete sua recorrência. Essa reflexão só é dada, de fato, num equívoco figurativo, em que os próprios sintomas só são isoláveis retroativamente. Assim, é da essência dos fiéis se dividir. “No tempo do Messias, esse povo se divide [...]. Os judeus o recusam, mas não todos.” A intervenção é, conseqüentemente, sempre característica de uma vanguarda: “Os es­ pirituais abraçaram o Messias; os grosseiros permaneceram para lhe servir de testemu­ nhas”.

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3. A crença da vanguarda interveniente diz respeito à eventuralidade do evento, cuja pertença à situação ela decide. “Milagre” nomeia essa crença, portanto essa decisão. Em particular, a vida e a morte do Cristo — o evento propriamente dito — não são legitimáveis pelo cumprimento das profecias, do contrário o evento não interromperia a lei: “Jesus Cristo provou que era o Messias, jamais provando sua doutrina com base nas Escrituras ou nas profecias, e sempre por seus milagres.” Ainda que seja retroati­ vamente racional, a decisão interveniente da vanguarda dos apóstolos jamais é dedutí- vel.

4. No entanto, no a posteriori da intervenção, a forma figurativa da fidelidade anterior se elucida inteiramente, a partir dos pontos-chave que são os sintomas, isto é, o que o texto judaico tinha de mais errático. “As profecias eram ambíguas: não o são mais.” A intervenção não aposta na descontinuidade com a fidelidade anterior senão para instaurar uma continuidade unívoca. Nesse sentido, é pelo risco minoritário da intervenção, no sftio do evento, que passa em última instância a fidelidade à fidelidade.

Todo o objetivo de Pascal é que o libertino reintervenha, e, no efeito dessa aposta, tenha acesso à coerência que o funda. O que fizeram contra a lei dos apóstolos, o ateu niilista — que tem a vantagem de não ter entrado em nenhum acordo conservador com o mundo— pode refazer. Assim, os três grandes painéis dos Pensamentos se distinguem nitidamente.

a. Uma grande analítica do mundo moderno, que é aparte mais acabada, a mais conhecida, mas também a que mais pode levar a confundir Pascal com um daqueles “moralistas franceses”, pessimistas e mordazes, de que se alimenta a filosofia dos colégios. E que se trata de se manter o mais perto possível do sujeito niilista, e de partilhar com ele uma visão negra e cindida da experiência. Temos nesses textos a “linha de massa” de Pascal, aquilo que o faz co-pertencer à visão de mundo dos desesperados e suas zombarias contra os magros fastos do imaginário cotidiano. O expediente mais novo dessas máximas, que todos recitam, é fazer apelo à grande decisão ontológica moderna concernente à infinidade da natureza (c/ meditação 13). Ninguém mais do que Pascal é habitado pela convicção de que toda situação é infinita. Por uma espetacular inversão da tendência antiga, ele enuncia claramente que é o finito que resulta, recorte imaginário em que o homem se reassegura, e que é o infinito que estrutura a apresen­ tação: “Nada pode fixar o finito entre os dois infinitos que o informam e o repelem.” Essa convocação do infinito do ser justifica a humilhação do ser natural do homem, pois sua finitude existencial não libera, em relação aos múltiplos em que se apresenta o ser, senão o “desespero eterno de não conhecer nem seu princípio nem seu fim”. Ela remete, pela mediação do evento-Cristo, a que essa humilhação seja justificada pela salvação do ser espiritual. Mas esse ser espiritual não está mais referido à situação infinita da natureza; é um sujeito que a caridade une interiormente à infinidade divina, que é de outra ordem. Pascal pensa, portanto, e simultaneamente, a infinidade natural, a relatividade “infixável” do finito e a hierarquia-múltipla das ordens de infinidade.

b. O segundo tempo é uma exegética do evento-Cristo, tomada nas quatro dimensões da capacidade interveniente: a recorrência eventural, isto é, o exame das profecias do Antigo Testamento, e a doutrina do duplo sentido; o evento-Cristo com que Pascal, no famoso “mistério de Jesus”, chega a se identificar; a doutrina dos milagres, a retroação doadora de sentido unívoco.

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Essa exegese é o ponto central do dispositivo dos Pensamentos, porque só ela funda a verdade do cristianismo, e porque Pascal não tem por estratégia “provar Deus”, seu interesse se limitando a unificar, por uma reintervenção, o libertino à figura subjetiva cristã. De resto, só essa atitude é a seu ver compatível com a situação moderna, e especialmente com os efeitos da decisão histórica concernente à infinidade da natureza.

c. O terceiro tempo é uma axiologia, uma doutrina formal da intervenção. Uma vez descrita a miséria existencial do homem na infinidade das situações, e dada, a partir do evento-Cristo, a interpretação coerente em que o sujeito cristão se une à outra infinidade, a do Deus vivo, resta, por uma interpelação direta do libertino moderno, incitá-lo a reintervir, nos passos do Cristo e dos apóstolos. Nada, de fato, nem mesmo

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