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O materna do evento

No documento BADIOU_Alain. O Ser e o Evento (páginas 147-151)

Vou proceder aqui por via construtiva. O evento não é efetivamente interno à analítica do múltiplo. Em particular, se ele é sempre localizável na apresentação, não é como tal apresentado ou apresentável. Ele é — não sendo — supranumerário.

Em geral, lançamos o evento na empiria pura do que advém, e reservamos a construção conceituai às estruturas. Meu método é inverso. Aconta-por-um é para mim a evidência da apresentação. É o evento que depende de uma construção de conceito, no duplo sentido em que não o podemos pensar senão antecipando sua forma abstrata, e em que não o podemos confirmar senão na retroação de uma prática interveniente, ela mesma inteiramente refletida.

Um evento é sempre localizável. Que quer dizer isto? Primeiro, que nenhum evento diz respeito imediatamente à situação cm seu conjunto. Um evento está sempre num ponto da situação, o que quer dizer que ele “concerne” a um múltiplo apresentado na situação, seja qual for o significado da palavra “concernir”. E possível caracterizar de maneira geral o tipo de múltiplo que pode “concernir” a um evento, numa situação qualquer. Como se poderia prever, trata-se do que pré-nomeei um sítio eventural (ou na borda do vazio, ou fundador). Estabeleceremos de uma vez por todas que não há evento natural, nem tampouco evento neutro. Nas situações naturais ou neutras não há senão fatos. A distinção entre o fato e o evento remete, em última instância, à distinção entre as situações naturais, ou neutras, cujo critério é global, e as situações históricas, cujo critério (existência de um sítio) é local. Não há evento senão numa situação que apresente ao menos um sítio. O evento está preso, em sua própria definição, ao lugar, ao ponto, que concentra a historicidade da situação. Todo evento tem um sítio singula- rizável numa situação histórica.

Q sítio designa o tipo local da multiplicidade “concernida” por um evento. E apenas porque o sítio existe na situação que há evento. Para que haja evento, porém, é necessária a determinação local do sítio, portanto uma situação em que é apresentado pelo menos um múltiplo na borda do vazio.

A confusão entre a existência do sítio (por exemplo: a classe operária, ou um estado dado das tendências artísticas, ou um impasse da ciência) e a necessidade do

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evento é a cruz dos pensamentos deterministas, ou globalizantes. O sítio nunca é mais do que uma condição de ser do evento. Certamente, se a situação é natural, compacta ou neutra, o evento é impossível. Mas a existência de um múltiplo na borda do vazio faz advir apenas a possibilidade do evento. E sempre possível que não se produza nenhum. Um sítio só é “eventural” no sentido estrito de sua qualificação pelo evento. No entanto, conhecemos uma característica ontológica dele, ligada à forma da apresen­ tação: ele é sempre um múltiplo a-normal, um múltiplo na borda do vazio. Não há evento, portanto, senão relativamente a uma situação histórica, ainda que uma situação histórica não produza necessariamente evento.

E agora, hie Rhodus, hic salta.

Seja, numa situação histórica, um sítio eventural X.

Chamo “evento de sítio X ” um múltiplo tal que é composto, por um lado, dos elementos do sítio e, por outro, de si mesmo.

A inscrição de um matema do evento não é um luxo aqui. Seja S a situação, e X G S (X pertence a S, X é apresentado por S) o sítio eventural. Notarei ex o evento

(leia-se: “evento de sítioX ”). Minha definição se escreve então:

ex = { x E iX ,e x}

Ou seja: o evento faz um-múltiplo, por um lado, de todos os múltiplos que pertencem a seu sítio; por outro, do próprio evento.

Duas questões são imediatas. A primeira é: em que medida esta definição corresponde mais ou menos à idéia “intuitiva” de um evento? A segunda é: como determinar as conseqüências da definição quanto ao lugar do evento na situação de que ele é evento, no sentido em que um sítio é um múltiplo absolutamente singular dessa situação?

Responderei à primeira por uma imagem. Seja o sintagma “Revolução Francesa”. Que devemos entender por estas palavras? Podemos certamente dizer que o evento “Revolução Francesa” faz um de tudo o que compõe seu sítio, ou seja, a França entre 1789 e, digamos, 1794. Ali encontramos os eleitores do Estados gerais, os camponeses do Grande Terror, os sans-culottes das cidades, o pessoal da Convenção, os clubes dos jacobinos, os soldados do levante em massa, mas também os preços de subsistência, a guilhotina, os efeitos de retórica, os massacres, os espiões ingleses, os vendeanos, os assignats”, o teatro, a Marselhesa, etc. O historiador acaba por incluir no evento “Revolução Francesa” tudo o que a época fornece de traços e de fatos. Nessa via — que é o inventário de todos os elementos do sítio — , é possível, contudo, que o um do evento se decomponha até não ser mais, justamente, do que a enumeração sempre infinita dos gestos, das coisas e das palavras que com ele coexistem. O que detém essa disseminação é o modo pelo qual a Revolução é um termo axial da própria Revolução, isto é, a maneira pela qual a consciência do tempo — e a intervenção retroativa da nossa— filtra todo o sítio pelo um de sua qualificação eventural. Quando, por exemplo, Saint-Just

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declara em 1794 que “a Revolução está congelada”, ele designa, sem dúvida, uma infinidade de indícios da lassidão e da violência gerais, mas a isso acrescenta esse traço-de-um que é a própria Revolução, como esse significante do evento que, podendo ser qualificado (a Revolução está “congelada”), atesta que ele é ele próprio um termo do evento que ele é. Da Revolução Francesa como evento é preciso dizer ao mesmo tempo que ela apresenta o múltiplo infinito da seqüência dos fatos situados entre 1789 e 1894, e, ademais, que ela se apresenta a si mesma como resumo imanente e traço-de-um de seu próprio múltiplo. A Revolução, ainda que seja interpretada como tal pela retroação histórica, não deixa por isso de ser ela própria supranumerária à simples enumeração dos termos de seu sítio, embora apresente essa enumeração. Portanto, o evento é realmente esse múltiplo que ao mesmo tempo apresenta todo o seu sítio, e, pelo significante puro de si mesmo, imanente a seu próprio múltiplo, acaba por apresentar a própria apresentação, ou seja, o um do múltiplo infinito que ele é. Esta evidência empírica corresponde bem ao nosso materna, que estabelece que ao múltiplo eventural pertence, além dos termos de seu sítio, a marca ex dele mesmo.

Ora, quais são as conseqüências de tudo isto no tocante à relação entre o evento e a situação? E, antes de mais nada, o evento é ou não um termo da situação em que ele tem seu sítio?

Toco aqui na pedra angular de todo o meu edifício. Pois ocorre que é impossível — no ponto em que estamos — responder a esta questão simples. Se existe um evento, sua pertença à situação de seu sítio é indecidível a partir da própria situação. De fato, o significante do evento (nosso ex) é necessariamente supranumerário ao sítio. Corres­ ponde ele a um múltiplo efetivamente apresentado na situação? E qual é esse múltiplo? Examinemos atentamente o materna ex = { j c / iG I , exj. Uma vez queZ, o sítio, está na borda do vazio, seus elementos*, em todo caso, não são apresentados na situação, só o próprio X o é (assim, por exemplo, “os camponeses” são certamente apresentados na situação francesa de 1789-1790, mas não aqueles camponeses do Grande Terror que se apossam dos castelos). Se quisermos confirmar que o evento é apresentado, resta o outro elemento do evento, que é o significante ex do próprio evento. Vemos claramente, portanto, a raiz da indecidibilidade: é que a questão é circular. Para confirmar que o evento é apresentado na situação seria preciso poder confirmar que ele é apresentado como elemento de si mesmo. Para saber se a Revolução é de fato um evento da História francesa, é preciso estabelecer que ela é da fato um termo imanente de si mesma. Veremos no próximo capítulo que somente uma intervenção interpretativa pode pronunciar que o evento é apresentado na situação, enquanto advento ao ser do não-ser, advento ao visível do invisível.

Por enquanto, tudo o que podemos fazer é examinar as conseqüências das duas hipóteses possíveis, hipóteses, de fato, separadas por toda a extensão de uma intervenção interpretativa, de um corte: ou bem o evento pertence à situação, ou bem não lhe pertence.

— Primeira hipótese·, o evento pertence à situação. Do ponto de vista da situação, ele é, estando apresentado. Suas características são, no entanto, inteiramente especiais. Observemos, em primeiro lugar, que o evento é um múltiplo singular (na situação a que supomos que pertence). De fato, se fosse normal, e pudesse portanto ser repre­ sentado, o evento seria uma parte da situação. Ora, isso é impossível, porque a ele

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pertencem os elementos de seu sítio, os quais — o sitio sendo a borda do vazio — nao são, eles próprios, apresentados. O evento (como, aliás, a intuição o percebe facilmente) não pode, portanto, ser pensado estatalmente, em termos de parte da situação. O estado não conta nenhum evento.

No entanto, o evento, se pertence à situação — se é aí apresentado —, não está ele próprio na borda do vazio. Pois tendo essa característica essencial de se pertencer a si mesmo, ex G ex, ele apresenta, enquanto múltiplo, ao menos um múltiplo que é apresentado, a saber, ele mesmo. Em nossa hipótese, o evento barra sua total singula- rização pela pertença de seu significante ao múltiplo que ele é. Digamos assim: um evento não é (não coincide com) um sítio eventural. Ele “mobiliza” os elementos de seu sítio, mas a isso acrescenta sua própria apresentação.

Do ponto de vista da situação, se ele lhe pertence, como supus, o evento está separado do vazio por si-mesmo. E o que denominaremos seu ser de ultra-um. Por que “ultra-um”? Porque o único e solitário termo do evento que assegura que ele não está, como está seu sítio, na borda do vazio, é o um-que-ele-é. E ele é um, pois supomos que a situação o apresenta, logo que ele recai sob a conta-por-um.

Declarar que o evento pertence à situação equivale a dizer que ele se distingue conceitualmente de seu sítio pela interposição de si mesmo entre o vazio e ele. Essa interposição, ligada à pertença, a si mesmo, é o ultra-um, pois ela conta por um duas vezes o mesmo, como múltiplo apresentado e como múltiplo apresentado na sua apresentação.

Segunda hipótese: o evento não pertence à situação. Disso resulta que “nada teve lugar senão o lugar”. Pois, além de si mesmo, o evento não apresenta senão os elementos de seu sítio, os quais não são apresentados na situação. Se ele mesmo também não é, nada é por ele apresentado, no tocante à situação. Disso resulta que, porque o significante ex “se acrescenta”, por alguma operação ainda misteriosa, nas paragens de um sítio, a uma situação que não o apresenta, é apenas o vazio que pode aí ser subsumido, pois nenhum múltiplo apresentável responde ao apelo desse nome. E, de fato, se começarmos a afirmar que “Revolução Francesa” não passa de uma pura palavra, demonstraremos sem dificuldade, em face do infinito dos fatos apresentados, e não apresentados, que nada disso jamais teve lugar.

Assim, ou bem o evento está na situação, e rompe o na-borda-do-vazio do sítio interpondo-se entre ele mesmo e o vazio, ou bem não está nela, e seu poder de nomeação não se dirige, se é que se dirige a “alguma coisa”, senão ao próprio vazio.

A indecidibilidade da pertença do evento à situação pode ser interpretada como dupla função. Por um lado, o evento conotaria o vazio; por outro, ele se interporia entre o vazio e si mesmo. Ele seria ao mesmo tempo um nome do vazio e o ultra-um da estrutura apresentativa. E é esse ultra-um-nomeando-o-vazio que revelaria, no interior- exterior de uma situação histórica, torcendo sua ordem, o ser do não-ser, isto é, o existir.

É precisamente este ponto que a intervenção interpretativa deve ao mesmo tempo deter e resolver. Pelo pronunciamento da pertença do evento à situação, ela barra a irrupção do vazio. Mas isso apenas para forçar a própria situação a confessar seu vazio, e fazer assim surgir, do ser inconsistente e da conta interrompida, o fulgor não-ente de uma existência.

MEDITAÇÃO DEZOITO

No documento BADIOU_Alain. O Ser e o Evento (páginas 147-151)