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Sítios eventurais e situações históricas

No documento BADIOU_Alain. O Ser e o Evento (páginas 143-147)

As categorias do ser-enquanto-ser, tais como, guiados pela invenção de Cantor, nós as especificamos, são por ora as seguintes: o múltiplo, forma geral da apresentação; o vazio, nome próprio do ser; o excesso, ou estado da situação, reduplicação repre­ sentativa da estrutura (ou conta-por-um) da apresentação; a natureza, forma de es­ tabilidade e de homogeneidade de se-manter-aí múltiplo; o infinito, que decide a expansão do múltiplo natural além de seu limite grego.

É no quadro assim constituído que vou abordar a questão d ’“o que não é o ser-enquanto-ser”, a cujo respeito seria imprudente dizer sem rodeios que se trata do não-ser.

É surpreendente que, para Heidegger, o-que-não-é-o-ser seja distinguido por contraposição negativa à arte. De fato, para ele, a qrócaç é aquilo cujo desabrochar a obra de arte, e somente ela, opera. Pela obra de arte, sabemos que “tudo o que aparece de outro” — de outro que não o próprio aparecer, que é a natureza — só é confirmado e acessível “como não contando, como um nada”. O nada é, assim, aquilo cujo “se manter aí” não é coextensivo ao aurorai do ser, ao gesto natural da aparição. É o que está morto por se ter separado. Heidegger funda a posição donada, d ’o-que-não-é-o-ser, na perdominância da qpócriç. O nada é recaída inerte do aparecer, a não-natureza, cujo apogeu, na época do niilismo, é a anulação de todo aparecernatural no reinado violento e abstrato da técnica moderna.

Reterei de Heidegger a raiz de sua proposição: que o lugar de pensamento d’o-que-não-é-o-ser é a não-natureza, o que se apresenta de outro do que as multiplici­ dades naturais, ou estáveis, ou normais. O lugar do outro-que-não-o-ser é o a-normal, o instável, a antinatureza. Chamarei histórico o que é assim determinado como o oposto da natureza.

Que é o a-normal? Na analítica da meditação 8, o primeiro oposto das multipli­ cidades normais (que são apresentadas e representadas) são as multiplicidades singu­ lares, que são apresentadas mas não representadas. Trata-se aí de múltiplos que pertencem à situação sem estar nela incluídos, que são elementos mas não partes.

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Que um múltiplo apresentado não seja ao mesmo tempo uma parte da situação quer necessariamente dizer que alguns dos múltiplos de que esse múltiplo se compõe não são, por sua vez, termos da situação. De fato, se todos os termos de um múltiplo apresentado estão eles próprios apresentados na situação, a coleção desses termos, isto é, o próprio múltiplo, é uma parte da situação, e é, portanto, contada pelo estado. Ou ainda: a condição necessária e suficiente para que um múltiplo seja ao mesmo tempo apresentado e representado é que todos os seus termos sejam por sua vez apresentados. Dou uma imagem (a bem dizer aproximativa): uma família de pessoas é um múltiplo apresentado na situação social (porquanto coabita um mesmo apartamento, ou sai de férias, etc.), e é também um múltiplo representado, uma parte, uma vez que cada um de seus membros tem um registro civil, é de nacionalidade francesa, etc, No entanto, se um dos membros da família, fisicamente ligado à ela, não é registrado, permanece clandestino e, por isso mesmo, nunca sai sozinho, ou se disfarça, etc., podemos dizer que essa família, embora apresentada, não está representada. Ela é portanto singular, De fato, um dos membros do múltiplo apresentado que ela é permanece, ele mesmo, inapresentado na situação.

É que um termo pode somente ser apresentado na situação por um múltiplo a que ele pertence, sem ser ele mesmo diretamente um múltiplo dessa situação, Esse termo cai sob a conta-por-um da apresentação (uma vez que é conforme ao múltiplo a que pertence), mas não é contado-por-um de maneira separada. A pertença de tais termos a um múltiplo os singulariza.

É plausível pensar o a-normal, a antinatureza, portanto a história, como onipre­ sença da singularidade — assim como pensamos a natureza como onipresença da normalidade. A forma-múltipla da historicidade é o que está inteiramente no instável do singular, aquilo sobre o que a metaestrutura estática não pode agir, É um ponto de subtração à reafirmação da conta pelo estado.

Chamarei de sítio eventural um múltiplo como esse totalmente a-normal, isto é, tal que nenhum de seus elementos é apresentado na situação. O próprio sítio é apresentado, mas, “abaixo” dele, nada do que o compõe o é, de modo que o sítio não é uma parte da situação. Direi também de um múltiplo como esse (o sítio eventural que ele está na borda do vazio, ou é fundador (explicarei estas designações),

Para retomar a imagem de há pouco, tratar-se-ia nesse caso de uma família concreta cujos membros fossem todos clandestinos, ou não declarados, e que só se apresenta — só se manifesta publicamente — sob a forma agrupada das saídas era família, Esse múltiplo não é em suma apresentado senão como o múltiplo-que-ele-é. Nenhum de seus termos como tal é contado-por-um, só o múltiplo desses termos faz ura,

Que um sítio eventural possa ser dito “na borda do vazio” se esclarece, se pensamos que, do ponto de vista da situação, esse múltiplo se compõe apenas de múltiplos não apresentados. Justamente “abaixo” desse múltiplo, isto é, se considera­ mos os termos-múltiplos de que ele se compõe, não há nada, pois nenhum de seus termos é, ele próprio, contado-por-um. Um sítio é, portanto, o mínimo concebível do efeito da estrutura, aquele que é tal que ele pertence à situação, mas o que lhe pertence já não pertence a ela. O efeito de borda pelo qual esse múltiplo toca o vazio provém do fato de que a consistência (o um-múltiplo) se compõe apenas daquilo que, no tocante à

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situação, estando subtraído à conta, in-consiste. Na situação, esse múltiplo está, mas aquilo de que ele é múltiplo não está.

Que agora possamos dizer que um sítio eventural (ou na borda do vazio) é fundador se esclarece pelo fato de, justamente, tal múltiplo ser minimal para o efeito da conta, Esse múltiplo pode naturalmente entrar depois em combinações consistentes; pode, por sua vez, pertencer a múltiplos contados-por-um na situação. Mas ele mesmo, estando puramente apresentado de tal modo que nada do que lhe pertence o está, não pode resultar de uma combinação interna à situação. Ele é, por assim dizer, um primeiro-um nessa situação, um múltiplo “admitido” na conta sem poder resultar de contas “anteriores”. É nesse sentido que podemos dizer que, no tocante à estrutura, ele 6 um termo indecomponível. Disto se segue que os sítios eventurais bloqueiam a regressão ao infinito das combinações de múltiplos. Como eles estão na borda do vazio, não podemos pensar o aquém de seu ser-apresentado. É justo, portanto, dizer que os sítios fundam a situação, porque são nela termos absolutamente primeiros, que inter­ rompem o questionamento segundo a proveniência combinatória.

Cabe observar que, diferentemente do conceito de multiplicidade natural, o de sítio eventural não é nem intrínseco nem absoluto. Pois um múltiplo pode muito bem ser singular numa situação (seus elementos não são apresentados nela, embora ele mesmo o seja), mas normal numa outra (seus elementos vêm a ser apresentados nessa nova situação). Já um múltiplo natural, que é normal, e cujos termos são todos normais, conserva essas qualidades onde quer que apareça. A natureza é absoluta, a história é relativa. E uma característica profunda das singularidades que elas possam ser sempre normalizadas. Como, aliás, a História político-social o mostra, todo sítio eventural pode acabar por sofrer uma normalização estatal. É impossível, porém, singularizar a normalidade natural. Se admitimos que os sítios eventurais são necessários para que haja historicidade, constataremos isto: a história é naturalizável, mas a natureza não é historicizável. Há aí uma espantosa dissimetria, que interdiz — fora do quadro do pensamento ontológico do múltiplo puro — toda unidade de plano entre natureza e história,

Para dizê-lo de outra maneira: o que há de negativo (não ser representado) na definição dos sítios eventurais interdiz que falemos de um sítio “em si”. E relativamente à situação em que ele é apresentado (contado por um um) que um múltiplo é um sítio. Um múltiplo só é um sítio em situação. Em contrapartida, uma situação natural, normalizadora de todos os seus termos, é intrinsecamente definível, e conserva essa qualidade mesmo que se tome uma subsituação (um submúltiplo) numa apresentação mais vasta.

E essencial, portanto, reter que a definição dos sítios eventurais é local, ao passo que a definição das situações naturais é global. Podemos sustentar que não há senão jwrtíos-sítios, no interior de uma situação, em que certos múltiplos (mas outros não)

estão na borda do vazio. Ao contrário, há situações globalmente naturais.

Em Teoria do sujeito, eu havia introduzido a tese de que a História não exis­ te. Tratava-se de refutar a concepção marxista vulgar do sentido da História. No quadro abstrato que é o deste livro, reencontro essa idéia da seguinte forma: há sítios eventurais em situação, mas não situação eventural. Podemos pensar a historicidade de certos múltiplos, mas não podemos pensar uma História. As conseqüências práticas —

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políticas — desta concepção são consideráveis, porque elas envolvem uma topologia diferencial da ação. Aidéia de uma convulsão cuja origem seria um estado da totalidade é imaginária. Toda ação transformadora radical se origina em um ponto, que é, no interior de uma situação, um sítio eventural.

Significa isto que o conceito de situação é indiferente à historicidade? Não exatamente. De fato, é evidente que nem todas as situações pensáveis comportam necessariamente sítios eventurais. Esta observação abriria para uma tipologia das situações, que seria o ponto de partida do que, para Heidegger, é uma doutrina, não do ser-do-ente, mas do ente “em totalidade”. Eu a deixo para mais tarde: somente ela pode pôr ordem na classificação dos saberes e legitimar o estatuto desse conglomerado que numa época chamamos de “ciências humanas”.

Por enquanto, basta-nos distinguir as situações em que há sítios eventurais daquelas em que não há. Por exemplo, numa situação natural não há sítio. Mas o regime da apresentação tem muitos outros estados, em particular estados em que a distribuição dos termos singulares, normais ou excrescentes não comporta nem múltiplo natural nem sítio eventural. É o gigantesco reservatório de que nossa existência é tecida, situações neutras, em que não se trata nem da vida (natural) nem da ação (história).

Chamarei de históricas as situações em que figura ao menos um sítio eventural. Escolho a palavra “histórico” por oposição à estabilidade intrínseca das situações naturais. Insisto em que a historicidade é um critério local: um (ao menos) dos múltiplos que apresenta e conta a situação é um sítio, isto é, tal que nenhum de seus próprios elementos (os múltiplos de que ele faz o um-múltiplo) não está apresentado na situação. Uma situação histórica está, portanto, pelo menos sob um de seus aspectos, na borda do vazio.

Assim, a historicidade é a apresentação nos limites pontuais de seu ser. Ao inverso de Heidegger, sustento que a localização histórica é aquilo pelo que o ser ad-vem à proximidade apresentativa, porque alguma coisa é subtraída à representação, ou ao. estado. E que a natureza, estabilidade estrutural, equilíbrio da apresentação e da representação, é muito mais aquilo de que o ser-aí trama o maior esquecimento. Excesso compacto da presença e da conta, a natureza enterra a inconsistência e se desvia do vazio. Ela é demasiado global, demasiado normal, para abrir à convocação eventural de seu ser. É somente no ponto da história, na precariedade representativa dos sítios eventurais, que vai se revelar, ao acaso de um suplemento, que o ser-múltiplo inconsiste.

MEDITAÇÃO DEZESSETE

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