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UM, CONTA-POR-UM, UNICIDADE E ARRANJO-EM-UM

No documento BADIOU_Alain. O Ser e o Evento (páginas 79-83)

O ponto de excesso

4. UM, CONTA-POR-UM, UNICIDADE E ARRANJO-EM-UM

Sob o único significante “um” se dissimulam quatro sentidos, cuja distinção —- a que a ontologia matemática auxilia eficazmente — elucida muitas aporias especulativas, em particular hegelianas.

O um, como eu disse, não é. Ele é sempre o resultado de uma conta, o efeito de uma estrutura, pois a forma apresentativa em que se dispõe todo acesso ao ser é o

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múltiplo, çomo múltiplo de múltiplos. Assim, na teoria dos conjuntos, o que eu conto por um, sob o nome de um conjunto a , é múltiplo-de-múltiplos. É preciso distinguir, portanto, a çonta-por-um, ou estrutura, que faz advir o um como selo nominal do múltiplo, do um como efeito, cujo ser fictício depende apenas da retroação estrutural em que o consideramos, No caso do conjunto vazio, a conta-por-um consiste em estabelecer um nome próprio da negação de todo múltiplo apresentado, portanto um nome próprio do inapresentável. O efeito-de-um fictício se revela quando, por uma comodidade cujo perigo vimos, eu me autorizo a dizer que 0 ê “o vazio", atribuindo assim o predicado do um à sutura-ao-ser que é o nome, e apresentando o inapresentável tal qual. Mais rigorosa em seu paradoxo é a própria teoria matemática, que, falando do “conjunto vazio”, sustenta que esse nome, que não apresenta nada, é, contudo, o de um múltiplo, uma vez que, enquanto nome, ele se submete às Idéias axiomáticas do múltiplo.

Quanto à unicidade, ela não é um ser, mas um predicado do múltiplo, Pertence ao regime do mesmo e do outro, cuja lei toda estrutura institui, É único um múltiplo tal que é outro de todo outro. Os teólogos sabiam, aliás, que a tese “Deus é Um” é inteiramente diferente da tese “Deus é único". Por exemplo, na teologia cristã, a triplicidade das pessoas de Deus é interna à dialética do Um, mas nlo afeta jamais sua unicidade (o mono-teísmo). Assim, que o nome do vazio seja único, uma vez gerado retroativamente como um-nome para o múltiplo-de-nada, não significa de maneira alguma que “o vazio é um”. Significa apenas que, sendo “o vazio", inapresentável, apresentado somente como nome, a existência de “vários" nomes seria incompatível com o regime extensional do mesmo e do outro, e obrigaria, de fato, a pressupor o ser do um, ainda que no modo dos uns-vazios, ou átomos puros,

Por fim, é sempre possível contar por um o um-múltiplo já contado, isto é, aplicar a conta ao resultado-um da conta. Isso equivale, de fato, a submeter por sua vez à lei os nomes que ela produz como selo do um para o múltiplo apresentado, Ou ainda: todo nome, que assinala que o um resulta de uma operação, pode ser considerado na situação como um múltiplo puro que se trata de contar por um, Pois o um, tal eomo ele advém ao múltiplo pelo efeito da estrutura, e o faz consistir, nlo é transcendente à apresentação, A partir do momento em que resulta, ele é por sua vez apresentado, e considerado como um termo, portanto como um múltiplo. Essa operação pela qual, indefinidamente, a lei sujeita o um que ela produz, contando-o por um-múltiplo, eu a chamo o arranjo-em-um, O arranjo-em-uni não é realmente distinto da çonta-por-um, É apenas uma modalidade desta, em que se pode descrever que a conta-por-um se aplicou a um resultado-um, É claro que o arranjo-em-um não confere mais ser ao um do que a conta, Também aí o ser-do-um é uma ficção retroativa, e o que é apresentado permanece sempre um múltiplo, ainda que um múltiplo de nomes.

Posso assim considerar que o conjunto {0}, que conta por um esse resultado da conta originária, esse um-múltiplo que é o nome do vazio, é o arranjo-em-um desse nome. O um não encontra aí nenhum ser mais novo do que aquele que lhe é conferido operatoriamente pelo fato de ser o selo estrutural do múltiplo. Da mesma maneira, {0} é um conjunto múltiplo, um múltiplo. Ocorre apenas que o que lhe pertence, ou seja, 0 , é único. Mas a unicidade não é o um.

O PONTO DE EXCESSO 81

Notemos que, uma vez assegurada a existência de {0}, arranjo-em-um de 0 , pelo axioma dos subconjuntos aplicado ao nome do vazio, a operação de arranjo-em-um é uniformemente aplicável a todo múltiplo que se supõe já existente. É isso que nos dá uma medida do interesse do axioma de substituição, que enunciei na meditação 5. Essencialmente, esse axioma diz que, se um múltiplo existe, existe também o múltiplo obtido substituindo-se os elementos do primeiro por outros múltiplos existentes. Con­ seqüentemente, se, em {0}, que existe, “substituo” 0 pelo conjunto d, supostamen­ te existente, tenho {5}, isto é, o conjunto de que 3 é o único elemento. Ora, esse conjunto existe, pois o axioma de substituição me assegura a permanência do um-múltiplo exis­ tente para toda substituição termo a termo no que lhe pertence.

Eis-nos, portanto, de posse de nossa primeira lei derivada no quadro da axiomática conjuntista: se o múltiplo d existe (é apresentado), é também apresentado o múltiplo {3}, ao qual só d pertence; em outras palavras, o nome-um “d”, que o múltiplo que ele é recebeu, tendo sido contado por um. Essa lei, d -» {d}, é a conversão-em-um do múltiplo, 3, o qual já é o um-múltiplo que resulta de uma conta. Chamaremos o múltiplo {3}, resultado-um do arranjo-em-um, o singleto de 3.

{3} é portanto simplesmente o “primeiro” singleto.

Observemos, para concluir, que, como o arranjo-em-um é uma lei aplicável a todo múltiplo existente, e o singleto de 0 existe, seu arranjo-em-um, isto é, o arranjo-em-um do arranjo-em-um de 0 , existe também: {0} -* {{0}}. Este singleto do singleto do vazio tem, como todo singleto, um único elemento. Não se trata, contudo, de 0 , mas de {0}, os quais, segundo o teorema da extensionalidade, são diferentes. De fato, 0 é elemento de {0}, mas não de 0 . Por fim, revela-se que {0} e {{0}} são também

diferentes. v

Inicia-se, pois, a produção ilimitada de novos múltiplos, todos extraídos do vazio, pelo efeito combinado do axioma dos subconjuntos — pois o nome do vazio é parte de si mesmo —, e do arranjo-em-um.

Assim, as Idéias autorizam que, a partir de um único nome próprio simples — aquele, subtrativo, do ser— se diferenciem nomes próprios complexos, graças aos quais é marcado o um de que se estrutura a apresentação de uma infinidade de múltiplos.

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O estado, ou metaestrutura, e a tipologia do ser

(normalidade, singularidade, excrescência)

MEDITAÇÃO OITO ;;) , ^

Toda apresentação-múltipla corre o risco do vazio, que é seu ser enquanto tal. A consistência do múltiplo equivale ao fato de que o vazio, que é em situação (portanto, sob a lei da conta-por-um) o nome da inconsistência, não pode ele mesmo ser apresentado, ou fixado. O que Heidegger chama o cuidado do ser, e que é o êxtase do ente, pode também ser chamado: a angústia sitüacional do vazio, a necessidade de se defender dele. Pois a firmeza aparente do mundo da apresentação não passa de um resultado da ação da estrutura, mesmo que nada seja fora de tal resultado, É preciso evitar essa catástrofe da apresentação que seria o encontro de seu próprio vazio, isto é, o advento apresentativo da inconsistência como tal, ou a destruição do Um.

Compreende-se que a garantia de consistência (o “há Um”) não pode se contentar unicamente com a estrutura, com a conta-por-um, para circunscrever a.errâneia do vazio e impedir que ela se fixe, e seja, por isso mesmo, enquanto representação do inapresen- tável, a destruição de toda doação de ser, a figura subjacente do Caos. A razão fun­ damental dessa insuficiência é que alguma coisa, na apresentação, escapa à conta, coisa que é, precisamente, a própria conta. O “há um” é puro resultado operatório, que deixa transparente a operação de que esse resultado resulta. Seria, portanto, possível que, subtraída à conta e, conseqüentemente, a-estruturada, a própria estrutura fosse o ponto em que o vazio é dado. Para que o vazio tenha sua apresentação impedida, épreciso que a estrutura seja estruturada, que o “há um” valha para a conta-por-um, A consistência da apresentação exige, por conseguinte, que toda estrutura seja duplicada de uma metaestrutura, que a feche a toda fixação do vazio.

Atese de que toda apresentação é duas vezes estruturada pode parecer completa­ mente a priori. Em última análise, porém, ela significa isso, que todo mundo constata, e que filosoficamente nos deve espantar: muito embora seu ser seja a multiplicidade inconsistente, a apresentação jamais é caótica. Digo apenas isto: do fato de o Caos não ser a forma da doação do ser resulta a obrigação de pensar que há uma reduplicação da conta-por-um. A interdição de toda apresentação do vazio só é imediata e constante se esse ponto de fuga do múltiplo consistente, que é justamente sua consistência enquanto

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