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OS ARCANOS DA QUANTIDADE

No documento BADIOU_Alain. O Ser e o Evento (páginas 137-143)

“há infinito nos múltiplos naturais”

4. OS ARCANOS DA QUANTIDADE

O infinito estava cindido em bom e mau. Mas eis que ele se cinde novamente em infinito qualitativo (aquele cujo princípio acabamos de estudar) e em infinito quantitativo.

A chave deste torniquete reside nas chicanas do Um. Se é preciso retomar a questão do infinito, é que o ser-do-um não opera da mesma maneira na quantidade e na qualidade. Ou ainda: o ponto de ser — a determinidade — é quantitativamente construído ao inverso em face de sua estrutura qualitativa.

Já indiquei que, no termo da primeira dialética, o alguma coisa já não tinha relação senão consigo mesmo. No bom infinito, o ser é para-si, ele “esvaziou” seu outro. Como pode ele deter a marca do um-que-ele-é? O “alguma coisa” qualitativo é, ele mesmo, discemível do fato de ter seu outro em si mesmo. O “alguma coisa” quantitativo é em contrapartida sem outro, e conseqüentemente sua determinidade é indiferente. Com­ preendamos que o Um quantitativo é o ser do puro Um, que não difere de nada. Não é que seja indiscemível: ele é discemível entre todos, por ser o indiscernível do Um.

O que funda a quantidade, o que a discerne, é propriamente a indiferença da diferença, o Um anônimo. Mas se o ser-um-quantitativo é sem diferença, é forçosamente que seu limite não é um, pois todo limite, como vimos, resulta da introjeção de um outro. Hegel falará da “determinidade que se tomou indiferente ao ser, um limite que

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igualmente não é um limite”. Só que um limite que não é um limite é poroso. O Um quantitativo, o Um indiferente, que é o número, é igualmente múltiplos uns, pois sua in-diferença é igualmente fazer proliferar o mesmo-que-si fora de si: o Um, cüjo limite é mediatamente não-limite, se realiza “na multiplicidade exterior a si, a qual por seu princípio ou unidade tem o Um indiferente”.

Compreendemos então a diferença dos movimentos em que se engendram respectivamente o infinito qualitativo e o infinito quantitativo. Se o tempo essencial do alguma coisa qualitativo é a introjeção da alteridade (o limite tornando-se aí fronteira), o do alguma coisa quantitativo é a exteriorização da identidade. No primeiro caso, um joga com o outro, intervalo em que o dever é superar a fronteira. No segundo caso, o Um se faz ser múltiplos-Uns, unidade em que o repouso é se derramar fora de si. A qualidade é infinita segundo uma dialética de identificação, em que o um procede do outro. A quantidade é infinita segundo uma dialética de proliferação, em que o mesmo procede do Um.

O exterior do número não é, portanto, o vazio em que insiste uma repetição. O exterior do número é ele mesmo enquanto prol iferação múltipla. Podemos dizer também que os operadores não são os mesmos na qualidade e na quantidade. O operador de infinito qualitativo é a superação. O operador quantitativo é a duplicação. Um re-põe o alguma coisa (ainda), o outro o im-põe (sempre). Na qualidade, o que é repetido é que o outro seja esse interior que deve transpor seu limite. Na quantidade, o que é repetido é que o mesmo seja esse exterior que deve se derramar.

Uma conseqüência capital dessas diferenças é que o bom infinito quantitativo não pode ser a pura presença, a virtualidade interior, o subjetivo. Pois, em si mesmo, também o mesmo do Um quantitativo prolifera. Se no exterior de si ele é incessantemente o número (o infinitamente grande), no interior ele permanece exterior: é o infinitamente pequeno. A disseminação do Um em si mesmo equilibra sua proliferação. Não há nenhuma presença em interioridade do quantitativo. Por toda parte o mesmo dis-põe do limite, pois ele lhe é indiferente. O número, arranjo da infinidade quantitativa, parece ser universalmente mau.

Confrontado com esse impasse da presença (e é uma alegria para nós ver como o número impõe o perigo do subtrativo, da impresença), Hegel propõe a seguinte linha de resolução: pensar que o limite indiferente produz finalmente diferença real. O infinito quantitativo verdadeiro -— ou bom — será a conversão em diferença da indiferença. Podemos, por exemplo, pensar que a infinidade do número é, além do Um que prolifera, e compõe tal ou tal número, ser um número. A infinidade quantitativa é a quanti­ dade enquanto quantidade, o proliferando da proliferação, isto é, simplesmente, a qualidade da quantidade, o quantitativo tal como o discernimos qualitativamente de qualquer outra determinação.

A meu ver, porém, isso não funciona. Que é que não funciona? É a nomeação. Que haja uma essência qualitativa da quantidade, eu admito, mas por que nomeá-la “infinito”? O nome convinha ao infinito qualitativo porque ele era extraído do vazio, e porque o vazio era realmente a polaridade transfinita do processo. Na proliferação numérica não há vazio, pois o exterior do Um é seu interior, a pura lei que faz se derramar o mesmo-que-o-Um. Aradical ausência de outro, a indiferença, torna ilegítimo aqui que declaremos que a essência do número finito, sua numericidade, é infinita.

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Km outras palavras. Hegel não consegue intervir sobre o número. Não consegue porque a equivalência nominal que propõe entre a pura presença da superação no vazio (bom infinito quantitativo) e o conceito qualitativo da quantidade (bom infinito quan­ titativo) é um artifício, uma eena ilusória do teatro especulativo, Não há simetria entre o mesmo e o outro, entre a proliferação e a identificação. Por mais heróico que seja, o esforço é de fato interrompido pela própria exterioridade do múltiplo puro. É esta lição que Hegel quer mascarar suturando com o mesmo vocábulo — infinito — duas ordens discursivas disjuntas.

5. A DISJUNÇÃO

O empreendimento hegeliano encontra aqui, como seu real, o impossível da disjunção pura. A partir das próprias premissas de Hegel, devemos constatar que a repetição do Um no número não se deixa suspender pela interioridade do negativo. O que Hegel não pode pensar é a diferença entre o mesmo e o mesmo, ou seja, a pura posição de duas letras. No qualitativo, tudo se origina dessa impureza que pede que o outro marque com um ponto um ponto de ser, No quantitativo, a expressão do Um não é assinalável, de modo que todo número é ao mesmo tempo disjunto de qualquer outro e composto do mesmo. Aqui nada pode nos poupar, se quisermos o infinito, de uma decisão que de uma só vez disjunge o lugar do Outro de toda insistência dos outros-mesmos. Querendo manter até nas chicanas do múltiplo puro a continuidade dialética, e fazê-la proceder unicamente do ponto de ser, Hegel não consegue alcançar o infinito. Continuamos não podendo prescindir do segundo selo existencial.

Expulsa da representação e da experiência, a decisão disjuntiva retorna no próprio texto, por um redesmembramento entre duas dialéticas tão semelhantes — qualidade e quantidade, que o abismo de sua gemeidade não exime de sondar, e de encontrar aí o paradoxo de seu desemparelhamento — quanto a frágil passarela verbal lançada de uma à outra e que se pronuncia: o infinito.

O “bom infinito” quantitativo é propriamente uma alucinação hegeliana. E de uma psicose inteiramente diversa, em que Deus inconsiste, que Cantor tiraria de que nomear legitimamente as multiplicidades infinitas, ao preço, no entanto, de introduzir aí a proliferação que Hegel imaginava que, má, podíamos reduzi-la pelo artifício de sua diferenciável indiferença.

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MEDITAÇÃO DEZESSEIS

No documento BADIOU_Alain. O Ser e o Evento (páginas 137-143)